Seguem abaixo algumas considerações, que espero sejam de alguma valia.
I
Estabelece o art. 42, § 3º da Constituição Federal que o militar que aceitar cargo público civil permanente será transferido para a reserva. Por sua vez o § 4º do mesmo dispositivo assinala que o militar da ativa que aceitar cargo, emprego ou função pública temporária não eletiva, ainda que da administração indireta, ficará agregado ao respectivo quadro e somente poderá, enquanto permanecer nesta situação, ser promovido por antiguidade, contando-se-lhe o tempo de serviço apenas para aquela promoção e transferência para a reserva, sendo depois de dois anos de afastamento, contínuos ou não, transferido para a inatividade.
Por seu turno, a Constituição do Estado de São Paulo apenas remete o assunto à Lei Orgânica e ao Estatuto da Polícia Militar, conforme se vê do art. 41 e seu § 2º, dispositivos estes certamente fundamentados no art. 144, § 7º, da Lei Maior.
No art. 42, § 3º acima transcrito a CF faz referência a cargo público. Já o § 4º fala em cargo, emprego ou função pública temporária. Tais conceitos têm natureza eminentemente administrativa.
Com efeito, segundo Diógenes Gasparini cargo público é o menor centro hierarquizado de competências da administração direta, autárquica e fundacional pública, criado por lei ou resolução, com denominação própria e número certo. (Direito Administrativo Brasileiro, Editora Saraiva, 5ª Edição, 2000, pág. 223).
Segundo o mesmo conceituado administrativista, emprego (público) é o centro de encargos para ser ocupado por servidor contratado pelo regime celetista. (obra citada, pág. 152).
Por seu turno, função pública temporária, como o próprio nome vem dizer, são aquelas atividades prementes e necessárias na Administração Pública, que sem embargo de exigirem solução não pedem uma estrutura perene, tal como se dá, vg., em uma campanha de vacinação, de desratização, entre outras atividades transitórias.
O que se quer demonstrar é que as atividades constitucionalmente permitidas aos policiais militares serão sempre interligadas ao serviço público, nunca na iniciativa privada, pelo menos pelo que me pertine à vista do texto da Carta.
E mesmo que se quisesse interpretar o § 3º do art. 42 de forma mais ampla, procurando entender erroneamente que o cargo público civil a que se refere o texto seja as atividades comuns da vida privada, isto não seria possível, pois vem o adjetivo permanente por cobro a tal situação, vez que o problema é expresso ao dizer que os policiais faziam bico.
II
Se correto meu raciocínio, não deveriam estar os policiais militares (e por extensão os guardas metropolitanos porque a gênese a meu ver é a mesma), desempenhando tais funções.
Mas estavam. E a princípio para o Direito do Trabalho penso que tal irregularidade é indiferente uma vez presente a relação de emprego, cuja tipificação é dada pelo art 3º da CLT: a) pessoalidade; b) habitualidade; c) dependência; d) salário, que evidentemente pode ser diário, semanal ou mensal, dependendo da forma contratada.
Talvez se possa defender que não haja dependência, uma vez que a atividade principal dos vigilantes é perante sua corporação. Mas conforme ensina o conceituado Eduardo Gabriel Saad a dependência, reconhecida pela lei e pela doutrina é a jurídica. Por força do contrato firmado com a empresa, o empregado se obriga a cumprir suas determinações, o que, em essência vem a ser a dependência jurídica encontrável em todo e qualquer contrato de trabalho (CLT Comentada, 33ª Edição, 2001, pág. 30).
Esta convicção ainda mais se firma à leitura do art. 9º celetário que reprocha de nulos quaisquer atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos de proteção ao trabalhador.
III
Embora aquelas observações postas acima eventualmente possam impressionar aquele radical aplicador do direito trabalhista em quaisquer situações onde presentes os requisitos da configuração do empregado (art. 3º CLT) e empregador (art. 2º CLT), no caso concreto e muito modestamente tenho outro pensar.
Em primeiro lugar o art. 9º não vive sozinho no ordenamento jurídico, o que é um truísmo. No meu entender, pela própria redação do mandamento penso que há mister dolo daquele que se aproveita da situação do empregado, porque só pode agir de má-fé quem desvirtua, impede ou frauda, que são as condutas típicas desabonadas pela lei.
Assim, penso que só teria lugar a aplicação do art. 9º se houvesse deliberada vontade do contratante em ajustar a mão-de-obra com o deslavado propósito de aproveitar-se dela e não lhe pagar os direitos trabalhistas.
Parece que isto é quase impossível, dada a natureza objetiva do problema, pois mesmo que se porventura o comerciante pretendesse contratar tais pessoas como vigilantes do estabelecimento como seus empregados, por certo haveria recusa, pois desempenham outra atividade tida como principal.
Mas por outro giro, soubesse o comerciante dos impedimentos a que os seus contratados estavam expostos haveria de contratá-los? Por outra, teria o comerciante a obrigação legal de conhecer os impedimentos de seus contratados?
Todavia, qualquer que seja a resposta para ambas as indagações, força é convir que os contratados não poderiam desconhecer os impedimentos que defluem de seus respectivos estatutos.
Desta sorte, considerando que os policiais são impedidos de desempenhar funções de natureza civil (o que evidentemente só se saberá consultando seus respectivos estatutos e a lei orgânica), não poderiam eles desconhecer a proibição, que por praxe vem claramente escrita.
Ora, se sabiam do impedimento sempre partindo do pressuposto que o trabalho é proibido, à luz do item I acima agiram com dolo, por ocultarem um dado essencial e dando azo à aplicação do art. 94 do Código Civil, para quem nos atos bilaterais o silencio intencional de uma das partes a respeito de fato ou qualidade que a outra parte haja ignorado, constitui omissão dolosa, provando-se que sem ela se não teria celebrado o contrato. E uma vez feita esta prova os atos jurídicos são anuláveis por dolo, quando este for a sua causa, nos termos do art. 92.
IV
Pelo exposto, imagino eu que se formalmente houver um contrato de trabalho típico, pois afinal presentes os requisitos do art. 3º CLT, entendo que possa haver uma anulação desta modalidade contratual porque dolosa a atitude dos vigilantes ao omitirem o fato impeditivo da contratação, que se tempestivamente comunicado evitaria o aperfeiçoamento das avencas; desde, é claro, que tais atividades civis sejam realmente proibidas como parece apontar o texto constitucional.
Atenciosamente,
João Cirilo