Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/107216
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

O óbvio que precisa ser dito – STF e a fixação de regime de pena no tráfico privilegiado.

O óbvio que precisa ser dito – STF e a fixação de regime de pena no tráfico privilegiado.

Publicado em .

Nos deparamos no dia 19/10/2023 com a informação sobre a aprovação de uma nova súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal - STF.

A proposta de Súmula Vinculante (PSV 139) fixa o regime aberto e a substituição da pena privativa de liberdade (prisão) por restritiva de direitos (alternativas à prisão) quando for reconhecida a figura do tráfico privilegiado em ação penal envolvendo a Lei de drogas.

A redação aprovada para a súmula vinculante foi a seguinte:

  • "É impositiva a fixação do regime aberto e a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos quando reconhecida a figura do tráfico privilegiado (art. 33, § 4º, da lei 11.343/06) e ausentes vetores negativos na primeira fase da dosimetria (art. 59 do CP), observados os requisitos do art. 33, § 2º, alínea c, e do art. 44, ambos do Código Penal."

A súmula vinculante é um texto que obriga que decisões repetidas do Supremo Tribunal Federal sobre determinada questão constitucional serem seguidas por todos os juízes e pelos órgãos da administração pública.

No “tráfico privilegiado”, a lei permite reduzir a pena pela prática do crime de tráfico de drogas se a pessoa for primária (sem condenação criminal final anterior), de bons antecedentes, não se dedicar a atividades criminosas nem integrar organização criminosa. Preenchidas essas condições, a lei garante o cumprimento da pena em condições menos severas, com regime aberto e a substituição da prisão por penas alternativas, como a prestação de serviços à comunidade.

Nessa toada, o Supremo Tribunal Federal já havia se posicionado anteriormente sobre a necessidade de tratamento jurídico menos rigoroso ao condenado por tráfico de drogas que seja primário e de bons antecedentes, que não se dedique a atividades criminosas nem integre organização criminosa.

Isso porque o legislador acertadamente não desejou incluir o tráfico minorado no regime dos crimes equiparados a hediondos nem nas hipóteses mais severas de concessão de livramento condicional, caso contrário o teria feito de forma expressa e precisa.

O tratamento equiparado à hediondo configura flagrante desproporcionalidade, até porque se foi prevista uma causa de diminuição nesses casos é porque o impacto social é relativamente menor.

Por exemplo:

  1. Foi reconhecido que o tráfico privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei de Drogas) não é crime hediondo (crimes considerados mais graves pela Constituição) (HC 118.533);

  2. Foi declarado inconstitucional a norma que impedia a substituição da pena de prisão por sanções alternativas (HC 97.256); e,

  3. Declarou-se inconstitucional a regra que obrigava o juiz a estabelecer o regime inicial fechado para réus condenados por crimes hediondos (HC 111.840).

A partir da entrada em vigor da Lei nº 13.964/2019, que conferiu nova redação ao art. 112, § 5º, da Lei de Execuções Penais (Lei n. 7.210/1984), "Não se considera hediondo ou equiparado, para os fins da lei, o crime de tráfico de drogas previsto no § 4º do art. 33 da Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006".

Ou seja, a sanção aplicada deve ser proporcional à gravidade do crime cometido (art. 5º, XLVI). Além disso, colocar réus primários, de bons antecedentes e não integrantes de organização criminosa no sistema carcerário facilita o seu recrutamento pelo crime organizado, já que é de conhecimento geral que hoje os presídios e penitenciárias funcionam muito mais como verdadeiros quartéis generais e escolas do crime do que locais que promovem a ressocialização, que fica apenas no papel e longe de materialização no plano fático.

Não existe razão para impor a condenados pela modalidade mais tênue do crime de tráfico de entorpecentes o mesmo regime de pena que se costuma impingir somente a quem é condenado por outros crimes, ou mesmo por tráfico, a mais de 8 anos de pena, ou a reincidentes ou portadores de circunstâncias desfavoráveis.

Digamos que nesses casos o impacto social por não envolver violência ou grave ameaça seria muito maior com a restrição de liberdade de indivíduos primários, não integrantes do crime, já que haveria um considerável aumento nos gastos públicos com manutenção de prisões e no atual sistema carcerário o risco de aumento da criminalidade e não o contrário, com a formação e transformação de pessoas com participação de menor relevância nessa atividade ilícita, simples ‘correios’ ou ‘mulas’, que apenas transportam a droga para terceiros, em troca de alguma vantagem econômica”, em verdadeiras máquinas, líderes do crime e traficantes profissionais.

No entanto, diversos juízes no país descumpriam o entendimento do Supremo Tribunal Federal. Aplicavam regime prisional mais rigoroso (fechado ou semiaberto) a pessoas condenadas por tráfico privilegiado e impediam a substituição da prisão por sanção alternativa.

Por exemplo, a três anos atrás, o STJ necessitou conceder habeas corpus a condenado por tráfico privilegiado com pena de 1 ano e 8 meses para fixar o regime aberto como forma inicial de cumprimento da pena e determinou que todos os presos do Estado de São Paulo que se encontrem em situação igual tivessem o regime inicial alterado do fechado para o aberto (HC 596603/SP, Relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, unânime, data de julgamento: 8/9/2020).

Isso porque, o Tribunal de Justiça de São Paulo/TJSP manteve sentença que impôs a pena prevista para o tráfico privilegiado impondo o regime fechado ao paciente, sob a alegação de hediondez, mesmo com posicionamento do STF sobre a inconstitucionalidade desse fundamento.

É nesse sentido, que o Tribunal considerou necessário editar súmula vinculante para tornar obrigatória a concessão do tratamento mais benéfico previsto na lei penal.

Muitas vezes, principalmente no direito penal, o óbvio precisa muitas vezes ser dito e também transformado em súmula, para vincular os paladinos da justiça e frear a liberdade subjetiva que possuem para aplicar a lei penal ao caso concreto de acordo com suas próprias crenças e vieses punitivistas.

O óbvio sob essa linha de raciocínio é bem-vindo, ao mesmo tempo que denota que nosso processo penal na prática ainda guarda resquícios inquisitivos, nos traz um pouco de alívio por garantir a segurança jurídica e que as penas passem a ser aplicadas de forma mais humana e individualizada de acordo com a natureza e gravidade do delito.

REFERÊNCIAS:

[1] STF aprova súmula que prevê fixação de regime aberto e substituição de pena para tráfico privilegiado. Portal STF, 2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=516517&ori=1. Acesso em 21/10/2023.

[2] HC nº 596603 / SP (2020/0170612-1). Consulta Pública, autuado em 14/07/2020. Disponível em:https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo=HC%20596603. Acesso em: 21/10/2023.

[3] Crime de tráfico privilegiado de entorpecentes não tem natureza hedionda, decide STF. Portal STF, 2016. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=319638. Acesso em: 21/10/2023.

[4] BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidente da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 20/10/2023.

[5] BRASIL. Lei de execução Penal. Lei nº 7210 de 11 de julho de 1984. BRASIL.


Autor


Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelo autor. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi.