A vexata quaestio é, em verdade, quais são os limites da atuação do Estado(no caso, Município) em frente aos princípios constitucionais da liberdade individual e, principalmente, da proporcionalidade e da razoabilidade? Será que não existiria outra forma menos lesiva aos cidadãos se obter os resultados pretendidos por tais leis que restringem a liberdade e as decisões mais íntimas do cidadão brasileiro?

O caso de Fortaleza é apenas um exemplo, lá a Câmara dos Vereadores aprovou um projeto de lei que tem tudo para ser fulminado com o maior de todos os vícios: a inconstitucionalidade. Trata-se de uma Lei Municipal que obriga todos os nubentes da cidade de Fortaleza a fazerem o exame de HIV, como condição sine qua non para a habilitação no casamento. A esdrúxula Lei, de autoria de um Vereador que é ginecologista, só falta ser sancionada pelo Prefeito, que já se predispôs a fazê-lo.

Tal Lei, se realmente promulgada e publicada, estará eivada de inconstitucionalidade nos termos do artigo 5.º, inc. X da Constituição Federal, in verbis:

"Art. 5º. Omissis

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação"

Essa odiosa peça legislativa deverá ser atacada de alguma forma pelo Judiciário, talvez até de ofício. O que resta claro é que tal exame, se tornado obrigatório, irá restringir de forma inaceitável a intimidade do cidadão, tão quanto as repugnantes câmeras eletrônicas do trânsito (inicialmente podia se visualizar a foto do infrator, hoje já não pode mais), e representa um exemplo do cruel império do Estado sobre a vida privada para o qual estamos caminhando e por isso tem-se que reagir.

De certo fica que a nossa Constituição ainda é a maior guarida que temos para a defesa dos nossos direitos e de nossa liberdade.

Aproveito o ensejo para pedir a todos de Fortaleza oe de outras cidades/estados que tenham informações sobre a tramitação de tal Lei, texto na íntegra, número, etc., para que sirva para monografia que estou escrevendo.

Respostas

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    Marco Bruno Miranda Clementino Sexta, 30 de abril de 1999, 23h43min

    Caro Paulo,

    Em análise superficial, sem qualquer rigor científico, a hipótese por vc ofertada afigura-se, a meu ver, a de conflito de princípios basilares albergados em nossa Carta Constitucional. Com todo o respeito, seu arrazoado é bem fundamentado, mas peca pela unilateralidade excessiva, já que deixa de considerar importante direito fundamental assegurado pela Constituição, a saber, o direito à vida, direito fundamental indisponível, flagrantemente no cerne dessa lei. Ou seja, do aspecto puramente formal, não vejo inconstitucionalidade na lei, desde que garantidos algumas prerrogativas aos "nubentes", como, por exemplo, a divulgação individual (ou ao casal) dos resultados do exame. O que interessa no caso é a proteção da vida do futuro cônjuge e a prevenção quanto ao nascimento de crianças contaminadas.

    Nesse raciocínio, entendo que a norma não deve ser esquadrinhada no seu aspecto puramente formal, senão do prisma da política legislativa, que, por seu turno, deve consubstanciar-se na proporcionalidade (ou razoabilidade. Considerando a razoabilidade, na sua aplicação hermenêutica, no princípio que exige adequação entre o fim intentado pela norma e meio para alcançar esse fim (ou seja, o conteúdo da norma). Assim, por esse anglo, parece que você tem razão em contestar a constitucionalidade dessa lei. Ora, essa não é a melhor forma de proteger a vida contra a AIDS. O problema é que o Estado Brasileiro sabe que não provê a população com a educação de que necessitam para esse tipo de situação (dentre outras). Então, acreditam os governantes que essa falha grave pode facilmente ser supridas por normas que imponham cada vez mais restrições aos direitos individuais, como se isso equacionasse os problemas.

    Logo, essa norma é inconstitucional, sim, porquanto briga com o princípio da proporcionalidade. E por isso, logrará atingir os fins a que se propõe.

    Assim, caro Paulo, concordo com você, apenas por enfoques diferentes. Mas ratifico, estes comentários não têm qualquer rigor científico; são meras elucubrações de um humilde estudante de direito.

    Aguardo sua réplica,

    Marco

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    Marco Bruno Miranda Clementino Sábado, 01 de maio de 1999, 0h06min

    Me expressei mal quando falei em "aspecto formal", porque, na verdade, a hipótese é de inconstitucionalidade material.

    Quando falei em aspecto formal, queria dizer lógica-formal, no plano direto de confronto entre uma norma constitucional e a lei referida. É que, na verdade, essa lei não deve ser recepcionada por nosso ordenamento jurídico, a meu ver, porque fere um princípio implícito na Carta, fruto de interpretação axiológica, e não puramente lógica-formal.

    Acho que agora fui mais claro.

    Marco

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    Ronaldo Pinheiro de Queiroz Domingo, 09 de maio de 1999, 13h35min

    Caro Paulo:

    É importante, e ao mesmo tempo escasso, a sensibilidade de pessoas que, como você, não viram as costas aos acontecimentos ocorrentes em nosso país e no mundo; fiscalizando e proferindo opiniões acerca das contínuas condutas incompatíveis com a lisura e a moralidade que o Estado deve seguir. Parabéns !

    Ressalto que esta resposta vale tanto para o seu arrazoado como para a sapiente intervenção do estudante Marco Bruno Miranda.

    O assunto que ora se apregoa é deveras intrigante, tanto no seu aspecto jurídico-material (inconstitucionalidade), como no seu enfoque finalístico (eficácia). Ei-los:

    Antes de tecer os meus humildes comentários, invoco a lição de Alexandre de Morais acerca do que vem a ser uma lei constitucional, in veribis:

    “A idéia de controle de constitucionalidade está ligada à Supremacia da Constituição sobre o ordenamento jurídico e, também, à rigidez constitucional e proteção dos direitos fundamentais.” (os grifos inocorrem no original)


    Com isso, percebe-se que uma lei para não ser fulminada com “o maior de todos os vícios” deve coadunar-se com os preceitos da Constituição Federal, caso os afronte, mormente no que diz respeito aos direitos fundamentais, caracterizado estaria a sua inconstitucionalidade material.

    A Lei em apreço, como bem salientou o estudante Marco Bruno (em resposta ao tema proposto), deve ser analisada não de uma forma unilateral, mas pelo intento legitimador de tal norma.

    Diz o estudante, que estaria existindo um conflito de princípios basilares: de um lado o precioso direito à intimidade do cidadão e de outro, o direito à vida, direito fundamental indisponível que não pode sair das rédeas da proteção estatal.

    Nesse passo, e com a devida venia, discordo do estudante Marco, uma vez que este tão-somente analisou esta questão sob uma ótica geral (macro), deixando de analisar os contextos social e finalístico de tal direito, repita-se, fundamental e indisponível, que legitimaria a lei.

    Ora, diz o acadêmico que desde que garantidas algumas prerrogativas aos nubentes, como a divulgação individual (ou ao casal) dos resultados do exame, a intimidade restaria incólume. Assevera, também, que o que interessa no caso é a proteção da vida do futuro cônjuge e a prevenção quanto ao nascimento de crianças contaminadas. Ledo engano, senão vejamos:

    Comecemos pela intimidade: imaginemos esta lei posta em prática com aquelas, ditas, prerrogativas e o indivíduo que foi fazer o exame recebeu o resultado positivo, conseqüentemente, estaria impossibilitado de casar, assim, diante da não formalização das bodas, ficaria cintilante para qualquer médio-baixo entendedor que tal indivíduo estaria contaminado com a doença, pois que outro motivo o levaria a desfazer o casamento imediatamente depois do resultado do exame?

    O professor J. Matos Pereira define a privacidade como “o conjunto de informação acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob o seu exclusivo controlo, ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que condições, sem a isso poder ser legalmente sujeito”. Percebe-se claramente que a intimidade tão-só pode ser externada ao alvedrio de seu possuidor, tanto é que não pode haver nenhuma imposição legal para a sua divulgação, dessa forma, o Estado sensível a essa situação conferiu o direito de sua inviolabilidade, resta saber por que agora quer retirar essa facultas agendi em Fortaleza.

    No que atine ao tão festejado direito à vida, por melhor que seja a intenção do douto legislador (perdão, é doutor legislador, pois o mesmo é ginecologista), não se encontra no cerne desta lei, pois esse direito deve ser utilizado com eficácia para poder sobrepujar o direito à intimidade (se é que existe hierarquia nos direitos fundamentais), o que não ocorre com a aplicação desta norma. Passemos a verificação sob os contextos social e finalístico e não mais uma averiguação macro:

    Sob o prisma do social, sabemos que os costumes de uma sociedade são dinâmicos, cambiando de tempos em tempos, pois nos dias atuais manter relações sexuais entre casais (e até com parceiro(a)(s) eventuais) é uma praxe fortemente aceita pela sociedade, até pelas famílias mais tradicionais; dessa maneira, o legislador quer proteger os nubentes somente a partir do ajuste do casório? E o “rala e rola” que aconteceu antes, como é que se protege, legislador?

    Outro argumento que poderia ser usado, e muitos acham que a razão da eficácia está nele, é a tutela da salubridade da futura prole em potencial. Erro crasso! Ora, a lei pode até proibir que os nubentes se casem, mas daí impedir uma união de fato que dela possa gerar frutos (filhos), não vejo como. Isto é, o legislador coíbe uma situação de direito, entretanto, a de fato foge da sua alçada.

    Com isto, comprovada está a ineficácia da inócua e esquipática lei, além da flagrante verificação de que tal norma está maculada com a eiva da inconstitucionalidade, visto que a primordial finalidade do controle da constitucionalidade repousa na proteção dos direitos fundamentais, e sendo estes feridos por lei infraconstitucional, a única medida profilática para sanar o contágio seria a decretação de sua morte, qual seja, a inconstitucionalidade.

    Conclui-se, desse estudo, que os nossos representantes, ao receberem poderes por nós delegados, devem parar de querer resolver os problemas da sociedade com a elaboração dos mais variados tipos de leis, sem analisarem se estas surtirão efeitos ou não (daí a enxurrada de legislação que só faz complicar e não ajudar), deixando em segundo plano, no que concordo piamente com o Marco Bruno, meios eficazes de amortizar os problemas, como o investimento em educação, saúde entre outros.

    Assim, diante de uma lei tão utópica (pensa que pode acabar com o problema da AIDS, restringindo o direito à intimidade), vejo que as opiniões são unânimes em afirmar que a mesma padece da mácula da inconstitucionalidade, só que com a riqueza crítica de pensamento que o Direito nos proporciona, a identificamos sob prismas diferentes, o importante é que encontramos o caminho de apagar essa mancha negra que atenta contra os direitos individuais.

    É o que penso, salvo melhor juízo.

    Ronaldo Pinheiro de Queiroz

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    Paulo Maia Domingo, 09 de maio de 1999, 19h31min

    Não como receber essa resposta senão com inacabáveis palmas, PALMAS, PALMAS, PALMAS.

    A intervenção do ilibado colega teve o condão de trazer à baila um dos aspectos que eu, ao iniciar a discussão, não pude expressar. Digo isso ao me referir à ineficácia da retrocitada norma. Escreveu Ronaldo: "Ora, a lei pode até proibir que os nubentes se casem, mas daí impedir uma união de fato que dela possa gerar frutos (filhos), não vejo como. Isto é, o legislador coíbe uma situação de direito, entretanto, a de fato foge da sua alçada. " Essa observação realmente afunda com toda e qualquer tentativa de tentar legitimar a norma pela via da "defesa ao nascituro".

    Realço também o trecho em que se lê: "Sob o prisma do social, sabemos que os costumes de uma sociedade são dinâmicos, cambiando de tempos em tempos, pois nos dias atuais manter relações sexuais entre casais (e até com parceiro(a)(s) eventuais) é uma praxe fortemente aceita pela sociedade, até pelas famílias mais tradicionais; dessa maneira, o legislador quer proteger os nubentes somente a partir do ajuste do casório? E o “rala e rola” que aconteceu antes, como é que se protege, legislador?" Excepcional colocação que expõe ao ridículo tal norma, que só vem a se preocupar com os relacionamentos sexuais ocorridos após a concepção do casamento, como se antes disso não ocorresse o coito.

    Por fim, agradeço os elogios e devolvo-os em dobro, sempre ressaltando a necessidade de estarmos constantemente levados a discordar, a criticar, a tomar partido, pois, no dizer do nobre publicista Carlos Ary Sundfeld: "a ciência deve celebrar a liberdade: duvidar, contestar, ousar. Seu papel é o eterno atrevimento. O conforto do passado é dos colecionadores. Aos cientistas cabe a angústia de criar."

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    Paulo Maia Domingo, 09 de maio de 1999, 19h43min

    Caro Marco,

    Concordo com o que diz à respeito do ferimento à ordem constitucional em decorrência da afronta ao princípio da proporcionalidade, mas não vejo essa tal unilateralização do problema por minha parte.

    O direito à vida está sendo defendido por meio do instrumento errado, não é com uma lei que se impedirá o srelacionamentos extra-conjugais que resultariam, da mesma forma, na concepção de um ser humano aidético.

    Também a individualidade da divulgação do resultado não se mostra como solução eficiente já que não há como calar o burburinho social que iria casar um casamento frustrado logo após tal exame.

    Sei que apenas repito com outras palavras o que disse o colega Ronaldo na outra resposta, por isso remeto-o àquela.

    Paulo Maia

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    Marco Bruno Miranda Clementino Domingo, 09 de maio de 1999, 23h36min

    Sei que a discussão vai ficar enfadonha, despicienda, já que estamos todos concordando, mesmo que mediante diferentes parâmetros, porém, sinto-me na obrigação de exercer meu direito ao contraditório, porquanto fui alcunhado de utópico pelo ESTUDANTE Ronaldo de Queiroz, ante a exposição de minhas idéias ("ledo engano...").

    Caro colega acadêmico, acredito que você não compreendeu o cerne de meus dizeres. Ora, tenha-se como prisma que eu, assim como você e o colega Paulo, também vislumbro raízes de inconstitucinalidade na famigerada lei. Contudo, procuro enxergar a questão da maneira que requer uma análise com o mínimo de cientificidade, e de responsabilidade.

    Com efeito, quando alude à afronta ao princípio da propoircionalidade, refiro-me justamente à situação vexatória a que podem submeter-se os nubentes, e à ineficácia da lei na proteção da vida. Senão, por que aludiria eu ao princípio da proporcionalidade?

    O que procuro enfatizar, sim, é a unilateralidade do discurso, que se direciona tão-somente à tutela do direito à intimidade, esquecendo-se de que o direito à vida também deve estar presente na análise. E pelo que vc pôde denotar da minha explanação, ela se fulcra sobretudo nesse direito que, segundo Alexandre de Morais, é talvez o mais importante cuja salvaguarda à Constituição.

    Portanto, fazendo uso da situação fática por vc trazida a lume, é bom dizer que, se essa lei efetivamente impedisse que um casal viesse a contrair núpcias, detectando a contaminação de um dos cônjuges, diria que seria plenamente constitucional e a defenderia, pois a intimidade não pode ser preservada ante a finalidade ilícita, por exemplo. Ora, é sabida a existência de muitas pessoas que, contaminadas com o vírus da AIDS, fazem questão de espalhar a doença, num ato vingativo de dividir com os demais sua desgraça. Nesse caso, afirmo incisivamente que a intimidade não pode, nem deve ser preservada. É corolário do bom senso. E mesmo não havendo dolo, se essa lei tivesse o condão de evitar que a molétia se alatrasse, teria função altruística e, sobretudo, eficácia. Não veria, na hipótese, qualquer inconstitucionalidade.

    Aliás, o próprio Alexandre de Morais, por vc citado, no capítulo referente à hermenêutica inconstitucional, ao pregar a harmonia entre os preceitos fundamentais, assevera incisivamente que certos direitos podem ser mitigados, em determinadas hipóteses. E uma das hipóteses que ele cita como exemplo, pasmem, diz respeito justamente ao direito à intimidade, perfilhando que este não pode preponderar em determinadas situações.

    Por isso, amigo Ronaldo, quando me refiro à briga dessa lei com a proporcionalidade, estou justamente aludindo a tais situações, porquanto essa lei, na prática, repita-se, não se presta a salvar vidas, razão por que está eivada do vício extremo. Mas isso não quer dizer que não se deva esquadrinhar a hipótese sob ambos os prismas, sob pena de, em caso diverso, incorrer-se novamente no mesmo erro, e vislumbrar inconstitucionalidade onde realmente não exista.

    Em verdade, estamos todos de acordo. Apenas sinto-me na obrigação de adverti-los acerca dessa unilateralidade de raciocinio, que não pode fazer parte de um bom jurista.

    Aliás, por oportuno, refiro-me àquele adágio que afirma que a melhor forma de defender o direito do cliente é reconhecer o direito da outra parte. Assim, sua tese será mais bem montada e os argumentos do outro serão mais facilmente fulminados. Não é só o juiz que deve ver as coisas de forma holística, bilateralmente, mas também o advogado. É importante que este também raciocine segundo a sistemática do processo.

    São, em linhas gerais, o que penso.

    Marco

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