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Os tratados internacionais podem definir delitos e penas?

Os tratados internacionais podem definir delitos e penas?

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No STF, enquanto era discutido o recebimento da denúncia oferecida no famigerado caso "mensalão", voltou à tona a polêmica relacionada com o conceito de organização criminosa. Embora a denúncia do procurador-geral da República tenha feito referência a ela várias vezes, é certo que, no ordenamento jurídico brasileiro, ainda não contamos com nenhuma lei que tenha cuidado da sua definição. Diante dessa lacuna, em todo momento tenta-se fazer valer no nosso direito penal interno o conceito de organização criminosa dado pela Convenção de Palermo, de 2004. A questão concreta que se coloca é a seguinte: pode um tratado ou convenção internacional definir crime ou pena?

A resposta a essa indagação implica, desde logo, fazer a seguinte diferenciação: o direito penal incriminador interno (relações do indivíduo com o ius puniendi do Estado brasileiro) é distinto do direito penal incriminador internacional (relações do indivíduo com o ius puniendi do direito internacional penal).

Quando se trata das relações do indivíduo com o ius puniendi dos organismos internacionais (Tribunal Penal Internacional, v.g.), os tratados e convenções constituem as diretas fontes desse direito penal, ou seja, eles é que definem os crimes e as penas. Isso foi feito, por exemplo, no Tratado de Roma (que criou o TPI). Nele acham-se contemplados os crimes internacionais (crimes de guerra, contra a humanidade etc.) e suas respectivas sanções penais. Como se trata de um ius puniendi que pertence ao TPI (organismo supranacional), a única fonte (direta) desse direito penal só poderia mesmo ser um tratado internacional.

Cuidando-se do direito penal interno (relações do indivíduo com o ius puniendi do Estado brasileiro) tais tratados e convenções não podem servir de fonte do direito penal incriminador, ou seja, nenhum documento internacional, em matéria de definição de crimes e penas, pode ser fonte normativa direta do direito interno brasileiro.

O Tratado de Palermo (que definiu o crime organizado transnacional), por exemplo, nesse diapasão, não possui valor normativo suficiente para delimitar internamente o conceito de organização criminosa (até hoje inexistente no nosso país).


Fundamento

O que acaba de ser dito fundamenta-se no seguinte: quem tem poder de celebrar tratados e convenções é o presidente da República (Poder Executivo) (artigo 84, inciso VIII, da Constituição Federal), mas sua vontade (unilateral) não produz nenhum efeito jurídico enquanto o Congresso Nacional não aprovar (referendar) definitivamente o documento internacional (CF, artigo 49, inciso I). O Parlamento brasileiro, de qualquer modo, não pode alterar o conteúdo daquilo que foi subscrito pelo presidente da República (em outras palavras: não pode alterar o conteúdo do Tratado ou da Convenção). O que resulta aprovado, por decreto legislativo, não é fruto ou expressão de vontade dos parlamentes brasileiros, que não contam com poderes para alterar o conteúdo do que foi celebrado pelo presidente da República. Uma vez referendado o tratado, cabe ao presidente do Senado Federal a promulgação do texto (CF, artigo 57, parágrafo 5º), que será publicado no Diário Oficial.

Mas isso não significa que o tratado já possua valor interno. Depois de aprovado ele deve ser ratificado (pelo Executivo). Após essa ratificação (internacional) o chefe do Poder Executivo expede um decreto de execução (interna), que é publicado no Diário Oficial. É só a partir dessa publicação que o texto ganha força jurídica interna.


Conclusão

Os tratados e convenções configuram fontes diretas (imediatas) do direito internacional penal (relações do indivíduo com o ius puniendi internacional, que pertence a organismos internacionais —TPI, v.g.), mas jamais podem servir de base normativa para o direito penal interno (que cuida das relações do indivíduo com o ius puniendi do Estado brasileiro), cuja única fonte direta só pode ser a lei (ordinária ou complementar).

O que acaba de ser dito expressa o conteúdo do chamado princípio da reserva legal ou princípio da reserva de lei formal. Reserva legal é um conceito muito mais restrito que legalidade (que é um conceito amplo). A única manifestação legislativa que atende ao princípio da reserva legal é a lei formal redigida, discutida, votada e aprovada pelos Parlamentares. Essa lei formal é denominada pela Constituição brasileira de lei ordinária, mas não há impedimento que seja uma lei complementar que exige maioria absoluta (CF, artigo 69).

Ela é a única que pode definir crimes e penas no nosso país. Nem sequer a Constituição Federal pode cumprir esse papel. Ela constitui fonte imediata ou direta do direito penal (em geral), mas não pode definir crimes ou penas ou agravar as existentes. Essa função, por força do nullum crimen, nulla poena sine lege é exclusiva da lei ordinária ou complementar.

Tampouco as medidas provisórias podem invadir essa seara. No que concerne às normas penais incriminadoras (as que definem crimes, penas, medidas de segurança ou que agravam as penas), exclusivamente a lei penal formalmente redigida, discutida e aprovada pelo Parlamento (garantia da lex populi) é que serve de instrumento para essa finalidade. As medidas provisórias só podem ser aceitas em relação às normas penais não incriminadoras (pro libertate), jamais para cuidar do ius puniendi.


Autor

  • Luiz Flávio Gomes

    Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Estou no www.luizflaviogomes.com

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Os tratados internacionais podem definir delitos e penas?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1559, 8 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10506. Acesso em: 19 abr. 2024.