O modelo multiportas no direito tributário
um caminho para um contencioso fiscal sustentável
O modelo multiportas no direito tributário: um caminho para um contencioso fiscal sustentável
Thiago de Freitas Alves Pereira|Marcos Antonio Cesar Sanches
Publicado em .
Apontamos a aderência das iniciativas de desenvolvimento do sistema multiportas na Administração Pública à Agenda 2030, especialmente ao ODS 16, enfatizando a importância e o potencial impacto positivo de se consolidar esta mudança de paradigma no tratamento do contencioso fiscal.
Resumo: O presente artigo aborda a ascensão do fenômeno da desjudicialização e a evolução da consensualidade nos conflitos que envolvem a Administração Pública, demonstrando a aderência destas iniciativas com a Agenda 2030 e destacando a importância de se consolidar esta mudança de cultura no contencioso tributário, propondo, ao final, uma estrutura de modelo multiportas em âmbito fiscal sustentado pela transação tributária, autocomposição fiscal e arbitragem tributária.
Palavras-chave: desjudicialização; acesso à justiça; consensualidade; objetivo de desenvolvimento sustentável; contencioso tributário.
Sumário: Introdução; 1. O microssistema normativo de métodos adequados de tratamento de conflitos e a Administração Pública. 2. O objetivo para o desenvolvimento sustentável (ODS) nº 16 do Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento (PNUD) e o sistema multiportas na Administração Pública. 3. O modelo multiportas no Direito Tributário: uma questão de sustentabilidade do contencioso fiscal. 4. Da proposição de uma estrutura de modelo multiportas no Direito Tributário sustentado pela transação tributária, autocomposição fiscal e arbitragem tributária. 4.1. Da transação tributária. 4.2. Da autocomposição fiscal. 4.3. Da arbitragem tributária. 5. Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
Como descrito no site oficial da Organização das Nações Unidas (ONU)4, a Agenda 2030 configura uma lista de 17 objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), ambiciosos e interconectados, que abordam os principais desafios de desenvolvimento enfrentados pelo mundo, havendo 169 metas específicas a serem alcançadas até o ano de 2030.
Dentre eles, o ODS nº 16 tem como objetivo “Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas a todos os níveis.”
Será defendido no presente artigo, que a implantação efetiva dos métodos consensuais de resolução de disputas - modelo multiportas - no âmbito dos conflitos envolvendo o Poder Público, possui aderência direta com o ODS nº 16, especialmente com algumas metas específicas.
Para tanto, buscar-se-á demonstrar a existência do “Microssistema Normativo de Métodos Adequados de Tratamento de Conflitos”, conjunto de normas que hoje incentivam e legitimam o desenvolvimento da autocomposição dos litígios no ordenamento brasileiro, abordando-se, especialmente, a implementação nas demandas titularizadas pela Administração Pública.
Considerando a notória crise do contencioso tributário, que se mostra cada vez mais insustentável, será analisada a importância da transformação do tratamento da alta litigiosidade fiscal, medida determinante para o desenvolvimento de instituições eficazes e para a reconstrução da função judicial do Estado enquanto pacificador de conflitos e provedor do acesso à justiça.
Este caminho tem o potencial de beneficiar o Poder Judiciário, favorecendo o aumento da eficiência na entrega da tutela jurisdicional; a Fazenda Pública, no que tange a otimização da recuperação fiscal; e os contribuintes, por meio da reconstrução de uma relação de maior transparência, diálogo, confiança e cooperação com o Fisco.
A proposição do trabalho, ao final, irá passar pelos principais instrumentos de resolução extrajudicial de conflitos aplicáveis às controvérsias fiscais, quais sejam, a transação tributária, a autocomposição em matéria fiscal e a arbitragem tributária, demonstrando-se o papel e os pontos elementares de funcionamento de cada um destes institutos.
1. O Microssistema Normativo de Métodos Adequados de Tratamento de ConflitoS e a Administração Pública
Entende-se como “Microssistema Normativo de Métodos Adequados de Tratamento de Conflitos” o conjunto de normas que dispõem e estimulam a utilização de instrumentos de consensualidade, com destaque para o Código de Processo Civil - CPC/15, a Lei de Mediação (Lei nº 13.140/2015) e a Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307/1996).
O termo se relaciona com o conceito de justiça ou tribunal multiportas, desenvolvido originariamente pelo professor alemão Frank Sander, da Universidade de Harvard, que no fim dos anos 1970 teria idealizado o chamado multi-door courthouse 5 , proposta que, segundo Carlos Machado6 “tratou de implementar um modelo inclusivo de solução de problemas (...), objetivando o direcionamento dos processos que chegassem aos tribunais para as vias mais adequadas de resolução dos conflitos”.
Com o alastramento do conceito pelo mundo, a ideia fora ampliada, de modo que, atualmente, esta noção se mostra mais abrangente e diz respeito ao conjunto de técnicas/instrumentos legítimos e adequados de resolução de conflitos, que se tem à disposição de forma complementar ao processo judicial tradicional, visto como “uma das portas”.
Importante esclarecer que, no presente trabalho, optamos por priorizar, sempre que possível, o termo multiportas, pois este abrange tanto os instrumentos de autocomposição (ex: conciliação e mediação) como os de heterocomposição (ex: arbitragem), sendo, portanto, mais abrangente que os conceitos de consensualidade e de autocomposição, embora estas ideias também sejam extremamente importantes dentro da pretendida mudança de cultura e de paradigma.
Em interessante artigo a respeito do tema, Fredie Didier7 aprofunda a noção do sistema multiportas brasileiro:
Sistemas auto-organizados são caracterizados por sua capacidade de estruturação e reorganização a partir da interação dos seus elementos integrantes, com crescimento não linear, mas em condições variáveis e progressivamente mais complexas. Essa complexidade pode decorrer dos efeitos recíprocos originados do contato entre seus elementos constitutivos, da agregação de novas partes componentes, da evolução do contexto em que se situa o sistema e da eventual atuação de um supervisor sujeito que pode interferir na conformação do sistema, mas não a determina. Sistemas com essa natureza nunca são um resultado consolidado, mas necessariamente um processo em desenvolvimento.
Dito de outro modo, um sistema auto-organizado, como o sistema brasileiro de justiça multiportas, é marcado por uma construção paulatina, progressiva e sem planejamento. Inicialmente limitado, de modo quase exclusivo, à atuação do Poder Judiciário, o sistema expandiu-se com a agregação de figuras como o agente fiduciário (arts. 31. a 37, Decreto-lei n. 70/1966), o árbitro e as câmaras arbitrais (Lei n. 9.307/1996), os tribunais administrativos, o conciliador e o mediador (Lei n. 13.140/2015), o Conselho Nacional de Justiça e, mais recentemente, as instituições responsáveis pela manutenção de Online Dispute Resolution ODR’s. Sujeitos cuja função já estava diretamente associada à administração da justiça também tiveram, ao longo do tempo, suas atribuições reconfiguradas, permitindo mais facilmente sua visualização como elementos integrantes do sistema, a exemplo do Ministério Público (Resolução n. 118/2014 do CNMP), da Advocacia Pública (art. 19, Lei n. 10.522/2002) e das serventias extrajudiciais.
Sujeitos privados (...) também podem solucionar problemas jurídicos por meio de um processo, que igualmente terá caráter privado (...). Nessas circunstâncias, tais entes podem ser compreendidos como portas de acesso à justiça. Aqui, é relevante perceber que a possibilidade de questionamento das deliberações perante o Judiciário não afasta seu reconhecimento como ambientes apropriados à solução de problemas jurídicos.
Diante do complexo normativo atual que estimula a consensualidade, o mesmo autor8 advoga pela existência do princípio ao estímulo da solução por autocomposição e do princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo civil.
Um dos primeiros atos normativos do microssistema, a Resolução nº 125/2010 do Conselho Nacional do Justiça - CNJ (institui a “Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário”) prevê, em seu art. 1º, parágrafo único, que incumbe aos órgãos judiciários, “antes da solução adjudicada mediante sentença, oferecer outros mecanismos de soluções de controvérsias, em especial os chamados meios consensuais, como a mediação e a conciliação, bem assim prestar atendimento e orientação ao cidadão”.
Já o CPC, considerado norma central do sistema, praticamente estabeleceu uma nova lógica de acesso à justiça, não só estimulando a solução consensual (art. 3º, §3º), mas consolidando a transmutação da função jurisdicional, ao prever a obrigação do Estado em promover a consensualidade, sempre que possível (art. 3º, §2º), e inserir a autocomposição como fase formal do processo, estruturando sua aplicação (art. 334. e artigos 165 a 175)9.
O estímulo à consensualidade se verifica ainda no art. 190, caput, com a previsão dos negócios jurídicos processuais (NJP)10, ao dispor que, nos processos que envolvam direitos que admitam a autocomposição “é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.”
Com relação à autocomposição na Administração Pública, o art. 174. do Código dispõe que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios criarão câmaras de mediação e conciliação, com atribuições relacionadas à solução consensual de conflitos no âmbito administrativo”, com a atribuição de:
I - dirimir conflitos envolvendo órgãos e entidades da administração pública;
II - avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de conciliação, no âmbito da administração pública;
III - promover, quando couber, a celebração de termo de ajustamento de conduta.
No caso da Lei de Mediação (Lei 13.140/2015), há um capítulo próprio destinado à Fazenda Pública, nominado “da autocomposição de conflitos em que for parte pessoa jurídica de direito público”. Logo em seu primeiro dispositivo (art. 32), direciona a União, os Estados e os Municípios a criarem câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos no âmbito dos respectivos órgãos da Advocacia Pública, apontando para o protagonismo que os órgãos jurídicos dos entes federativos devem assumir no esforço pela autocomposição de seus próprios litígios.
Neste sentido, considerando a novidade e dinamismo do tema, relevantes serão as discussões a serem desenvolvidas no FONACASC (Fórum de Coordenadores das Câmaras de Conciliação), órgão técnico do CONPEG (Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal), que tem debatido, em reuniões periódicas, a estrutura adequada, as soluções existentes, as dúvidas, polêmicas, enfim, toda a legitimidade e estrutura adequada do modelo multiportas nos conflitos envolvendo a Administração Pública.
A partir de levantamento preliminar realizado no referido Fórum, ao que parece, mais da metade dos estados-membros11 já possuem Câmaras de Autocomposição instauradas em suas procuradorias estaduais.
Observa-se que alguns entes federativos foram além da mera criação das câmaras de autocomposição e instituíram verdadeiras políticas de resolução alternativa de conflitos, com vistas a estimular a consensualidade frente aos litígios administrativos.
É o caso do Município de São Paulo, por meio da Lei nº 17.324/2020, que “institui a Política de Desjudicialização no âmbito da Administração Pública Municipal Direta e Indireta”, do Estado de Santa Catarina, que editou a Lei nº 18.302/2021, instituindo “o Programa de Incentivo à Desjudicialização e ao Êxito Processual (PRODEX), no âmbito do Poder Executivo” e o Estado o Espírito Santo, com a publicação da Lei Complementar nº 1.011/2022, que institui a “Política de Consensualidade no âmbito da Administração Pública Estadual Direta e Indireta; cria a Câmara de Prevenção e Resolução Administrativa de Conflitos do Espírito Santo - CPRACES; moderniza a Procuradoria-Geral do Estado e dá outras providências”.
Os objetivos dessas políticas constam de forma expressa nos respectivos diplomas legislativos e estão ligados à redução da litigiosidade, ao estímulo à solução adequada das controvérsias, à promoção da solução consensual dos conflitos e ao gerenciamento das demandas administrativas e judiciais, dentre outros.
Para a consolidação do tema na Administração Pública, também importante o conteúdo do art. 26. do Decreto-Lei nº 4.657/1942 (“Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro”), incluído pela Lei nº 13.655/2018, ao prever que:
para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.
A autocomposição também é estimulada na nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021) de forma expressa no art. 151, o qual dispõe que “poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem”, havendo ainda autorização para a extinção de contratos pela via consensual (art. 138, II) e para a realização de aditivos pelos meios compositivos (art. 153).
Ao fazer a análise dos aspectos aqui tratados na Administração Pública, assim discorre Diogo de Figueiredo Moreira Neto12:
A consensualidade, por certo, não estará destinada a substituir as formas tradicionais de ação imperativa do Estado, mas, sem dúvida, representa uma mudança substancial em suas prioridades de atuação, prestigiando o que hoje se vem denominando parceria com a sociedade.
Todas essas tendências atuam no sentido de despojar-se a Administração Pública das características burocráticas que assumiram nos países de tradição jurídica continental europeia, na linha do Direito Administrativo gerado pela Revolução Francesa, e, de certa forma, agravadas e desvirtuadas pela herança ibérica colonial de cunho patrimonialista, e de aproximá-las de modelos mais pragmáticos, como anglo-saxões, que prestigiam o administrado.
A efetiva adoção da consensualidade em conflitos administrativos envolve uma releitura acerca dos elementos que sustentam o direito público, afastando intepretações intransigentes sobre o princípio da legalidade, ou mesmo da primazia e indisponibilidade do interesse público, com a consequente prevalência das ideias de eficiência, vantajosidade e pragmatismo.
Deveras, a própria lógica do princípio da supremacia do interesse público nem sempre pode ser interpretada de forma conflituosa aos interesses privados, considerando a função estatal de promover o bem comum e a fixação do indivíduo como centro da ordem constitucional.
Como destaca Bruno Dubeux13:
verifica-se, nesse sentido, que o dogma da supremacia do interesse público sob o privado foi sofrendo mutações ao longo das últimas décadas, de modo a permitir, no caso concreto e observados os limites constitucionais e legais, a sua disponibilidade e, portanto, a possibilidade da Administração Pública celebrar acordos para, conciliando interesses, resolver conflitos com terceiros.
Buscando trazer elementos objetivos que contribuem na análise da vantajosidade para fins autocomposição, o mesmo autor leciona:
Fatores com o aspecto da questão jurídica envolvida e sua intepretação pelo Poder Judiciário, a análise econômica do direito, o aspecto temporal envolvendo o litígio judicial e o grau de recuperabilidade do crédito, o comportamento, a solvabilidade e a capacidade de pagamento do devedor, bem como o próprio custo da máquina administrativa e judicial podem auxiliar na busca pela melhor fundamentação do acordo a ser celebrado pela Administração Pública.
É certo, portanto, que os instrumentos de autocomposição aplicados aos conflitos que envolvem a Fazenda Pública estão em plena ascensão e consolidação, impondo-se uma nova realidade no tratamento de litígios pela Advocacia Pública, além de uma releitura dos princípios estruturantes do direito administrativo.
2. O Objetivo para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) nº 16 do Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento (PNUD) e o Sistema Multiportas na Administração Pública
Adotada durante a Cúpula das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, realizada em 2015, a Agenda 2030 representa um marco ambicioso que visa enfrentar os desafios globais mais prementes e alcançar um futuro mais sustentável e inclusivo para todos, sendo composta por 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) e 169 metas específicas, a serem alcançadas até o ano de 2030.
Trata-se de uma lista de objetivos universais estabelecidas pela ONU para abordar as questões socioeconômicas e ambientais urgentes, representando um apelo à ação coletiva e engajamento de todos os países, setores da sociedade e indivíduos para transformar o planeta e melhorar a qualidade de vida das pessoas, com ampla abrangência, desde a erradicação da pobreza e da fome, até a promoção da paz, justiça e instituições eficazes.
Cada objetivo tem metas específicas e indicadores mensuráveis, que permitem o acompanhamento do progresso ao longo do tempo, tratando-se de uma rede conectada e interdependente, que aborda os desafios de forma integrada e holística.
Importa destacar, para os objetivos do presente trabalho, o ODS nº 16 (“Paz, Justiça e Instituições Eficazes”), que tem o seguinte enunciado: “Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas a todos os níveis.”
O ODS nº 16 possui 12 metas (algumas adaptadas ao contexto brasileiro14), dentre as quais destacamos: 16.3) promover o Estado de Direito, em nível nacional e internacional, e garantir a igualdade de acesso à justiça para todos; 16.6) Desenvolver instituições eficazes, responsáveis e transparentes em todos os níveis; 16.7) Garantir a tomada de decisão responsiva, inclusiva, participativa e representativa em todos os níveis; 16.10) Assegurar o acesso público à informação e proteger as liberdades fundamentais, em conformidade com a legislação nacional e os acordos internacionais; 16.a) Fortalecer as instituições nacionais relevantes, inclusive por meio da cooperação internacional, para a construção de capacidades em todos os níveis, em particular nos países em desenvolvimento, para a prevenção da violência e o combate ao terrorismo e ao crime.
O alcance deste objetivo é fundamental para o cumprimento de outros da Agenda 2030, pois a paz, justiça e instituições eficazes são requisitos para o desenvolvimento sustentável e para a melhoria da qualidade de vida, em um ambiente de respeito aos direitos humanos e à igualdade.
Na medida em que os métodos adequados de resolução de conflitos, uma vez bem aplicados, podem representar um significativo avanço na promoção da justiça e na pacificação social, eles se tornam pontos relevantes para o propósito; em especial nos conflitos relacionados à Administração Pública, parcela significativa dos processos em tramitação no Poder Judiciário.
Neste contexto, algumas questões relacionadas à consensualidade podem ser destacadas como aspectos que contribuem diretamente para a promoção de sociedades pacíficas, justas e inclusivas, com instituições eficazes em todos os níveis.
Uma delas é a democratização e transformação do acesso à justiça. A autocomposição oferece uma oportunidade para que todas as partes envolvidas em um conflito, incluindo cidadãos, empresas e a própria Administração Pública, tenham voz ativa no processo de resolução, como no caso da negociação, em que se permite que as partes alcancem um acordo mútuo, evitando o litígio e proporcionando uma forma acessível e dialógica de resolver potenciais disputas.
Outro ponto fundamental é o descongestionamento e a otimização da prestação da função jurisdicional pelo Poder Judiciário. O desenvolvimento de outros métodos de resolução de controvérsias alivia a carga do sistema de justiça, diminuindo a morosidade, em busca da duração razoável do processo, permitindo que casos críticos, por exemplo, recebam maior atenção.
Ao incentivar e desenvolver a consensualidade, a Administração Pública demonstra um compromisso com a construção de instituições eficazes, capazes de tomarem decisões responsivas e participativas. Isso envolve a criação de mecanismos que promovam o diálogo e a cooperação entre os diversos atores sociais, fortalecendo, assim, a boa governança e a confiança nas instituições.
Inequívoco, ademais, que a autocomposição contribui para a paz social, pois facilita soluções mutuamente satisfatórias; também ajuda a evitar o agravamento de conflitos e a construir uma cultura de diálogo, essencial para a estabilidade e harmonia no âmago da sociedade.
A solução negociada, aliás, é mais rápida e menos onerosa do que o processo litigioso tradicional, o que beneficia não apenas as partes envolvidas, mas também o Estado, em sentido amplo, que economiza recursos, que pode alocar de forma mais eficaz em áreas prioritárias.
Ora, é clara a aderência direta do desenvolvimento do sistema multiportas no âmbito da Administração Pública com algumas metas específicas do ODS nº 16, especialmente a 16.3 (promoção do Estado de Direito e igualdade no acesso à justiça), 16.6 (desenvolvimento de instituições eficazes) e 16.7 (tomada de decisão responsiva e participativa).
A correlação com a Agenda 2030 é importante, tendo em vista que reforça o compromisso público com a agenda; contribui com a promoção do desenvolvimento sustentável, em todas as suas dimensões; abre portas para a cooperação internacional; alinha o setor público com as expectativas da sociedade global; e viabiliza maior nível de monitoramento e prestação de contas, dada a existência de indicadores vinculados às metas dos objetivos de desenvolvimento sustentável.
Se é possível estabelecer a aderência dos projetos do setor público, que tenham como objeto a consensualidade, com o ODS 16, é provável que, além de se fortalecer o apoio institucional e político, se viabilize a captação de recursos junto a bancos e agências de desenvolvimento nacionais e internacionais15 16, fundos e programas de cooperação internacional, que possuem linhas diferenciadas de crédito e de financiamento para iniciativas ligadas à Agenda 2030.
Conforme “Relatório Anual das Nações Unidas no Brasil 2022”17, o sistema ONU, com suas 24 agências especializadas no país, fundos e programas, trabalhou juntamente com os três poderes, em todos os níveis de governo, e dezenas de parceiros de diversos setores, implementando 273 iniciativas e projetos de cooperação, com execução de U$ 127 milhões em 2022.
Como se vê, é plausível a possibilidade de se aprovar fomento financeiro para iniciativas ligadas à consensualidade no Brasil, especialmente em relação aos conflitos envolvendo o Poder Público, caso em que os efeitos positivos se multiplicam, sendo papel da Advocacia Pública atuar na construção de projetos exequíveis, mas ambiciosos, que desenvolvam estes instrumentos, ampliando a garantia de acesso à justiça, de forma legítima e com o máximo de eficiência.
No tocante à instrumentalização destes ambientes de consensualidade, por exemplo, considerando o estado tecnológico atual, é de se ambicionar o desenvolvimento de plataformas online de resolução de conflitos, as chamadas ODRs (online disputes resolutions), que representam “o uso da tecnologia para apoiar a resolução de conflitos em ambiente virtual.”18. No site da “Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs”, é possível identificar, atualmente, ao menos 17 (dezessete) startups na categoria “resolução de conflitos online”.19
Ocorre que, mais do que um instrumento virtual de facilitação da aplicação dos meios adequados de resolução de conflitos, as ODRs podem ser tratadas e desenvolvidas como método consensual autônomo, desde que turbinadas com inovações tecnológicas de automação, inteligência artificial (IA) e de gestão eficiente de dados e informações20.
Nesta perspectiva, destaca Roberto de Aragão Ribeiro Rodrigues:
A potencialidade máxima das ODRs no âmbito da Advocacia Pública seria alcançada com a elaboração de um desenho institucional que agregue às tradicionais ferramentas autocompositivas o uso da tecnologia, preferencialmente com emprego de inteligência artificial, possibilitando a criação, dentro da estrutura da Advocacia-Geral da União e demais Procuradorias Estaduais e Municipais, de um ambiente de rápido fluxo de informações, com a geração de propostas automatizadas de acordos aos particulares a partir de parâmetros previamente definidos, sem a necessidade de submissão de tais controvérsias do Poder Judiciário, com base no permissivo contido no art. 32, §3º, da Lei de Mediação21.
Ressalte-se que, em pesquisa realizada em 2022 no âmbito do Programa Justiça 4.0, também desenvolvida pelo CNJ, com apoio do PNUD, identificou-se 111 projetos de inteligência artificial, somente no Poder Judiciário22.
O envolvimento do PNUD e a demonstrada aderência com o ODS 16 favorece o desenvolvimento de projetos nesta área da transformação digital, a serem capitaneados pelas Procuradorias23 para a criação de Câmaras de Autocomposição já instrumentalizadas com plataformas digitais de resolução de conflitos, equipadas com soluções de IA. Como dito, tais iniciativas podem ser contempladas por linhas de crédito e de financiamento diferenciadas para projetos do setor público, acessíveis pelos bancos de financiamento, agências de fomento, fundos internacionais ou programas de cooperação.
Resta claro, portanto, que o desenvolvimento e a consolidação da cultura de prevenção e resolução adequada de litígios, por meio do sistema multiportas na Administração Pública, têm total aderência com a Agenda 2030, sobretudo com o ODS 16, o que pode viabilizar maior apoio institucional e político a projetos públicos nesta seara, inclusive com a perspectiva de se buscar incentivo financeiro para a sua efetiva estruturação.
Dado o grande leque de possibilidades de implementação dos meios adequados de resolução de litígios envolvendo a Administração Pública, o presente trabalho focará em uma das áreas que ocupa a maioria dos debates a respeito da crise do Poder Judiciário: o contencioso fiscal.
3. O MODELO MULTIPORTAS NO DIREITO TRIBUTÁRIO: UMA QUESTÃO DE SUSTENTABILIDADE DO CONTENCIOSO FISCAL
O contencioso tributário, especialmente as execuções fiscais, vem sendo apontado nos últimos anos como um dos principais gargalos do sistema judiciário brasileiro, o que faz com que o tratamento da alta litigiosidade fiscal seja imprescindível para o desenvolvimento de instituições mais eficazes, especialmente no que tange a garantia fundamental de acesso à justiça.
Ocorre que, sobretudo em matéria fiscal, não basta o envolvimento apenas do Poder Judiciário, por meio do aprimoramento da tutela jurisdicional efetiva; é necessário esforço também da Fazenda Pública, figura marcante dentre os principais litigantes do país e justamente o ente que detém a titularidade do crédito público e o poder de desenvolver ferramentas efetivas de prevenção e de resolução consensual dos conflitos que lhe envolvem.
Esta transformação na gestão do contencioso fiscal tem o potencial de desobstruir o Judiciário e ao mesmo tempo qualificar a relação Fisco/contribuintes, o que favorece a pacificação dos conflitos e o aumento do índice de confiança nas instituições públicas. O desenvolvimento do sistema multiportas é, sem dúvida alguma, um dos caminhos para alcançar esta transformação.
Frise-se que, não se quer afastar a via da jurisdição, mas sim abrir novas portas, novos caminhos, novas alternativas, de mesma equivalência, mas que se mostrem mais adequadas para a solução de cada espécie de conflito.
Dito isto, também é possível vislumbrar a vinculação de projetos que visem o desenvolvimento da consensualidade nas relações fiscais e o ODS 16, que visa: promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.
Em âmbito tributário, aliás, é possível supor outras repercussões decorrentes da mudança de paradigma rumo à prevenção de litígios e cultura da consensualidade, tais como a otimização da arrecadação de tributos, cuja boa governança tende a retornar positivamente à sociedade, além da reconstrução da confiança da relação com os contribuintes e do aprimoramento da justiça fiscal.
É certo que, historicamente, há uma certa resistência quanto a abertura do direito público, especialmente o Direito Tributário, à consensualidade, por questões ligadas à indisponibilidade do interesse público24, legalidade25 e isonomia26. Todavia, tais obstáculos vêm sendo paulatinamente superados, sendo seguro afirmar que já existe uma sólida base doutrinária27 a respaldar o desenvolvimento dos meios adequados de solução de conflitos em matéria fiscal28.
Digna de registro, neste ponto, a colocação de Carlos Machado:
o propósito das técnicas adequadas de solução de conflitos em matéria tributária, pelo menos na perspectiva da proposta que ora se coloca, não visa à vulneração dos balizamentos legislativos objetivamente traçados nos recintos da competência dos parlamentos, mas, sim, a um reconhecimento de espaços legítimos de diálogo e de integração entre os sujeitos envolvidos na relação fiscal, potencialmente indutores de litigiosidade.29
A própria disponibilidade do crédito tributário vem sendo sustentada com considerável robustez30, tendo em vista que se trata de um direito patrimonial, de interesse público secundário/fazendário, cuja disponibilidade é premissa adotada pelo Sistema Tributário Nacional, ao permitir a sua disposição de forma direta, mas condicionada, por meio de instrumentos como a isenção, remissão, anistia, parcelamento e a própria transação.
Entretanto, o fato de ser disponível “não significa que o agente público possa dele dispor, livre e indiscriminadamente”31, sendo necessário que esta disposição seja autorizada por meio de lei, de iniciativa do legítimo representante do povo, e desde que se conforme ao sistema constitucional, ao regime jurídico administrativo e outras exigências que tem sido desenvolvidas com a evolução do tema, como a vantajosidade e a economicidade da Administração Pública.
Isto posto, e considerando que atualmente ainda há uma grande e desnecessária concentração da resolução dos litígios tributários no âmbito do Judiciário, é pertinente que se analise os dados, cada vez mais robustos e estruturados, advindos das crescentes pesquisas nesta seara, de forma a interpretar o estado de coisas atual, olhando para o passado, promovendo os ajustes necessários no presente, com o intuito de impactar positivamente no futuro.
Recente relatório publicado em 2021 pelo Núcleo de Tributação do INSPER indica a utilização das soluções alternativas de conflitos na esfera tributária ainda na fase pré-contenciosa como instrumento de governança no cenário internacional. Países como Alemanha, França, Estados Unidos e Itália preveem em sua legislação a possibilidade de transação, enquanto Portugal e Itália autorizam a arbitragem de débitos tributários32.
Nesta linha, a intensificação dos estudos recentes, capitaneados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), evidenciam que a imediata transformação na gestão do contencioso fiscal é crucial não só para as relações tributárias, mas para a sustentabilidade de todo o sistema judiciário.
Cumpre dar destaque à 19ª edição do “Relatório Justiça em Números”33, publicado em 2022, que inaugurou “nova etapa de construção metodológica dos dados estatísticos e indicadores do Poder Judiciário nacional”, tendo como objetivo a construção de uma cultura institucional baseada em dados (“data-driven administration”) e como pilar a utilização do Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário (DataJud) como fonte originária de obtenção de dados, que tem como diferencial o envio e recebimento automatizado de informações junto às cortes brasileiras, em iniciativa de “transparência ativa, governança e democracia participativa”.
O novo documento confirma as estatísticas – bastante divulgadas – dos anos anteriores, destacando que as execuções fiscais representam 35% do total de casos pendentes e 65% das execuções pendentes no Poder Judiciário, com uma taxa de congestionamento de aproximadamente 90% e tempo médio de tramitação de 6 anos e 11 meses34.
Além disso, no capítulo em que se faz o levantamento das classes e assuntos mais demandados, verificou-se que matérias de Direito Tributário figuram entre os assuntos mais recorrentes da Justiça Estadual e o assunto mais demandado no segundo grau na Justiça Federal.
Em estudo ainda mais especializado, também realizado pelo CNJ, em parceria com o INSPER, no âmbito da 5ª edição do “Justiça Pesquisa – Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário Brasileiro”35, publicado em 2022, foram apresentados alguns dados alarmantes, como o de que o valor discutido no contencioso administrativo e judicial brasileiro na esfera tributária equivale a quase 75% do PIB do país e a de que a conclusão de um processo tributário no país leva em média 18 anos e 11 meses, incluindo as fases administrativa e judicial.
Este estado de coisas provoca enorme insegurança nas relações tributárias, trazendo diversos prejuízos socioeconômicos, que interferem negativamente no desenvolvimento do país, em razão de um péssimo ambiente de negócios, dificuldade de atração de investimentos, além de um gigantesco estoque de capital improdutivo, provisionado para as disputas fiscais.
Tratando-se de problema complexo, não haverá solução única, de modo que, uma transformação demanda, por exemplo, medidas de prevenção de litígios, como a consolidação, simplificação, sistematização e avaliação periódica da legislação e do sistema tributário como um todo (vide o esforço para a aprovação da Reforma Tributária); criação de estímulos positivos de facilitação do cumprimento de obrigações tributárias e de autorregularização (por meio, por exemplo, de programas de conformidade tributária); além da construção de uma relação dialógica e cooperativa entre o Fisco e os contribuintes, com menos coerção e mais transparência e confiança.
Assim, para além destas medidas de prevenção à litigiosidade, enfatizamos a necessidade da construção de um sistema multiportas em âmbito tributário, por meio do desenvolvimento da cultura da consensualidade e da legitimação dos métodos adequados de solução dos conflitos fiscais, que se revelem como alternativas de igual estatura à via da justiça estatal.
Confirmando a importância desta mudança de paradigma, destacamos o esforço do CNJ, que nos últimos publicou pelo menos dois atos normativos neste sentido, a Recomendação nº 120/2021, em que “Recomenda o tratamento adequado de conflitos de natureza tributária, quando possível pela via da autocomposição” e a Resolução nº 471/2022, que “Dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado à Alta Litigiosidade do Contencioso Tributário no âmbito do Poder Judiciário”, que tem como uma de suas diretrizes, a “priorização de soluções consensuais em disputas tributárias e a prevenção e desjudicialização de demandas tributárias”.
A primeira, editada a título de recomendação, mencionou expressamente o microssistema normativo de métodos adequados de tratamento de conflitos e justifica suas orientações com estatísticas do contencioso tributário, mencionando a necessidade de tratamento das demandas fiscais repetitivas e de iniciativas de redução e solução dos litígios tributários. O objetivo é orientar os magistrados que atuam em questões tributárias a priorizar, sempre que possível, a resolução consensual de conflitos, incentivando a negociação, conciliação, mediação e a transação tributária (também há menção aos negócios jurídicos processuais e à arbitragem tributária).
Recomenda, ainda, a implementação de Centros Judiciários de Solução de Conflitos Tributários (CEJUSC Tributário) para o tratamento pré-processual ou em demandas já ajuizadas, propondo a celebração de protocolos institucionais com os entes públicos para facilitar a autocomposição, divulgação de propostas de transação e otimização de fluxos administrativos.
Em seguida, como resultado do amadurecimento dos estudos e do fortalecimento da consensualidade, foi publicada a Resolução nº 471/2022, cujo objetivo é aprimorar, a nível de Política Judiciária o tratamento da elevada quantidade de processos tributários em andamento, buscando soluções consensuais e promovendo a cooperação entre os atores envolvidos.
Para implementar a política, recomenda a formação de uma rede constituída por todos os órgãos do Poder Judiciário e entidades parceiras, com a missão de desenvolver ações, pesquisas e projetos para reduzir a alta litigiosidade fiscal e aplicar uniformemente a legislação tributária. Também incentiva práticas de autocomposição e o aprimoramento de ferramentas digitais para tratamento de demandas fiscais, visando aprimorar a prestação jurisdicional e garantir eficiência e segurança jurídica no tratamento destes conflitos.
O CNJ é órgão do Poder Judiciário e tem como uma das funções promover o aprimoramento da prestação jurisdicional e incentivar métodos consensuais de resolução de conflitos, tendo claramente consolidado a imprescindibilidade de se efetivar a cultura da consensualidade, dando grande relevância ao contencioso tributário. Todavia, para que se avance efetivamente na efetividade da tutela jurisdicional e no acesso à justiça, é necessário o engajamento dos outros poderes e das demais funções essenciais à justiça, sobretudo a Advocacia Pública.
É de se reconhecer que o Legislativo também vem cumprindo parcialmente sua missão, pois é possível identificar o microssistema normativo de métodos adequados de solução de conflitos. Por outro lado, existem ainda lacunas legislativas a serem supridas, tanto em âmbito nacional (regulamentação da arbitragem tributária e de normas gerais de transação tributária), mas principalmente em âmbito local (diversos estados ainda não possuem Câmaras de Autocomposição, leis de transação tributária, tampouco delegações autorizando as Procuradorias a celebrar acordos).
Ainda assim, é do Poder Executivo que se deve esperar maior esforço na atuação preventiva e resolutiva dos litígios, especialmente em matéria fiscal, devendo a Advocacia Pública assumir o protagonismo no convencimento e no assessoramento para a construção da estrutura normativa necessária à legitimação da consensualidade e na operacionalização do sistema multiportas na Administração Pública.
Em primeiro lugar porque, de modo geral, os diplomas legais necessários são de sua iniciativa privativa; em segundo lugar porque, segundo o painel “Grandes Litigantes” do CNJ36, os entes públicos (incluindo entidades da Administração Indireta e o Ministério Público) aparecem repetidamente entre os maiores litigantes, em casos pendentes ou novos, em ambos os polos; em terceiro lugar porque, o acesso à justiça é direito fundamental garantido constitucionalmente e dever do Estado (art. 3º, §2º, do CPC), que passa por uma nova concepção, que se afasta da noção de inafastabilidade da jurisdição como “reserva de mercado” para o monopólio da justiça estatal 37, e se aproxima dos modernos conceitos de justiça coexistencial 38, jurisdição compartilhada e de equivalentes jurisdicionais 39 .
Tais ideias vão ao encontro de uma visão de função jurisdicional como dever estatal de promover a prevenção e a justa composição dos conflitos, através do método mais adequado a cada controvérsia, proporcionando diferentes vias para a pacificação e garantia da harmonia social.
Com mais razão ainda nas relações fiscais, em que, para Rodolfo de Camargo Mancuso:
esta proeminência do judiciário (...) não é de aplicar-se à cobrança da dívida ativa do Poder Público, o que bem pode ser realizado em seus próprios quadros administrativos, o que não ofende direta nem obliquamente o princípio da inafastabilidade da jurisdição, pois tal dispositivo não afirma qualquer sorte de monopólio da justiça estatal e ainda certo que a obrigação tributária integra o âmbito do interesse fazendário, ou seja, interesse público secundário passível de ser transacionado, por exemplo40 .
Assim, para além dos esforços do CNJ, deve-se ultrapassar a ideia de que o fomento à consensualidade é papel somente de Política Judiciária, sendo crucial que seja tratada como Política de Estado, o que materializa a lógica da concepção residual do acesso à justiça via sistema judiciário, principalmente quando envolve interesse público fazendário.
No que tange a recuperação da dívida ativa, por exemplo, é certo que, atualmente, tem se mostrado mais efetiva a cobrança administrativa, por meio do protesto da Certidão da Dívida Ativa (CDA) ou da negativação em órgãos de proteção ao crédito, do que a via da execução fiscal, que deve ser cada vez mais tratada como residual41.
Aliás, no próprio documento “Justiça em Números 2022”, é possível encontrar afirmações neste sentido:
(o) processo de execução fiscal chega ao Poder Judiciário depois que as tentativas de recuperação do crédito tributário se frustraram na via administrativa, provocando sua inscrição na dívida ativa. Dessa forma, o processo judicial acaba por repetir etapas e providências de localização do devedor ou patrimônio capaz de satisfazer o crédito tributário já adotadas, sem sucesso, pela administração fazendária ou pelo conselho de fiscalização profissional. Acabam chegando ao Judiciário títulos de dívidas antigas ou com tentativas prévias de cobranças e, por consequência, com menor probabilidade de recuperação.42
A própria transação tributária também tem o potencial de diminuir a litigiosidade, especificamente com relação à execução fiscal; da mesma forma os programas de conformidade tributária43, por meio de técnicas similares às de regulação responsiva, que envolve a busca por instrumentos regulatórios diversificados e estratégias dinâmicas de resposta às condutas dos regulados, para a obtenção de melhores índices de conformidade regulatória, o que, em âmbito fiscal, pode potencializar a autorregulação e o cumprimento voluntário das obrigações.
Cumpre destacar, neste ponto, que a relação Fisco/contribuintes é importante para a previsibilidade e segurança na arrecadação, por meio, por exemplo, da transparência na divulgação de informações e da cooperação mútua, de modo que o Estado recebe antes e sem maiores custos de cobrança e o contribuinte paga menos, já que não sofre multas. Para tanto, é importante que se amplie os incentivos positivos ao cumprimento das obrigações fiscais, com menos coerção e mais cooperação, o que pode ser feito por meio destes programas de conformidade tributária.
Na prática, porém, consignou-se no “Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário”44 a escassez de informações e a ainda tímida experiência dos entes federativos com os instrumentos de consensualidade em âmbito fiscal, revelando-se o indicativo de que “os meios adequados de solução de conflitos ainda são pouco explorados no âmbito tributário, com escassa diversidade de modelos e poucos dados, e quanto aos que geram dados, baixos percentuais de utilização”.
Por outro lado, entendeu-se que a utilização destes meios adequados de solução de conflitos deve ser fomentada, “podendo auxiliar não somente na celeridade e na redução dos estoques processuais”, e ainda “propiciar às partes um tratamento qualificado do conflito tributário, bem como um estreitamento na relação entre Administração Tributária e contribuinte, o que impactaria positivamente o ambiente negocial de país”.
Em contrapartida, foi divulgado em 2022 o Relatório Final da Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojetos de proposições legislativas que dinamizem, unifiquem e modernizem o processo administrativo e tributário nacional, instituída pelo Ato Conjunto dos Presidentes do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal n. 01/202245.
Além de outras questões sensíveis ao contencioso tributário, a Comissão apresentou anteprojetos de lei específicos com relação à mediação tributária da União e à arbitragem tributária, além de normas gerais de prevenção de litígios e de consensualidade, medidas que geraram alguns projetos de lei já em trâmite nas casas do Congresso Nacional.
Demonstrado o cabimento e a importância de se desenvolver a consensualidade em âmbito fiscal e conjugando os estudos e as iniciativas existentes, propomos, a seguir, uma estrutura de modelo multiportas no Direito Tributário, sustentado por três grandes pilares.
4. DA PROPOSIÇÃO DE UMA ESTRUTURA DE MODELO MULTIPORTAS NO DIREITO TRIBUTÁRIO SUSTENTADO PELA TRANSAÇÃO TRIBUTÁRIA, AUTOCOMPOSIÇÃO FISCAL E ARBITRAGEM TRIBUTÁRIA
Como anunciado, propomos o desenvolvimento do modelo multiportas no Direito Tributário sustentado por três grandes instrumentos de resolução extrajudicial dos conflitos: a transação tributária, a autocomposição fiscal e a arbitragem tributária.
É certo que tais métodos de resolução de conflitos fiscais já são conhecidos, um já implementado parcialmente e em plena ascensão (ex: transação tributária), um com o papel ainda mal compreendido (ex: autocomposição fiscal) e o outro ainda incipiente (ex: arbitragem tributária), tratando-se, portanto, de uma proposta de consolidação e estruturação, capaz de trazer clareza sobre a complementaridade e interdependência entre estas diferentes ferramentas.
Neste sentido, quanto mais o desenvolvimento do modelo multiportas seja tratado como um microssistema, com aderência direta à Agenda 2030, especificamente com relação ao ODS nº 16, maior será a coesão e eficiência na aplicação dos seus diferentes instrumentos, facilitando o apoio institucional e financeiro para o desenvolvimento das estruturas necessárias, inclusive tecnológicas, para maior eficácia das instituições voltadas à Gestão Fiscal.
O avanço nestas direções tem a capacidade de preencher diferentes lacunas, apresentando alternativas adequadas de resolução das diferentes espécies de conflitos fiscais, conforme demonstraremos a seguir.
4.1. DA TRANSAÇÃO TRIBUTÁRIA
A transação tributária é causa de extinção do crédito tributário, prevista nos art. 156. e 171 do Código Tributário Nacional (CTN). Depende de lei de cada ente tributante, que deve indicar a autoridade competente para a sua autorização, tratando-se de caso de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo (art. 61, §1º, II, “b”, da CF/88).
Tais exigências tem razão de ser, pois a transação representa hipótese de disposição do crédito tributário, de titularidade pública, cuja manifestação de vontade depende do devido processo legislativo e de iniciativa do legítimo mandatário do povo.
Durante décadas, a ferramenta restou subutilizada, já que, quando muito, era materializada por meio de programas de recuperação fiscal (REFIS), que se caracterizavam por aplicações pontuais e temporárias, sendo alvo de diversas críticas atualmente, muitas das quais aderimos. Nos últimos anos, porém, devido ao ambiente de ascensão dos métodos adequados de resolução de conflitos, reforçado pelo CPC, passou a ganhar maior relevância e notoriedade, e hoje figura no epicentro das discussões envolvendo o sistema multiportas no Direito Tributário.
Embora já existissem iniciativas estaduais e municipais esparsas, algumas bastante interessantes, como do Município de Blumenau46, foi com a evolução em âmbito federal que se verificou a importância de uma regulamentação estruturada, perene, definitiva e mais justa.
Neste sentido, foi editada a Medida Provisória nº 899/2019, convertida na Lei nº 13.988/20, que regulamentou o art. 171. do CTN, com o objetivo de criar “mecanismos indutores de autocomposição em causas de natureza fiscal”, e tendo por objeto o estabelecimento de requisitos e condições para a realização de “transação resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária”, autorizando a elaboração de acordos entre contribuintes e a administração tributária federal, que envolvam créditos constituídos, sendo concedidos descontos, ampliação de prazos e parcelamentos especiais, visando diminuir consideravelmente o estoque de litígios tributários, além de incrementar a arrecadação fiscal.
Atualmente, é regulamentada pela Portaria PGFN/ME nº 6757/2022 (“Regulamenta a transação na cobrança de créditos da União e do FGTS”) e pela Portaria RFB nº 208/2022 (“Regulamenta a transação de créditos tributários sob administração da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil”).
Os acordos se concretizam por duas grandes vias, a transação por adesão e transação individual, tendo como grande trunfo o desenvolvimento do rating do crédito, que possibilita a formatação de acordos diferenciados para contribuintes e créditos de diferentes perfis, como os de difícil recuperação ou irrecuperáveis, de pequeno valor e mesmo por capacidade de pagamento, sem se descuidar da possibilidade de propostas individuais, mediante requisitos e condições específicas.
Conforme o último relatório do Núcleo de Pesquisa em Tributação do INSPER47, somente por meio das transações por adesão foram negociados mais de R$264 bilhões, em mais de 1 milhão de pactos, com valor total da dívida de quase R$175 bilhões, após a aplicação dos descontos e valor arrecadado, até Julho/2022, de quase R$14 bilhões, tendo se estimado um desconto geral de 41%48.
Neste mesmo relatório, encontrou-se apenas 7 leis estaduais sobre transação tributária, editadas após a vigência do CPC/2015.49 Destaca-se o Estado de São Paulo, que regulamentou a transação por meio da Lei nº 13.293/2020 (e da Portaria SUB CTF nº 20/2020) e estabeleceu critérios de mensuração da capacidade de pagamento diversos da União, o que tem gerado debate a respeito do uso de diferentes fórmulas pelos entes, com relação ao mesmo contribuinte.50
Sobre este ponto, restou consignado no referido relatório do INSPER que o núcleo “passará a acompanhar as fórmulas apresentadas pelos diferentes entes públicos, sendo este apenas o primeiro ensaio sobre o tópico”, e ainda, que nos próximos relatórios irão tentar “simular a aplicação das diferentes fórmulas em contribuintes”, além de ouvir a iniciativa privada, em especial de instituições financeiras, que “possuem bastante tempo de trato com a questão, para que se possam fazer mais inferências sobre algo incipiente para as administrações tributárias nacionais.”
A transação tributária, portanto, evoluiu consideravelmente nos últimos anos, tanto em âmbito federal, como em âmbito estadual e municipal, sendo tema dinâmico cujas discussões vem enriquecendo à medida que aumenta a experiência dos entes públicos.
Sua efetivação, como dito, depende de aprovação de lei autorizativa por cada ente tributante, esforço que deve ser desempenhado pela Advocacia Pública, tanto no convencimento institucional e político, como na construção legislativa, de modo a garantir a constitucionalidade da norma, com a máxima eficiência do instrumento.
Para o presente trabalho, porém, o ponto mais importante é identificar o papel da transação tributária no modelo proposto, que é o de desenvolver a consensualidade para as situações de cobrança da dívida ativa, estimulando a regularização, diminuindo o estoque de ações tributárias (executivas ou antiexacionais) e potencializando a recuperação fiscal.
Desde a sua origem, o referido instituto tem a função de facilitar o pagamento do débito fiscal e sua consequente extinção, o que vem se consolidando nesta recente evolução, sendo pertinente que se mantenha o uso da ferramenta para esta finalidade, criando-se estrutura diversa de consensualidade para conflitos tributários com outro perfil, o que será demonstrado a seguir.
4.2. DA AUTOCOMPOSIÇÃO EM MATÉRIA FISCAL
A autocomposição é "a forma de solução de conflitos em que as partes, por si mesmas ou por intermédio de seus representantes, acordam, pondo fim à controvérsia".51
Trata-se de gênero, que comporta diferentes classificações, por técnicas, conforme haja (conciliação e mediação) ou não (negociação) o auxílio de um terceiro imparcial por exemplo, ou mesmo quanto à forma de conclusão, em que é possível mencionar a aceitação, a renúncia e a transação, sendo esta última caracterizada pela realização de concessões mútuas pelas partes.
Portanto, o termo transação, em seu sentido amplo, diz respeito a um acordo em que se verifica a existência de concessões recíprocas entre as partes; já a transação tributária, se consolidou como conceito técnico do Direito Tributário, que significa um acordo em que se viabiliza o pagamento do crédito, com algum tipo de vantagem, e que gerará a sua extinção.
Por isso, optamos pelo termo autocomposição, que possui uma acepção mais ampla, de gênero, para incluir todas as técnicas e formas de acordos, inclusive a transação, propriamente dita. E sua função é residual em relação à transação tributária, justamente para alcançar conflitos fiscais com outros perfis52, como as demandas que envolvem repetição do indébito tributário e as controvérsias inerentes à relação Fisco/contribuinte, sem discussão direta sobre o crédito tributário.
O ponto crítico para a sua efetivação também envolve a exigência de lei. A vantagem é a de que poderá ser utilizada a estrutura normativa geral das autocomposições, caso já existente no respectivo ente53, desde que não se afaste expressamente as relações tributárias de sua aplicação.
Tal limitação, aliás, acaso pautada na equivocada ideia de que a transação tributária supre todas as possibilidades de resolução consensual de conflitos tributários, cria uma indesejada lacuna no modelo proposto. Exatamente por esta razão é que se propõe neste tópico uma ferramenta mais ampla, capaz de atender aos conflitos fiscais não abarcados pela transação.
Na prática, o modelo que vem se consolidando é a aprovação de leis que promovem autorizações e delegações de poder à Advocacia Pública, geralmente estabelecendo normas gerais para as autocomposições e valores de alçada para o aperfeiçoamento dos acordos, viabilizando regulamentação mais concreta por atos normativos internos das Procuradorias54.
Este modelo é vantajoso, pois ao mesmo tempo que estabelece importantes delegações de poder, de forma definitiva, atribui flexibilidade à Advocacia Pública para os aspectos práticos de sua atuação; daí a importância de instalar as Câmaras de Autocomposição, ainda que destacadas em câmaras temáticas (como a tributária), sendo este o ambiente adequado e favorável à aplicação dos acordos por adesão e às negociações com os contribuintes.
Como dito, a autocomposição tem grande potencial de aplicação para as controvérsias que envolvam repetição do indébito tributário e que dizem respeito à relação Fisco/contribuintes atinentes à administração tributária, sem envolver discussão direta a respeito do crédito.
No primeiro caso, é comum que as demandas tenham caráter repetitivo e/ou sejam objeto de precedentes qualificados (art. 927. do CPC), o que favorece a utilização de editais de acordos por adesão, sem prejuízo, por óbvio, de se estabelecer critérios para a autocomposição individual, inclusive por meio de conciliação e mediação.
Citamos, como exemplo, a Ordem de Serviço Conjunta PG-02-PG-03-PG-19 nº 01/2022, aprovada no âmbito da PGE/RJ, que “Estabelece procedimento conjunto (...) para liquidação consensual de sentença em casos de ICMS recolhido sobre a demanda contratada” e o EDITAL/CASC/PGE/MS/N.º 02/2022, da PGE/MS, em se ofereceu a oportunidade de transação por adesão para as pessoas que gozavam da isenção do imposto de renda sobre os seus proventos, nos termos do inciso XIV do art. 6º da Lei n.º 7.713, de 1988 “e tiveram o benefício suspenso ou revogado (...), unicamente fundamentada na falta de demonstração da contemporaneidade dos sintomas da doença ou da recidiva da enfermidade” visando restabelecer a sobredita isenção, mediante transação, em demandas judicializadas, ou não.
Ambos os casos tratam de matérias fiscais repetitivas, que possuem precedente qualificado desfavorável à Fazenda Pública e implicam em repetição do indébito tributário, tratando-se de algumas das iniciativas pioneiras de autocomposição em matéria fiscal com este perfil, e que se encaixam perfeitamente à transação por adesão.
Já as autocomposições individuais, tendem a ser facilitadas pelas técnicas da negociação, conciliação ou mediação. Embora exista a tentativa de se delimitar55, tecnicamente, a função de cada uma destas técnicas56 - que se diferenciam conforme a existência e o grau de atuação do terceiro -, os termos são usados quase que indiscriminadamente nas legislações e no cotidiano.
Com relação, especificamente, à litigiosidade envolvendo a relação Fisco/contribuintes, o relatório “Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário” não foi capaz de estabelecer quantitativamente a proporção, mas apontou indicativos de existência de correlação da ausência de cooperatividade e transparência nos elevados estoques processuais, tendo apontado os tema mais recorrentes57, evitáveis por meio de maior cooperação e passíveis de resolução consensual.
Com funcionamento na prática, mencionamos a interessante iniciativa do Município de Porto Alegre, que instituiu a mediação tributária (Lei nº 13.028/2022), optando por criar uma Câmara de Mediação e Conciliação na estrutura da Receita Municipal e outra no âmbito de sua Procuradoria, possibilitando, assim, a autocomposição nas fases “administrativas ou judiciais”.58
A partir de proposta similar59, apresentada pela comissão designada no Ato Conjunto n. 01/2022, foi proposto o PL nº 2485/2022 no Senado e o PL nº 2792/2022 na Câmara, proposições idênticas que buscam instituir a mediação tributária na União como meio de prevenção consensual de conflitos em matéria tributária entre a Fazenda Pública Federal e o sujeito passivo. Destacamos a priorização de mediações coletivas e a previsão de ser exercida “por mediadores internos e/ou externos, caracterizados pela existência ou não de vínculo funcional com a administração pública federal, os quais atuarão nas Câmaras de Mediação”.
Como se nota, a autocomposição em matéria fiscal, na perspectiva proposta, de ser residual e complementar à transação tributária, já vem sendo implementada e é objeto de projetos de lei que podem ampliar e consolidar a sua aplicação, sendo crucial que se fortaleça a clareza de seu importante papel no âmbito do contencioso tributário e que se estabeleça critérios que garantam isonomia entre os contribuintes e vantajosidade à Administração Pública, evitando que todo e qualquer tipo de controvérsia desague no Judiciário, o que inclusive terceiriza o poder de decisão, diminuindo o gerenciamento de risco da Fazenda Pública sobre o conflito e impacta na sua capacidade de influência no efetivo resultado da resolução da disputa.
4.3. DA ARBITRAGEM TRIBUTÁRIA
Dentro do sistema proposto, a arbitragem tributária terá a função de atender, especialmente, aos conflitos em que se verifique questões de alta complexidade fática, viabilizando-se decisões técnicas, mas com maior celeridade. Arbitragem60 é método heterocompositivo de solução de conflitos, se diferenciando da autocomposição na medida em que o poder de decidir a controvérsia é atribuída a um terceiro, que o faz com imparcialidade e definitividade.
Desde a edição da Lei Geral de Arbitragem (Lei nº 9.307/1996), o instituto vem evoluindo no direito privado, tendo se expandido para os conflitos envolvendo a Administração Pública a partir da Lei nº 13.129/2015, que incluiu os parágrafos primeiro e segundo ao seu art. 1º.
Optou-se por autorizar o uso da arbitragem pela Fazenda Pública para direitos patrimoniais disponíveis, o que já foi regulamentado por alguns estados membros61. Além disso, o parágrafo segundo estabelece norma de integração dos instrumentos de consensualidade, reforçando a coesão do microssistema normativo de métodos adequados de resolução de conflitos.
No caso da arbitralidade fiscal62, o primeiro obstáculo é justamente a discussão a respeito da (in)disponibilidade do crédito tributário. Conforme destacamos em artigo publicado na Revista da PGE/MS63, o “crédito tributário, em regra, representa um direito patrimonial, de interesse público secundário, cuja finalidade é fornecer meios para que o Estado, em sentido amplo, tenha condições financeiras de atender aos interesses (primários) da coletividade”, sendo que sua disponibilidade64 é tomada como premissa no Sistema Tributário Nacional, que prevê instrumentos de disposição do crédito público, como a isenção, anistia, parcelamento e a própria transação.
O exercício desta disposição, porém, depende de atividade legislativa, de iniciativa privativa, e deve se conformar ao sistema constitucional e aos princípios gerais de direito público. Fato é que existe margem de disponibilidade do crédito tributário, “residindo o desafio na dificuldade de se estabelecer as condições e limites que possibilitem encontrar o ponto ótimo (ou equilíbrio) entre perseguir a eficiência (implementando, por exemplo, a arbitragem), sem se descuidar dos outros princípios e garantias fundamentais”.65
Dito isso, enfatizamos que, o crédito tributário ser considerado direito patrimonial disponível não quer dizer que dele irá se dispor na arbitragem. O que se pretende, na realidade, é possibilitar a submissão de controvérsias fiscais de determinado perfil ao processo arbitral, viabilizando o acesso a decisões técnicas e céleres, respeitada a voluntariedade.
Outra grande discussão é a necessidade66 ou não de lei geral nacional (para alguns, lei complementar) permitindo o uso da arbitragem tributária ou se é possível a sua utilização a partir da cláusula geral do art. 1º, §1º, da Lei de Arbitragem (Lei 9.307/1996)67.
Escobar entende que não, pois visualiza equiparação da “sentença arbitral à hipótese prevista no art. 156, X, do CTN, pois, tanto a LBA (art. 31), quanto o CPC, equiparam a sentença arbitral ao título executivo judicial, ou seja, à decisão judicial transitada em julgado.”68
Seja ou não inevitável, sem dúvida nenhuma que a aprovação de lei, quiçá com alteração do CTN, traria maior segurança jurídica, tanto à Fazenda Pública, como aos particulares. Tanto é que, na prática, já existem alguns projetos de lei em andamento.
O primeiro foi o PLC 469/2009, em que se pretende alterar o CTN, para incluir a arbitragem tributária, mas que se encontra parado há mais de 10 anos. Em seguida vieram os PL nº 4257/2019 e PL nº 4468/2020, que possuem escopos diferentes, restritivos, mas com certa complementaridade69, e também não apresentaram avanço relevante de tramitação nos últimos anos.
Mais recentemente, no relatório da comissão instituída pelo Ato Conjunto n. 01/202270, dentre outras propostas, foi elaborado um anteprojeto de lei de arbitragem tributária, que a regulamenta de forma abrangente, em 11 capítulos, no intuito de autorizar amplamente a submissão de controvérsias tributárias ao juízo arbitral, como mais uma porta para a solução de conflitos, por meio de norma geral, de caráter nacional, aplicável a todos os entes públicos, o que gerou o PL nº 2791/2022, na Câmara, e PL nº 2486/2022, no Senado, propostas idênticas que ainda tramitam em paralelo nas casas do Congresso Nacional, ambas em estágio inicial.
Preservou-se a aplicação subsidiária da Lei de Arbitragem, como fonte primária, além da expressa garantia da consensualidade/voluntariedade como pilar da arbitralidade. Optou-se, ainda, por possibilita-la em qualquer fase da existência do crédito público, desde a ciência do auto de infração até a sua judicialização; também se estabeleceu vedações, como o julgamento por equidade e da discussão relativa à controle de constitucionalidade e de lei em tese.
Ressalta-se, ainda, a previsão expressa dos órgãos da Advocacia Pública como representantes da Fazenda Pública perante o juízo arbitral, além da imposição de observância dos precedentes obrigatórios, sobretudo do art. 927. do CPC/2015; e a previsão de pagamento, em caso de condenação do ente público, por meio de precatório ou via compensação.
É inquestionável a evolução do debate em torno da arbitragem tributária, sendo questão de tempo a aprovação de lei prevendo o uso do instituto, momento para o qual deve estar preparada a Advocacia Pública, seja para participar de sua regulamentação em âmbito local (como previsto na proposta), seja para garantir a legitimidade de sua aplicação, na defesa do melhor interesse público.
Isto posto, enfatizamos o papel especial que a arbitragem tributária pode ocupar dentro do modelo proposto, sobretudo em demandas com questões de interpretação fática complexa, que exijam conhecimento técnico especial, podendo representar uma via segura e sofisticada para casos em que, tanto a Fazenda Pública, quanto os contribuintes, entendam conveniente e oportuno o caminho do processo arbitral.
CONCLUSÃO
O artigo teve o propósito de apontar a aderência das iniciativas de desenvolvimento do sistema multiportas na Administração Pública à Agenda 2030, especialmente ao ODS 16, enfatizando a importância e o potencial impacto positivo de se consolidar esta mudança de paradigma no tratamento do contencioso fiscal, e abordando, ao final, o panorama atual dos instrumentos de resolução consensual de conflitos no Direito Tributário, tendo como proposições:
A nova concepção do direito de acesso à justiça, aliada ao dever estatal de resolver os conflitos, sempre que possível, de forma consensual, impõe a implementação de meios adequados de solução de controvérsias, alternativos, mas equiparados à justiça estatal, ampliando a tendência pela desjudicialização, especialmente nas disputas envolvendo a Administração Pública;
Os projetos e iniciativas do setor público, que tenham como objetivo o desenvolvimento da consensualidade e o tratamento da alta litigiosidade no Brasil, têm aderência direta com a Agenda 2030, especificamente com o ODS 16;
O aprimoramento do acesso à justiça, com o pretendido aumento de eficiência na entrega jurisdicional e na capacidade de garantia de pacificação e harmonia social, exige uma transformação no tratamento do contencioso fiscal, sendo um dos caminhos para tanto a estruturação de um modelo multiportas no Direito Tributário;
Uma proposta viável e eficaz de modelo multiportas no Direito Tributário é a estrutura sustentada pelas ferramentas da transação tributária, autocomposição em matéria fiscal e arbitragem tributária, instrumentos complementares e interdependentes, capazes de apresentar alternativas eficazes para a resolução de conflitos fiscais de diferentes perfis.
REFERÊNCIAS
BINENBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo. Revista de Direito Administrativo, v. 239, p. 1, 2015. Disponível em: https://doi. org/10.12660/rda.v239.2005.43855. Acesso em: 02 ago. 2023
DUBEUX, Bruno. A Advocacia Pública e os meios adequados de solução de controvérsias, uma mudança de cultura necessária. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro. Edição Especial nº 79 – Autocomposição e a Administração Pública. Rio de Janeiro: PGE/RJ, 2021.
CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (Org.). Negócios Processuais. Salvador: JusPodivm, 2015.
DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO, Diogo. Mutações de Direito Público. Ed. Renovar: Rio de Janeiro. 2006.
DOMINGOS, F. N. Os métodos alternativos de resolução de conflitos tributários: novas tendências dogmáticas. Porto Alegre: Núria Fabris, 2016.
ESCOBAR, Marcelo Ricardo Wydra. Estudos de arbitragem e transação tributária. São Paulo: Almedina, 2021.
FERRARI, Isabela. Conflito e Inovação: introdução aos métodos de ODR. In: Justiça Digital. Instituto New Law e Isabela Ferrari, coordenadores. 1ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020
GABARDO, Emerson. Interesse público e subsidiariedade. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2009.
GRINOVER, Ada Pellegrini. A inafastabilidade do controle jurisdicional e uma nova modalidade de autotutela (parágrafos únicos dos artigos 249 e 251 do Código Civil). Revista Brasileira de Direito Constitucional, n. RBDC n. 10. – jul./dez. 2007, 2007. Disponível em: https://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC-10/RBDC-10-013-Ada_Pellegrini_Grinover.pdf. Acesso em: 27 abr. 2022.
JUNIOR, Ailton Cardozo; DANTAS, Miguel Calmon Teixeira de Carvalho; CARVALHO, Paulo Moreno (Org). Advocacia Pública para a sociedade: estudos em homenagem aos 56 anos da Procuradoria Geral do Estado da Bahia. 1ª ed. São Paulo: Contracorrente, 2022.
MACHADO, Carlos Henrique. Modelo Multiportas no direito tributário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A Resolução dos Conflitos e a Função Judicial no Contemporâneo Estado de Direito. 3ª ed. Salvador: JusPodivm, 2020.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007
PASINATO, Ana Paula. A ARBITRABILIDADE DA MATÉRIA TRIBUTÁRIA NO BRASIL FRENTE AO EXEMPLO VIGENTE DA ARBITRAGEM TRIBUTÁRIA EM PORTUGAL: A SUPERAÇÃO PARADIGMÁTICA DO DOGMA DA INDISPONIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO BRASILEIRO. 2021. 243. p. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade de Brasília. Brasília. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/43394. Acesso em 01 ago 2023.
PEREIRA, Thiago de Freitas Alves. Modelo Multiportas e o Direito Tributário: da viabilidade e das perspectivas da arbitragem tributária no Brasil. Revista da Procuradoria-Geral do Estado de Mato Grosso do Sul. Edição nº 18 (dezembro/2022). 2022. Disponível em: https://www.pge.ms.gov.br/wp-content/uploads/2022/12/Revista-PGE-18-completo.pdf. Acesso em: 03 ago 2023.
PISCITELLI, Tathiane. MASCITTO, Andrea. FARICELLI DE MENDONÇA, Priscila. (coord.). Arbitragem Tributária: Desafios Institucionais brasileiros e a experiência Portuguesa. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.
RODRIGUES, Roberto de Aragão Ribeiro. Justiça multiportas e advocacia pública 1.ed. Rio de Janeiro: GZ, 2021.
SARMENTO, Daniel (org.). Interesses públicos versus Interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
TORRES, Heleno. Princípios da segurança jurídica e transação em matérias tributária. Os limites da revisão administrativas dos acordos tributários. In: TORRES, Heleno. Transação e arbitragem no âmbito tributário: home- nagem ao jurista Carlos Mário da Silva Velloso. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 300-301 e RODRIGUES, Roberto de Aragão Ribeiro. Justiça multiportas e advocacia pública 1.ed. Rio de Janeiro: GZ, 2021.
Notas
Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs. Acesso em: 03 ago. 2023.
RODRIGUES, Roberto de Aragão Ribeiro. Justiça multiportas e advocacia pública 1.ed. Rio de Janeiro: GZ, 2021. p. 13/14.
MACHADO, Carlos Henrique. Modelo Multiportas no direito tributário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021. p. 112.
DIDIER JUNIOR, Fredie; FERNANDEZ, Leandro. O sistema brasileiro de justiça multiportas como um sistema auto-organizado: interação, integração e seus institutos catalisadores. Revista do Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Norte – REPOJURN. Ano 3. N. 01. Jan/jun. 2023. Disponível em: https://revista.tjrn.jus.br/revistas. Acesso em 03 ago. 2023.
DIDIER JÚNIOR, Fredie. Princípio do respeito ao autorregramento da vontade no Processo Civil. In: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (Org.). Negócios Processuais. Salvador: JusPodivm, 2015. p. 19-25.
Importante, também, a regulamentação de diversos aspectos relativos à mediação e conciliação no Código, como a criação, pelos tribunais, de centros judiciários de solução consensual de conflitos (CEJUSCs), a indicação dos princípios da independência, da imparcialidade, da autonomia da vontade, da confidencialidade, da oralidade, da informalidade e da decisão informada como regentes da autocomposição, além de regras de escolha e de conduta de mediadores e conciliadores.
No âmbito da Advocacia Pública, identificamos sua regulamentação pela PGFN, por meio da Portaria nº 742/2018, e pela PGE/RJ, pela Resolução PGE nº 4826/2022.
Pelo menos os Estados de MS, MG, TO, AL, PA, AP, CE, ES, PE, SC, PI, RJ e GO já instalaram suas Câmaras de Autocomposição.
DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO, Diogo. Mutações de Direito Público, Ed. Renovar: Rio de Janeiro, 2006, pg. 262-263.
DUBEUX, Bruno. A Advocacia Pública e os meios adequados de solução de controvérsias, uma mudança de cultura necessária. Revista de Direito da Procuradoria Geral. Edição Especial nº 79 – Autocomposição e a Administração Pública. Rio de Janeiro. pg. 37-73. Dezembro 2021.
Disponível em: ODS 16 - Paz, Justiça e Instituições Eficazes - Ipea - Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/ods/ods16.html>. Acesso em: 01 ago. 2023.
O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), por exemplo, possui mais de mil projetos na América Latina e Caribe vinculados ao ODS nº 16. Disponível em: https://crf.iadb.org/pt/sdg-16. Acesso em: 03 ago 2023.
Segundo o site do BNDES, foi desembolsado quase R$ 1,5 bilhão, entre 2015 e 2023, em projetos ligados ao ODS nº 16. Disponível em: <https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/transparencia/estatisticas-desempenho/ods>. Acesso em: 03 ago. 2023.
Disponível em: <https://brasil.un.org/sites/default/files/2023-03/ONU_Brasil_Relatorio_Anual_2022.pdf>. Acesso em: 03 ago. 2023.
DE AMORIM, Fernando Sérgio Tenório; RODRIGUES, Ricardo Schneider. A resolução online de litígios (ODR) na administração pública: o uso da tecnologia como estímulo à transparência. Rio de Janeiro. Revista Direito, Estado e Sociedade, n. 54, 2019.
Disponível em: https://ab2l.org.br/radar-dinamico/. Acesso em 20 junho 2022.
FERRARI, Isabela. Conflito e Inovação: introdução aos métodos de ODR. In: Justiça Digital. Instituto New Law e Isabela Ferrari, coordenadores. 1ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 34.
RODRIGUES, Roberto de Aragão Ribeiro. Justiça multiportas e advocacia pública 1.ed. Rio de Janeiro: GZ, 2021. p. 127.
Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/188306-pesquisa-identifica-111-projetos-de-intelig%C3%AAncia-artificial-no-judici%C3%A1rio. Acesso em 01 ago. 2023.
Ver, a este respeito: https://www.prerro.com.br/a-cultura-de-experimentacao-e-a-transformacao-digital-da-advocacia-publica/. Acesso em 04 ago. 2023.
Diversos autores vêm aprofundando e ressignificando os paradigmas a respeito da clássica distinção entre interesses públicos primários e secundários em suas obras, dentre as quais destacamos: “SARMENTO, Daniel (org.). Interesses públicos versus Interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010”. “MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007”. “GABARDO, Emerson. Interesse público e subsidiariedade. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2009”. “BINENBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo. Revista de Direito Administrativo, v. 239, p. 1, 2015. Disponível em: https://doi. org/10.12660/rda.v239.2005.43855. Acesso em: 29 abr. 2022”.
“Os métodos adequados de resolução de conflitos em matéria tributária propõe viabilizar a participação cidadã na pacificação social, notadamente no campo da fiscalidade, com a observância dos marcos legislativos, de modo que somente reforçam o princípio da legalidade, e não o ofendem. Significa dizer que a legalidade, em viés amplo, impõe que a administração atue em conformidade com os critérios autorizados pela legislação tributária, ainda que permitida alguma intervenção mais efetiva por parte dos sujeitos passivos; e, num sentido estrito, implica tipificar os elementos normativos da exação tributária com maior ou menor dose de discricionariedade, indeterminação, ambiguidade ou vagueza, legitimadora da atuação concertada no processo de aplicação da lei de incidência”. MACHADO, Carlos Henrique. Modelo Multiportas no direito tributário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021. p. 153
“Especificamente em relação ao princípio da igualdade, postulado estruturante do estado democrático de direito, do qual deriva o princípio da impessoalidade e, em matéria fiscal, os princípios da capacidade contributiva, da progressividade, e da seletividade, também entendemos possível a compatibilização com o sistema multiportas, que, aliás, poderá contribuir para o desenvolvimento de uma estrutura fiscal mais harmoniosa e equitativa. O desafio residirá, porém, em encontrar as margens legítimas de discriminação legítima”. PEREIRA, Thiago de Freitas Alves. O SISTEMA MULTIPORTAS E A TRANSMUTAÇÃO DA CULTURA DE ACESSO À JUSTIÇA TRIBUTÁRIA. In: JUNIOR, Ailton Cardozo; DANTAS, Miguel Calmon Teixeira de Carvalho; CARVALHO, Paulo Moreno (Org). Advocacia Pública para a sociedade: estudos em homenagem aos 56 anos da Procuradoria Geral do Estado da Bahia. 1. ed. São Paulo: Contracorrente, 2022. p. 749.
Ver, neste sentido: DOMINGOS, F. N. Os métodos alternativos de resolução de conflitos tributários: novas tendências dogmáticas. Porto Alegre: Núria Fabris, 2016.
Aprofundamos este estudo em artigo próprio. Ver em: PEREIRA, Thiago de Freitas Alves. O SISTEMA MULTIPORTAS E A TRANSMUTAÇÃO DA CULTURA DE ACESSO À JUSTIÇA TRIBUTÁRIA. In: JUNIOR, Ailton Cardozo; DANTAS, Miguel Calmon Teixeira de Carvalho; CARVALHO, Paulo Moreno (Org). Advocacia Pública para a sociedade: estudos em homenagem aos 56 anos da Procuradoria Geral do Estado da Bahia. 1. ed. São Paulo: Contracorrente, 2022.
MACHADO, Carlos Henrique. Modelo Multiportas no direito tributário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021. p. 145.
A este respeito: PASINATO, Ana Paula. A arbitrabilidade da matéria tributária no brasil frente ao exemplo vigente da arbitragem tributária em portugal: a superação paradigmática do dogma da indisponibilidade do crédito tributário brasileiro. 2021. 243. p. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade de Brasília. Brasília. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/43394. Acesso em 01 ago 2023.
PEREIRA, Thiago de Freitas Alves. Modelo Multiportas e o Direito Tributário: da viabilidade e das perspectivas da arbitragem tributária no Brasil. Revista da Procuradoria-Geral do Estado de Mato Grosso do Sul. Edição nº 18 (dezembro/2022). 2022. Disponível em: https://www.pge.ms.gov.br/wp-content/uploads/2022/12/Revista-PGE-18-completo.pdf. Acesso em: 03 ago 2023.
Disponível em: https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2021/03/Contencioso-administrativo-tribut%C3%A1rio-federal_Uma-an%C3%A1lise-comparativa-entre-Brasil-e-sete-pa%C3%ADses.pdf. Acesso em 03 ago. 2023.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2022 / Conselho Nacional de Justiça. Brasília: CNJ, 2022.
Chama a atenção, ainda, que 68,9% dos processos pendentes de execução fiscal estão concentrados em varas exclusivas, que naturalmente possuem taxa de congestionamento semelhante (89,1%) ao índice geral (89,7%), o que revela que tal especialização ainda não foi capaz de contribuir com a melhoria deste preocupante congestionamento e sugerindo que medidas alternativas devem ser tomadas para a reversão do quadro.
Conselho Nacional de Justiça; Instituto de Ensino e Pesquisa. Diagnóstico do contencioso judicial tributário brasileiro: relatório final de pesquisa. Brasília: CNJ, 2022.
Disponível em: https://grandes-litigantes.stg.cloud.cnj.jus.br/. Acesso em 25 jul. 2023.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A Resolução dos Conflitos e a Função Judicial no Contemporâneo Estado de Direito. 3ª ed. Salvador: JusPodivm, 2020. p. 20.
Justiça coexistencial seria aquela “promovida num processo tendencialmente não adversarial, ambiente no qual a lide passa a ser vista não como um mal a ser eliminado, drasticamente, mas como a oportunidade para o manejo adequado da crise emergente, em ordem a uma possível composição justa”. Ibid., p.22
GRINOVER, Ada Pellegrini. A inafastabilidade do controle jurisdicional e uma nova modalidade de autotutela (parágrafos únicos dos artigos 249 e 251 do Código Civil). Revista Brasileira de Direito Constitucional, n. RBDC n. 10. – jul./dez. 2007, 2007. Disponível em: https://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC-10/RBDC-10-013-Ada_Pellegrini_Grinover.pdf. Acesso em: 27 abr. 2022.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A Resolução dos Conflitos e a Função Judicial no Contemporâneo Estado de Direito. 3ª ed. Salvador: JusPodivm, 2020. p. 20.
No documento “Diagnóstico do Contencioso Tributário”, uma das recomendações ao Poder Executivo é a de que “Diante da constatação de que há milhares de processos de execução fiscal cujo valor cobrado é bastante reduzido, deve ser proposta alteração para fixação, em lei nacional, de obrigatoriedade de observância de regra de ajuizamento seletivo, estabelecendo critérios objetivos relacionados à recuperabilidade do crédito, evitando-se que o processo custe mais do que o crédito exigido”.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2022 / Conselho Nacional de Justiça. Brasília: CNJ, 2022. p. 170.
Mencionamos os programas “Nos Conformes”, em São Paulo. Disponível em: https://portal.fazenda.sp.gov.br/servicos/nosconformes. Acesso em 03 ago. 2023; “Contribuinte Arretado”, em Alagoas. Disponível em: https://www.sefaz.al.gov.br/contribuinte-arretado. Acesso em: 03 ago. 2023; e “Contribuinte Pai´Dégua”, no Ceará. Disponível em: https://www.sefaz.ce.gov.br/pai-degua/. Acesso em: 03 ago. 2023.
Conselho Nacional de Justiça; Instituto de Ensino e Pesquisa. Diagnóstico do contencioso judicial tributário brasileiro: relatório final de pesquisa. Brasília: CNJ, 2022.
Relatório Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9198204&ts=1662471328151&disposition=inline. Acesso em: 15 set. 2022.
Por meio da Lei nº 8.532/17, o referido município regulamentou a transação tributária, antes mesmo da iniciativa federal, destacando-se a previsão de uma “Câmara de transação”, o alto grau de diálogo e participação do contribuinte e o estabelecimento de requisitos que formam uma “pontuação”, que indica o percentual de desconto na respectiva negociação, o que rendeu o primeiro lugar da 17ª edição do Prêmio Innovare (2020). Conferir em: https://www.furb.br/web/1704/noticias/projeto-em-parceria-com-npj-conquista-premio-nacional/8494.
Projeto de Pesquisa: Observatório de Transações Tributárias 4º Relatório, data-base 01.07.2022. Disponível em: insper.edu.br/wp-content/uploads/2023/02/Insper_Nucleo-Tributacao_Observatorio-transacao-Tributaria_Relatorio.pdf. Acesso em: 20 jul. 2023.
Os números impressionam, já que, somente com a transação por adesão se verifica uma arrecadação de quase R$ 14 bilhões até data-base da última pesquisa divulgada, que também identificou uma crescente na quantidade de transações individuais celebradas.
Ceará, Maranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco, São Paulo e Sergipe.
Neste sentido: MASCITTO, Andrea. Transação Tributária nos âmbitos estadual e municipal. In: ESCOBAR, Marcelo Ricardo Wydra. Estudos de arbitragem e transação tributária. São Paulo: Almedina, 2021. p. 193-201.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Vol 1: Parte Geral. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 105.
Em interessante artigo, Max Moller desenvolve a existência de espaços para composição com relação a interpretação a respeito da incidência tributária, sobretudo em causas complexas. MÖLLER, Max. Meios Alternativos de resolução de conflito no Direito Tributário. Revista FESDT, v. 9, p. 76-92, 2019. Disponível em: https://fesdt.org.br/docs/revistas/9/9-revista.pdf. Acesso em: 04 ago. 2023.
Como destacado em tópicos anteriores, diversos Estados tem regulamentado os instrumentos de consensualidade e criado suas Câmaras de Autocomposição.
Mencionamos, nesta linha, a LC nº 121/2019 do Estado do Pará e a LC nº 114/2018 do Estado de Goiás.
Vem surgindo alguma polêmica, na prática, a respeito da possibilidade de servidores públicos atuarem como conciliadores e mediadores quando o ente público a que é vinculado é parte na autocomposição, hipótese em que é mais indicado o uso da negociação.
Vide art. 4º da LC nº 417/2019 de Pernambuco, art. 2º da LC nº 121/2019 do Pará, art. 19. da Resolução nº 112/2016 da PGE/RS e art. 19. do Decreto 64.050/2019 do Estado de Alagoas.
Os temas mais recorrentes, neste sentido, levantados pelo CNJ, são: “Procedimentos fiscais”, “CADIN”, “CND”, “Depósitos judiciais”, “Liberação de mercadorias”, “Sigilo Fiscal” e “Arrolamento de Bens”.
O art. 24. menciona expressamente as fases de consulta fiscal, pré-lançamento, contencioso administrativo-tributário e inscrição em dívida ativa ou contencioso judicial tributário. Disponível em: https://www.camarapoa.rs.gov.br/draco/processos/137049/Lei_13028.pdf. Acesso em: 04 ago. 2023.
Disponível em: DOC-Relat%C3%B3rio%20Legislativo%20-%20SF229061497894-20220906%20(4).pdf. Acesso em 04 ago. 2023.
“A arbitragem – meio alternativo de solução de controvérsias através de uma intervenção de uma ou mais pessoas que recebem seus poderes de uma convenção privada, decidindo com base nela, sem intervenção estatal, sendo a decisão destinada a assumir a mesma eficácia da sentença judicial – é colocada à disposição de quem quer seja, para solução de conflitos relativos a direitos patrimoniais acerca dos quais os litigantes possam dispor”. CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: Um comentário à lei no. 9.307/96. 2. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2004. p. 31.
Decreto nº 46.245/2018, do RJ; Decreto nº 64.356/2019, de SP; e Decreto nº 55.996/2021, do RS.
Portugal, por meio do Decreto-Lei nº 10/2011, já utiliza arbitragem tributária instituto, com algumas peculiaridades, em experiência aparentemente exitosa e a já mencionada Recomendação nº 120/2021 do CNJ também faz remissão direto à arbitragem envolvendo o contencioso tributário, em seu art. 1º, §2º, II.
Aprofundamos a questão em artigo publicado na Revista da PGE/MS. PEREIRA, Thiago de Freitas Alves. Modelo Multiportas e o Direito Tributário: da viabilidade e das perspectivas da arbitragem tributária no Brasil. Revista da Procuradoria-Geral do Estado de Mato Grosso do Sul. Edição nº 18 (dezembro/2022). 2022. Disponível em: https://www.pge.ms.gov.br/wp-content/uploads/2022/12/Revista-PGE-18-completo.pdf. Acesso em: 03 ago 2023.
Também neste sentido: TORRES, Heleno. Princípios da segurança jurídica e transação em matérias tributária. Os limites da revisão administrativas dos acordos tributários. In: TORRES, Heleno. Transação e arbitragem no âmbito tributário: home- nagem ao jurista Carlos Mário da Silva Velloso. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 300-301. RODRIGUES, Roberto de Aragão Ribeiro. Justiça multiportas e advocacia pública. 1.ed. Rio de Janeiro: GZ, 2021. p. 36. FARICELLI DE MENDONÇA, Priscila. Questões Tributárias Arbitráveis. In: PISCITELLI, Tathiane. MASCITTO, Andrea. FARICELLI DE MENDONÇA, Priscila. (coord.). Arbitragem Tributária: Desafios Institucionais brasileiros e a experiência Portuguesa. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 246
PEREIRA, op. cit., p. 79.
Nesta linha de pensamento: MASCITTO, Andrea. Requisitos institucionais para a arbitragem entre Fisco e Contribuintes no Brasil: Necessidade de norma geral. In: PISCITELLI, Tathiane. MASCITTO, Andrea. FARICELLI DE MENDONÇA, Priscila. (coord.). Arbitragem Tributária: Desafios Institucionais brasileiros e a experiência Portuguesa. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.
Neste sentido: ESCOBAR, Marcelo Ricardo Wydra. Viabilização da arbitragem tributária por ato administrativo. In: ESCOBAR, Marcelo Ricardo Wydra. Estudos de arbitragem e transação tributária. São Paulo: Almedina, 2021. p. 169-192. TOLEDO, José Eduardo Tellini. Quebrando paradigmas para a arbitragem tributária. In: ESCOBAR, Marcelo Ricardo Wydra. Estudos de arbitragem e transação tributária. São Paulo: Almedina, 2021.
ESCOBAR, Marcel Ricardo. Arbitragem tributária no Brasil. São Paulo: Almedina, 2017.
Tais projetos de lei foram analisados por diversos autores na obra: ESCOBAR, Marcelo Ricardo Wydra. Estudos de arbitragem e transação tributária. São Paulo: Almedina, 2021.
Relatório Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9198204&ts=1662471328151&disposition=inline. Acesso em: 15 set. 2022.
Informações sobre o texto
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
PEREIRA, Thiago de Freitas Alves; SANCHES, Marcos Antonio Cesar. O modelo multiportas no direito tributário: um caminho para um contencioso fiscal sustentável. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7736, 5 set. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/107627. Acesso em: 9 set. 2024.