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Usucapião entre Herdeiros

Usucapião entre Herdeiros

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A usucapião é uma forma originária de aquisição da propriedade que se dá pela posse prolongada por certo período de tempo de modo que se torne uma situação jurídica. A palavra tem origem no latim “usu” e “capere”, que significa “tomar pelo uso”, ou seja, a usucapião é uma forma de adquirir a propriedade pelo uso de forma pacífica, prolongada e contínua.

Uma situação muito comum é aquela em que um dos pais vem a falecer e a partir daí um dos filhos fica morando com o sobrevivente, prestando-lhe auxílio e cuidados. Posteriormente, o genitor sobrevivente também falece e este filho segue morando no imóvel. Após o falecimento dos pais, o referido imóvel passa a pertencer aos seus herdeiros, neste caso, aos filhos. Entretanto somente um deles segue no imóvel e os demais não se opõem. Com o passar dos anos o herdeiro que ficou fazendo uso exclusivo do imóvel pleiteia a usucapião do imóvel.

É possível um dos herdeiros usucapir um bem da herança?

Sim. É possível um dos herdeiro pleitear a usucapião de um imóvel objeto de herança em detrimento dos demais herdeiros.

Entretanto, são necessários alguns requisitos para isso, sendo o principal deles o uso exclusivo por este herdeiro, sem qualquer oposição dos demais.

E quais seriam os requisitos? Quando inicia a contagem do prazo?

Os requisitos são aqueles previstos na lei, por exemplo, para o reconhecimento da usucapião extraordinária (art. 1.2382 do CC)é preciso a posse mansa e pacífica do bem e a posse ininterrupta por mais de 15 anos, dispensados o justo título e boa-fé.

Ou seja, é necessário que o herdeiro exerça sua posse de forma exclusiva, sem oposição dos demais herdeiros, com animus domini (agindo como se dono fosse), por 15 anos ininterruptos.

Animus domini é um termo que significa a posse com a intenção de ser dono da coisa. O ânimo de dono pode ser comprovado por aquele herdeiro que além da posse exclusiva, realiza o pagamento dos tributos, faz reparos por sua conta no imóvel, toma decisões de forma exclusiva e não paga aluguel aos demais herdeiros.

Quanto ao início da contagem do prazo ainda há divergência, devendo levar-se em conta a análise do caso concreto. Alguns juristas entendem que o prazo se iniciaria da posse exclusiva. Há ainda os que entendem que só existe a possibilidade de usucapião de imóvel em inventário por terceiro e não entre herdeiros. Isto porque o prazo se iniciaria a partir da partilha dos bens (pois antes disso o bem pertencia ao espólio e não poderia um herdeiro usucapir a fração de outro coerdeiro sem que houvesse a divisão)

Quais os cuidados para não configurar usucapião?

É possível deixar um herdeiro morando no imóvel objeto da herança com segurança, bastando um pouco cautela e se utilizando de alguns mecanismos legais para evitar que se conte prazo para usucapião.

Uma boa opção é que os herdeiros firmem um termo ou contrato onde fique claro que se trata de uma permissão/cessão de uso ao herdeiro beneficiário e que esta posse não configura o direito de propriedade exclusiva. Neste documento também é interessante constar que eventualmente o pagamento de despesas do imóvel ou tributos é condição para uso, mas também não caracteriza posse exclusiva. Todos esses termos devem ser utilizados de modo a reforçar a posição dos demais herdeiros como coproprietários do imóvel.

O que decidem os Tribunais?

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) possui jurisprudência no sentido de que é possível usucapir imóvel objeto de herança, desde que atendidos os requisitos legais da usucapião e que tenha sido exercida a posse exclusiva pelo herdeiro como se dono fosse (animus domini).

Algumas decisões do TJRS:

APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO. EXTRAORDINÁRIA. REQUISITOS DO ART. 1.238 DO CC. PREENCHIDOS. EXERCÍCIO DA POSSE MANSA, PACÍFICA, ININTERRUPTA E COM ANIMUS DOMINI POR LONGO LAPSO TEMPORAL. USO EXCLUSIVO DO IMÓVEL HÁ MAIS DE 30 ANOS EM DETRIMENTO DOS DEMAIS HERDEIROS. IMÓVEL DESTINADO À MORADIA MORADIA E ATIVIDADE ECONÔMICA. APELO PROVIDO. NO CASO EM EXAME, OS ELEMENTOS DE CONVICÇÃO SÃO SUFICIENTES PARA DEMONSTRAR QUE O AUTOR PREENCHE OS REQUISITOS DO ART. 1.238 CC. ASSIM, DECORRIDO LAPSO TEMPORAL DE MAIS DE 30 ANOS DE EXERCÍCIO DE POSSE MANSA, SEM OPOSIÇÃO, ININTERRUPTA E COM ANIMUS DOMINI SOBRE O IMÓVEL, SOMADOS AO USO EXCLUSIVO PARA MORADIA E EXERCÍCIO DE ATIVIDADE ECONÔMICA IMPÕE-SE A DECLARAÇÃO DE DOMÍNIO A FAVOR DO REQUERENTE. CONFIGURADA A INERCIA DOS APELADOS QUE NÃO SE OPUSERAM À POSSE EXCLUSIVA DO AUTOR, COM MEDIDAS EFETIVAS. DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA A RESPEITO. PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO FAVORÁVEL AO PROVIMENTO DO APELO. DECLARADO O DOMÍNIO DO AUTOR SOBRE O IMÓVEL DESCRITO NA INICIAL. APELAÇÃO PROVIDA. (Apelação Cível, Nº 50000278320148210053, Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Glênio José Wasserstein Hekman, Julgado em: 29-06-2022)

APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO (BENS IMÓVEIS). AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO. PROPRIEDADE PLÚRIMA EM CONDOMÍNIO, POR FORÇA DE SUCESSÃO HEREDITÁRIA. VIABILIDADE DE POSTULAÇÃO CONTRA OS DEMAIS HERDEIROS A PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. DEMANDA QUE EXIGE CITAÇÃO DOS DE TODOS HERDEIROS. SENTENÇA DESCONSTITUÍDA. A JURISPRUDÊNCIA TEM ADMITIDO, EM SITUAÇÕES EXCEPCIONALÍSSIMAS, A USUCAPIÃO DE ÁREA DE USO COMUM POR UM DOS CONDÔMINOS, MESMO SE TRATANDO DE PROPRIEDADE PLÚRIMA DECORRENTE DE SUCESSÃO HEREDITÁRIA, QUANDO HÁ PROVA DA POSSE PRÓPRIA E EXCLUSIVA, DECORRENTE DE ATOS INEQUÍVOCOS NESSE SENTIDO, OU SEJA, QUANDO HÁ INTENÇÃO DE TER A COISA EXCLUSIVAMENTE PARA SI, COM A EXCLUSÃO DOS DEMAIS CONDÔMINOS. HIPÓTESE DE DESCONSTITUIÇÃO DA SENTENÇA PORQUANTO NECESSÁRIA A CITAÇÃO DOS DEMAIS HERDEIROS. APELO PARCIALMENTE PROVIDO. UNÂNIME.(Apelação Cível, Nº 50052487520218210029, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liege Puricelli Pires, Julgado em: 23-03-2023)

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. COPROPRIEDADE ENTRE HERDEIROS. AUSÊNCIA DE PROVA CABAL DE POSSE EXCLUSIVA. REQUISITOS LEGAIS AUSENTES. IMPROCEDÊNCIA. REAFIRMAÇÃO DA SENTENÇA. É possível que o herdeiro coproprietário ou condômino adquira a propriedade do imóvel comum pelo usucapião, desde que sobre ele exerça posse exclusiva e com efetivo ânimo de dono e que estejam concomitantemente preenchidos os demais requisitos legais. A relação familiar havida entre as partes explica a permissão ou tolerância dos antigos proprietários, já falecidos, e dos demais herdeiros coproprietários e condôminos com o uso do imóvel pelos demandantes, sem que estes tenham demonstrado, cabalmente, o exercício de posse exclusiva, com ânimo de dono, repelindo a posse daqueles, que não se opuseram pelo prazo legal. Nas circunstâncias do caso, pois, justifica-se reafirmar a sentença que julgou improcedente a pretensão deduzida na ação de usucapião. APELAÇÃO DESPROVIDA.(Apelação Cível, Nº 50005500620188210005, Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos Cini Marchionatti, Julgado em: 15-02-2023)

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO BEM IMÓVEL. USUCAPIÃO. HERDEIRO COM POSSE EXCLUSIVA. POSSIBILIDADE. SENTENÇA DE EXTINÇÃO DO FEITO POR FALTA DE INTERESSE DE AGIR EM RELAÇÃO A FRAÇÃO DA ÁREA RECEBIDA MEDIANTE TESTAMENTO. MODIFICAÇÃO. A ALEGAÇÃO DE POSSE EXCLUSIVA DE HERDEIRO, SEM OPOSIÇÃO, AUTORIZA O AJUIZAMENTO DA AÇÃO DE USUCAPIÃO. PRESENÇA DOS ELEMENTOS PARA A AQUISIÇÃO VIA PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. APELAÇÃO PROVIDA.(Apelação Cível, Nº 50006830920098210023, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Heleno Tregnago Saraiva, Julgado em: 25-08-2022)

Por estas razões podemos concluir que é possível sim a usucapião entre herdeiros, mas também é possível evitar esta situação com um pouco de cautela dos herdeiros.

Recomenda-se e um documento redigido por profissional habilitado visando deixar claro em termos jurídicos qual a forma da posse exercida e quais as condições e deste modo se resguardar de eventuais dissabores familiares futuros.


Autor

  • Janine Bertuol Schmitt

    Bacharel em Direito pela UNISC (2009), pós-graduada em Direito Imobiliário pela Universidade Estácio de Sá (2017). Atuação em assessoria jurídica e contencioso nas áreas de direito de sucessões (inventários e partilha), societário e direito imobiliário (assessoria jurídica para urbanizadoras, imobiliárias, construtoras, corretores). Membro da Comissão de Direito Imobiliário da OAB Subseção de Santa Cruz do Sul/RS (2020/22). Escritora em portais jurídicos (Jusbrasil, Jus.com.br, Direito Net), em revistas jurídicas (Diário das Leis - Boletim do Direito Imobiliário e Revista Síntese do Direito Imobiliário) e jornais locais (coluna quinzenal no Riovale Jornal 2017/19).

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