Amiga Estimada Mônica,
Muito obrigado pela consideração em ter-me enviado sua colaboração ao meu questionamento neste fórum de debates! Você, quando escreve, comove-me!
Concordo com tudo o quanto você escreveu a respeito de minhas perguntas acerca do delito de homicídio na Reforma da Parte Especial do Código Penal. Contudo, discordo visceralmente de um de seus apontamentos, qual seja o do inciso III do § 1º, do art. 121 da Reforma.
O dispositivo legal acha-se assim definido:
Art. 121. Matar alguém:
Pena reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.
§ 1º. Se o crime é cometido:
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III - por preconceito de raça, cor, etnia, sexo ou orientação sexual, condição física ou social, religião ou origem;
............................................................
Pena reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
Na ocasião, a amiga Mônica disse, em relação ao inciso III do § 1º, que sua criação pela Reforma do Código tinha sua razão de ser, pois que além de tal qualificadora não poder atualmente ser enquadrada como motivo fútil, também torpe não é o motivo. Discordo frontalmente do posicionamento da colega quanto à citada qualificadora, até porque não condiz com a interpretação legal, a doutrina e a jurisprudência atuais.
Ora, como afirmar que um homicídio cometido por preconceito de raça, cor, etnia, sexo ou orientação sexual, condição física ou social, religião ou origem não constitui um homicídio praticado por motivo torpe?!?!?!?! Dia a colega que para que isso fosse verdade a qualificadora em comento teria de, necessariamente, ser como que a paga ou promessa de recompensa, e como não é, não é torpe o motivo de preconceito (!).
Começo a deslindar a questão toda dos pontos mais elementares: do que seja a interpretação analógica.
A interpretação denomina-se analógica (ou intra legem) toda vez que na descrição de uma norma encontrar-se uma fórmula genérica seguida a uma casuística, devendo o intérprete enquadrar na norma fatos nesta fórmula definidos ou naquela subtendidos, porque análogos, semelhantes.
Ocorre a interpretação analógica, portanto, quando o tipo penal, ao definir um fato utilizando uma fórmula casuística, ou seja, exemplificativa, recorre a uma fórmula genérica para abranger esta e demais casos análogos. É da vontade da própria norma abranger casos outros de idêntica natureza aos exemplificados (e nunca taxados) na fórmula casuística.
Vejamos um exemplo elucidativo. O art. 121, § 2º, I, do CP, prevê o homicídio qualificado mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe. Temos aqui a fórmula casuística ou exemplificativa mediante paga ou promessa de recompensa e a fórmula genérica ou por outro motivo torpe. Esta última abrange os casos que fazem parte da casuística e, além deles, outros que com eles se assemelham. Desse modo, a fórmula genérica do art. 121, § 2º, I, estende-se aos casos análogos à paga e promessa de recompensa e que sejam torpes tanto quanto eles, como o agente que comete homicídio contra o próprio pai para ficar com a herança deixada por este, ou a esposa que manda assassinar o próprio marido, para beneficiar-se do seguro de vida que ele fizera em seu favor ou, ainda, o indivíduo que mata o atual namorado da sua ex-namorada, por quem o agente ainda sente tórridos ciúmes... ou do homicídio que é praticado por preconceito!
Dir-se-á, portanto, amiga Mônica, que o um motivo não é só torpe quando é mercenário (paga ou promessa de recompensa), porque esta é a fórmula casuística, meramente exemplificativa. Torpes também são outros motivos que, muito obstante nada tenham a ver com a para ou promessa de recompensa, são como eles ignóbeis, vis, abjetos. Se o entendimento da colega estivesse correto, porque, cum data maxima venia, na verdade não está, o legislador não teria introduzido a fórmula genérica ou por outro motivo torpe, deixando em comento, apenas, a paga e a promessa de recompensa. Não há como, destarte, amiga Mônica, confundir paga ou promessa de recompensa com outro motivo torpe, dado que este é gênero de que aquelas são simples espécies suas. E como fórmula genérica, o outro motivo torpe abrange muitas outras formas de prática homicida por tal motivo. Veja-se o exemplo de quem mata um homem pelo simples fato de ele ser homossexual (como no recente caso ocorrido aqui em Recife, em que o agente matara sua vítima porque, segundo suas palavras, "bicha tem mesmo é que morrer!"), ou de quem mata negros porque maculam a raça branca. Tudo são preconceitos, e como tais são motivos vis, repugnantes, abjetos e que tranqüilamente perfectibilizam a qualificadora do atual art. 121, § 2º, I, do Código Penal.
Para corroborar com o que falo, transcrevo as palavras de um dos melhores doutrinadores brasileiros, Julio Fabbrini Mirabete (Manual de Direito Penal. São Paulo: Atlas, vol. 1, 14 ed., 1998, p. 70, § 2º):
Refere-se o dispositivo (do art. 121, § 2º, I) também a qualquer motivo torpe, ou seja, ao motivo abjeto, repugnante, ignóbil, desprezível, vil, profundamente imoral, que se acha mais abaixo na escala dos desvalores éticos e denota maior depravação espiritual do agente. Como melhores exemplos são citados os homicídios praticados por cupidez (para receber uma herança, por rivalidade profissional etc.) ou para satisfazer desejos sexuais. Reconheceu-se haver motivo torpe nos seguintes casos: do reú que, após desferir golpe fatal contra a vítima, a violou ainda em vida; do acusado que eliminou a vítima com quem praticava atos de pederastia, por desejar esta interrompê-los, dos que, despeitados pela fama de valente da vítima, numa demonstração de vaidade criminal, resolveram matá-la para tentar mostrar maior valentia que ela; do jovem que matou a namorada ao tomar conhecimento de que a mesma já não era virgem; do que agiu por luxúria e despeito. Também há motivo torpe na vingança decorrente de desentendimentos anteriores entre o agente e a vítima, ou no delito contra a amásia que o desprezou.
Como bem se denota, amiga Mônica, Mirabete nos traz à lume uma série enorme de homicídios qualificados pelo motivo torpe sem que o seja necessariamente mercenário (paga ou promessa de recompensa). E reafirmo: matar por puro preconceito, porque representa depravação espiritual do agente, é matar por motivo que se acha mais abaixo na escala dos desvalores éticos, em última e insofiamável instância, matar por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, sexo ou orientação sexual, condição física ou social, religião ou origem é, sim, matar por motivo torpe, vil, ignóbil, abjeto.
Agora, a lição de Edgard Magalhães Noronha (Direito Penal. São Paulo: Saraiva, vol. 1, 12ª ed., 1976, p. 31, § 2º):
A primeira majorativa é a do motivo torpe, isto é, quando a razão pela qual a vontade se determina é vil, ignóbil e abjeta, ofendendo mais profundamente o sentimento ético comum da sociedade. Alei exemplifica [observe-se, exemplifica, mas não limita!] com a paga ou promessa de recompensa.
Lendo diversas obras, pude concluir que vários outros são os autores que me dão inteiro respaldo:
ANTOLISEI, Francesco. Manuale di Diritto Penale: Parte Especiale, 1954, v. 1.
BRUNO, Aníbal. Crimes Contra a Pessoa. São Paulo: Forense, 3ª ed.
CARRARA, Francesco. Programa del Curso de Derecho Criminal: Parte Especial. Buenos Aires: Palma, 1945, vol. 1.
CARVALHO FILHO, Aloysio, ROMEIRO, Jorge Alberto. Comentários ao Código Penal. Rio de janeiro, Forense, 1979, vol. 4, 4ª ed.
DELMANTO, Roberto. Temas de Direito Penal. RT 667/387-389.
FARIA, Bento de. Código Penal Brasileiro Comentado. Rio de Janeiro: Record, 1959, vol. 4.
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: Parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1981, vol. 2, 3ª ed.
FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.
FRANCO, Ary. Crimes Contra a Pessoa.
GARCIA, Basileu. Instituição de Direito Penal. São Paulo: Max Limonad, vol. 2, t. 2, 1980, 5ª ed.
HUNGRIA, Nelson, FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, vol. 5, 5ª ed., 1980.
JESUS, Damásio Evangelista de. Questões Criminais. São Paulo: Saraiva, 1981.
LEAL, João José. Homicídio como Crime Hediondo, um ano depois. RT 719/361-371.
LYRA, Roberto. Noções de Direito Criminal: Parte Especial. Vol. 1.
MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal: Parte Especial. São Paulo: Saraiva, 1961, vol. 4.
MENDES, Nelson Pizzoti. Súmulas de Direito Penal: Dos Crimes Contra a Pessoa e Patrimônio. 1972, 2ª ed.
MONTEIRO, Antônio Lopes. Crimes Hediondos. São Paulo: Saraiva, 1991.
MORAIS, Paulo Heber. Homicídio. Curitiba: Juruá, 3ª ed.
SABINO JÚNIOR, Vicente. Direito Penal, vol. 2.
SANTOS, Edgard de oliveira Cardoso. A Nova Lei Sobre Crimes Hediondos. RT 711/287-291.
SILVA, A. J. da Costa e. Do Homicídio. Justitia 42/15-34.
SILVEIRA, Euclides Custódio da. Direito Penal: Crimes Contra a Pessoa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, 2ª ed.
VARGAS, José Cirilo de. Introdução ao Estudo dos Crimes em Espécies. Belo Horizonte: Del Rey, 1993.
VERGARA, Pedro. Delito de Homicídio. 1943, vol. 1.
Assim, nunca foi matéria complexa à jurisprudência brasileira (e muito menos à doutrina, como se vê à saciedade das obras supra citadas) reconhecer a qualificadora contida no art. 121, § 1º, III, da Reforma, como a boa e velha qualificadora do art. 121, § 2º, I, do Código Penal.
Acresça-se que o cunho de desvalor ignóbil suscitado pelo preconceito na moralidade média é alçado em nível constitucional, proibindo-se qualquer ato atentatório à proteção dos interesses referentes à raça, cor, etnia, sexo ou orientação sexual, condição física ou social, religião ou origem (Carta Magna, art. 5º, caput).
Destarte, considerando que a interpretação analógica é uma forma de interpretação quanto ao resultado em que a própria lei, após descrever casuisticamente fatos a ela enquadráveis (meramente exemplificativos, e não taxativos, portanto), alude a uma fórmula genérica, abrangendo outros fatos da mesma natureza que a teleologicamente preconizada pelo dispositivo legal; considerando que o art. 121, § 2º, I, do Código Penal, diz explicitamente ser qualificado o homicídio cometido mediante paga ou promessa de recompensa [fórmula casuística, exemplificativa apenas], ou por outro motivo torpe [fórmula genérica]; considerando que o motivo torpe é todo aquele que conduz a uma reprovabilidade sócio-jurídica maior, dado que o agente teve em sua mente o móvel vil, abjeto, digno de depravação espiritual; considerando que o preconceito, por si só, já é motivo suficientemente desvalorado pela sociedade ao ponto de a Carta Política fazer expressa menção à sua proibição (veja-se, e. g., seu art. 5º, XLII, que prevê ser a prática do racismo crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei), tanto mais quando se tratar de destruir uma vida humana pelo só fato de ela ostentar uma determinada condição, ou fazer parte de uma determinada categoria ou classe... tem-se que o homicídio praticado por preconceito de raça, cor, etnia, sexo ou orientação sexual, condição física ou social, religião ou origem é, incontestavelmente, um homicídio cometido por motivo torpe, e portanto qualificado nos moldes expressos do art. 121, § 2º, I, da atual redação do Estatuto Repressivo.
Espero que, agora, a amiga Mônica tenha, à guisa da interpretação legal e das vastas doutrinas clássica e hodierna, modificado seu entendimento. Espero não ter sido excessivamente incisivo, fantástica amiga!
Aguardo respostas!
Um abraço a todos os interessados neste fórum!
Guilherme da Rocha Ramos.