Limites de destinação de vaga de garagem vinculada em condomínio edilício
Poderiam, por gentileza, apontar-me para legislação e jurisprudência sobre limites de destinação de uso de vaga de garagem vinculada em condomínio edilício?
Mais especificamente, em relação ao uso de vaga de garagem vinculada para fim diverso de estacionamento de veículo automotor, quais são os limites impostos ao condômino por lei e quais limites podem ser impostos em assembleia condominial?
A fundamentação é intuitiva.
Por força do Código Civil, a Convenção é a "lei" interna do condomínio.
"Art. 1.333. A convenção que constitui o condomínio edilício deve ser subscrita pelos titulares de, no mínimo, dois terços das frações ideais e torna-se, desde logo, obrigatória para os titulares de direito sobre as unidades, ou para quantos sobre elas tenham posse ou detenção."
Cabe a ela, primordialmente, regulamentar a utilização das partes comuns do condomínio. Se ela reza ser proibida a utilização das vagas de garagem para fins diversos (colocação de outros objetos, tais como móveis, entulhos etc.) a proibição é válida, e deve ser obedecida.
E ainda que nela não houvesse tal previsão, tenho que o Código parece já ter estabelecido a utilização exclusiva dessas áreas apenas para a guarda dos veículos. Isso porque às vagas de garagem ele dá expressamente o nome de "abrigos para veículos" (art. 1331, § 1º; art. 1338).
É regra básica de interpretação jurídica a de que a lei não contém palavras inúteis, de modo que o legislador, ao se valer da expressão "abrigos para veículos" (ao invés de simplesmente "garagem" ou "vaga de garagem") pretendeu delimitar a utilização do espaço a um fim específico, qual seja, a guarda (abrigo) de veículos.
Além do mais, exceto situações em que as vagas sejam separadamente escrituradas, com matrícula própria, são elas consideradas áreas comuns, mesmo que vinculadas exclusivamente ao respectivo apartamento. Nesse caso, são áreas comuns de uso exclusivo. Mas, áreas comuns que são, não podem ter a sua utilização desvirtuada à revelia do que preceitua a convenção.
Mark, o fato de a convenção e o regimento interno ser a "LEI" dentro do condomínio não impede que o alcance de tal lei seja limitado por legislação.
Hen_BH, muito esclarecedora sua resposta, a qual agradeço-lhe.
Em relação ao Código parecer estabelecer a utilização exclusiva dessas áreas para a guarda de veículos, parece-me que o argumento utilizada é um raciocínio circular. Veja que "garagem" já é, por si só, um lugar próprio para estacionar e guardar veículos. É portanto, sinônimo de "abrigos para veículos". Assim sendo, o uso da expressão "abrigos para veículos" não acrescenta palavras que, de acordo com a mencionada regra interpretação jurídica, qualificariam de modo mais restrito aquilo a que "garagem" se refere.
Em relação a vagas de garagem não separadamente escrituradas, não se depreende de imediato que elas sejam áreas comuns. Vagas de garagem podem ser designadas áreas comuns de uso exclusivo se forem, em primeiro lugar, de propriedade comum. No entanto, as vagas vinculadas são de propriedade exclusiva. A existência de vagas de propriedade exclusiva, e não apenas uso exclusivo, é prevista já no caput e § 1º do art. 1331 do Código Civil. Vê espaço para se considerar como área comum uma propriedade exclusiva?
"Veja que "garagem" já é, por si só, um lugar próprio para estacionar e guardar veículos. É portanto, sinônimo de "abrigos para veículos"."
O problema é que a linguagem jurídica no mais das vezes não segue essa lógica. Na linguagem comum, até poderíamos dizer que a utilização de "abrigos para veículos" e "garagem" levaria a um suposto raciocínio circular, por se tratarem de idêntica coisa.
Ocorre que por não ser ciência exata, não raras vezes o direito dá conformações diferentes àquilo que em um primeiro momento, na linguagem comum, pode parecer igual.
Ninguém discute que, em linguagem comum, uma casa vazia (estrutura com paredes, telhado, canos, fios etc.) é a mesma e idêntica casa (estrutura com paredes, telhado, canos, fios etc.) habitada por uma família. Vazia ou habitada, é casa.
Ou que, nessa mesma linguagem, uma sepultura vazia (estrutura de concreto, com uma cova para se depositar restos mortais) seja tão sepultura (estrutura de concreto, com uma cova para se depositar restos mortais) quando haja nela um corpo. Vazia ou "habitada", é sepultura.
No Direito, entretanto, embora se tratem dos mesmos objetos (casa e sepultura), o tratamento de proteção que se lhes defere pode ser totalmente distinto quando se trate de diferenciar uma casa ou sepultura vazias, de uma casa habitada (para efeito de proteção da inviolabilidade do domicílio) ou sepultura na qual repousem restos mortais (para efeito do crime de violação de sepultura).
Semanticamente, ou seja, na linguagem comum, são a mesma coisa. Juridicamente, ainda que ostentem os mesmos nomes, e até mesmo alguma similitude estrutural, trata-se de coisas totalmente diversas.
Desse modo, quando a Constituição Federal diz que "a casa é asilo inviolável" embora esteja se valendo de uma expressão que, no cotidiano, possa remeter a qualquer "casa", ela será assim qualificada em razão de um componente que o direito quis lhe atribuir para diferenciá-la das demais (o lar/refúgio de uma família).
Pode, inclusive (como de fato o faz), estender o conceito de "casa" a objetos e/ou lugares que, em linguagem comum, não o seriam. A boleia de um caminhão, enquanto o caminhoneiro nela repouse a noite estacionado em um posto de gasolina, não é, semanticamente, uma casa, no sentido comum.
Mas o Direito assim a qualifica para efeito de proteção da inviolabilidade noturna da "casa".
Do mesmo modo, quando o Código Penal criminaliza a violação de sepultura, diferencia aquela que está vazia daquela em que haja restos mortais, embora se possa dizer que ambas são "sepulturas".
Do mesmo modo, pode o Direito, como ciência (e técnica) se utilizar de nomes e ou expressões distintas para se referir a um mesmo objeto, buscando com isso particularizá-lo ou mesmo restringir alcances de significado.
Mas para além das questões pontuadas, tenho que as disposições de uma convenção de condomínio só deixa de prevalecer se se apresentar totalmente dissociada da lei, fora de um critério de razoabilidade. E não vejo que ela destoe da lei nem da razoabilidade quando veda a utilização de um abrigo para veículos (ou garagem) para fins diversos da guarda de um veículo.
Muito me honra a atenção dada em sua respostas, longas e redigidas com esmero.
Permita-me refletir que a linguagem comum não é tão separada da Direito como entendi de sua resposta. Se assim o fosse, não seria razoável o art. 3 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: "Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece." Ora, não seria razoável exigir de toda a população o cumprimento de lei se esta atribuísse às palavras valores semânticos distintos do que a linguagem comum lhes atribui.
Ocorro, a meu ver, que a linguagem comum, por si só, já é rica em valores semânticos. "Casa", por exemplo, não se encontra em dicionários não-técnicos com um valor semântico tão restrito quanto o que mencionou (estrutura com paredes, telhado, canos, fios etc.). O significado de casa na expressão "a casa é asilo inviolável" já é expresso nos dicionários de linguagem comum, que listam duas dezenas de significados para a casa. A especificação de qual desses valores semânticos está em efeito na expressão "a casa é asilo inviolável" não advém do Direito ser uma ciência cuja compreensão total depende de estudo, mas apenas da associação entre "casa" e "asilo". O valor semântico de "casa" é especificado como sendo aquele, dentre as várias possibilidades, quem tem uma sobreposição com os vários valores semânticos possíveis para "asilo".
Da mesma forma, em "violação de sepultura", o entendimento de "sepultura" como sendo uma que contenha restos mortais não vem do Direito, mas da associação dessa palavra com "violação", do entendimento cultural de que se abrir uma estrutura de concreto vazia, ainda que destinada a se depositarem restos mortais, não desrespeita um morto, e do próprio título do capítulo onde se encontra o art. 210 do Código Penal ("DOS CRIMES CONTRA O RESPEITO AOS MORTOS"), do qual se depreende a necessidade de haver um morto para se falar de violação de sepultura.
Lembremos, por fim, que, além das consideração acima sobre a razoabilidade de se exigir que mesmo um leigo entenda a lei se a ler, o próprio legislador é, por vezes leigo, não se requerendo mais do que alfabetização de candidatos ao Poder Legislativo. Assim sendo, um intérprete da lei, como um juiz, não pode supor que as palavras usadas em leis tenham valores semânticos conhecidos apenas por um pequeno grupo de especialistas.