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Conciliar interesses e promover desenvolvimento.

A difícil tarefa das organizações internacionais em um mundo fraturado pelo individualismo

Conciliar interesses e promover desenvolvimento. A difícil tarefa das organizações internacionais em um mundo fraturado pelo individualismo

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As organizações internacionais exigem um voluntário e digno comprometimento dos seus compositores, apesar da prevalência do individualismo insano.

O avanço tecnológico, com maior realce o das comunicações e dos transportes, vivenciado modernamente, promoveu uma expansão da atividade comercial e um aumento da riqueza universais. Legou, ainda, como natural conseqüência, um incremento nas relações entre os homens e nas suas demandas, não raramente deflagrador de conflitos. Incapazes de fazer frente a esse e a outros grandes desafios da contemporaneidade, os Estados, protagonistas no cenário global, passaram a ser secundados pelas chamadas organizações internacionais, instrumentos criativos destinados, fundamentalmente, a cultivar a paz e o desenvolvimento.


1 E LAVOISIER, O QUE TEM A VER COM ISSO?

A história da humanidade é formada por acontecimentos que, quase sempre, podem ser agrupados em paralelo, a exemplo das organizações internacionais, crias dos últimos tempos, surgidas no século XIX, em relação à Liga de Delos (478 a.C.-338 a.C.) e à Liga Hanseática (entre os séculos XI e XVII), bem mais ao longe erigidas. Vê-se semelhança entre as organizações internacionais e as Ligas, de modo a merecer essas o rótulo de precedentes daquelas.

A Liga de Delos almejava estabelecer a cooperação militar entre as cidades-Estado da Grécia e a Liga Hanseática auxiliou nas relações comerciais entre cidades do norte da Europa. Alguma similitude com os propósitos de coordenar ações conjuntas focadas na satisfação de demandas comuns informadoras das construções do século XIX?!

De se destacar que autores, como o Abbé de Saint Pierre e Immanuel Kant, propuseram idéias consentâneas e inspiradoras das atuais conformações. O Abbé de Saint Pierre, em seu Projeto para tornar Perpétua a Paz na Europa de 1713, defendeu a criação de uma liga de Estados e de uma corte internacional incumbida de arbitrar os conflitos. Kant, por seu turno, em A Paz Perpétua de 1795, manifestou-se a favor da formação de uma federação de Estados.

Sob outro enfoque, os mencionados personagens compõem um quadro de teóricos (os irenistas – palavra vinda do grego irén que significa paz), numericamente expressivos, que, por estarem comprometidos com aquilo que se consagrou chamar de "paz perpétua", e em proveito dessa avença, conceberam projetos comumente identificados como estimulantes da formação das organizações internacionais. Orientados pelos valores continentais (busca-se reproduzir os caracteres estatais, a presença de sanções e competências amplas, na sociedade internacional) ou anglo-saxões (crentes que a organização do meio internacional independe da adoção de sanções, bastando simplesmente exortações morais), os programas de "paz perpétua" vislumbram a constituição de uma federação (vista em sentido amplo), por vezes, a depender das circunstâncias notabilizantes da época da feitura do projeto, atrelada à idéia de subordinação ao Papa ou ao imperador (no período medieval) ou de coordenação (quando da formação dos Estados nacionais).

Em uma visão panorâmica, Platão concebeu um planeta dividido em reinos que não guerreariam e teriam seus interesses discutidos em assembléia e litígios submetidos à apreciação de um tribunal. Pierre Dubois, em seu De Recuperatione Terrae Sanctae de 1305, propôs a igualdade entre os soberanos e a criação de uma República cristã, sendo o Papa a autoridade arbitral. Dante Alighieri, pelo De Monarchia de 1315, advogou a costura de uma monarquia universal sob o comando de um imperador. Marsílio de Pádua, com o Defensor Pacis de 1324, previu a formação de um império universal, dispondo de um legislador supremo. George Podiebrad, rei da Boêmia, propôs em 1464 um projeto de paz perpétua (acredita-se que a autoria tenha sido de Antoine de Marin) ao Rei Luis XI da França, segundo o qual se formaria uma federação entre os príncipes cristãos, restringindo os conflitos e sujeitando os eventuais infratores a julgamento. Erasmo de Roterdã, com o Querela Pacis de 1517, rememorou a fraternidade dos cristãos, apoiou a arbitragem e a estabilização das fronteiras. Emeric Crucé, pelo Le Nouveau Cinée de 1625, propugnou que embaixadores dos Estados vivessem em constante contato e, no infortúnio de uma contenda, promovessem a harmonia.

O Duque de Sully acostou-se à proposta de uma República cristã, formada por monarquias hereditárias e eletivas, sugeriu a instituição de um exército europeu e admitiu a liberdade religiosa. Propostas outras advieram de William Penn, escritor de Essay Towards the Present and Future Peace of Europe by the Establishment of an European Dyet, Parliament of Ententes de 1693, John Bellers, autor de Quelques Raisons pour Établir un État Européen de 1710, Jeremias Bentham, com A Plan for an Universal and Perpetual Peace publicado em 1843, Jean-Jacques Rousseau e Pierre André Gargaz.

Johann Caspar Bluntschli almejou a criação de uma agremiação dos Estados europeus, James Lorimer sugeriu a formação de um Estado federal, William Ladd, com An Essay on a Congress of Nations de 1840, estimulou a forja de um Congresso e de uma Corte das Nações, William Jay, pelo War and Peace: the Evils of the First and a Plan for Preserving the Last de 1842, dissertou pelo estabelecimento de uma corte, pelo desarmamento e arbitragem obrigatória, James Mill defendeu a feitura de um código e de um tribunal internacional, Saint-Simon, em seu livro De la Réorganisation de la Société Européenne ou dela Necessité et des Moyens de Ressembler les Peuples de l’Europe en un Seul Corps Politique en Conservant à Chacun son Indépendance Nationale de 1814, prescreveu o estatuir de um parlamento europeu, Brunet sugeriu um tribunal e exército europeus, Leibnitz propôs uma federação e senado e Alberto Torres pregou a necessidade de uma conferência internacional.

Na continuidade, há de se mencionar o sistema de conferências estabelecido pelo Congresso de Viena de 1815, ao fim das guerras napoleônicas, objetivador de um concerto de Estados europeus. Nas conferências, potências como Prússia, Áustria, Rússia, Grã-Bretanha e França discutiam questões que, muito embora transpusessem a temática dos tratados de paz, mantinham-se afetas ao ordenamento internacional.

Com o acréscimo na industrialização e comércio internacional observado no século XIX, a um só tempo propulsor e aguçado pelo aperfeiçoamento dos transportes e da comunicação, gerador de conflitos para os quais se carecia de um aparelho solucionador, fez-se imperiosa a constituição das organizações internacionais. Essas poderiam exercer um papel de destaque na promoção da paz.

Assentadas em tratados, dispondo de uma estrutura organizacional simplificada, em regra restrita a uma secretaria (recorriam, sempre que necessário, aos préstimos da estrutura governamental dos Estados, em especial ao país sede), ganham vida nesse período as "uniões administrativas" que, sem possuir objetivos políticos, teriam firmado a espinha dorsal das organizações internacionais, ou seja, uma assembléia geral aglutinadora de todos os membros, um conselho diretor e uma secretaria. [01]

A União Telegráfica Internacional foi a primeira união administrativa, constituída em 1865. Em 1874 criou-se a União Postal Universal e, adiante, surgiram o Instituto Internacional de Pesos e Medidas, a União Internacional para a Proteção Industrial de Obras Artísticas e Literárias, a União Internacional para a Proteção de Obras Artísticas e Literárias, o Instituto Internacional de Agricultura e a Oficina Internacional de Saúde.

No fim do século XIX, em decorrência da sugestão de Nicolas II, Czar da Rússia, de realizar um encontro sobre desarmamento, promoveram-se duas conferências de paz, uma em 1899 e outra em 1907, e estatuiu-se o "sistema de Haia", apegado às questões das relações e do direito internacional. Discutiu-se não como pôr termo a um específico embate, mas se propugnou estatuir um mecanismo racional preventivo e resolutivo de todas as ameaças à paz internacional. Buscaram-se as normas e estruturas a ser empregadas nesse propósito, dentre as quais se destacaram a Convenção para a Resolução Pacífica de Disputas e a Corte Permanente de Arbitragem.

No continente americano, a Conferência que teve lugar em Washington, nos distantes 1889 e 1890, foi pioneira ao constituir uma associação permanente de Estados, denominada de União Internacional das Repúblicas Americanas, e o Bureau Comercial das Repúblicas Americanas. Incumbidas de dinamizar as atividades comerciais entre os membros e promover conferências quinquenais, a União dos Estados Americanos e o Bureau inauguraram a política de institucionalização das relações regionais.

Rumo à sedimentação, as organizações continuaram a ser seguida e profundamente alteradas. No período subseqüente à Primeira Guerra Mundial, começaram a edificar o prestígio atualmente desfrutado. A quantidade, a diversidade e a importância notabilizadoras das organizações internacionais contemporâneas saltam aos olhos de todos. Destinam-se a ocupar espaços e cumprir papéis, em singular época, não preenchidos e exercidos pelos Estados, sujeitos primeiros e de maior dimensão. Sinteticamente, como bem imaginado por Nguyen Quoc Dinh, Patrick Daillier e Alain Pellet (2003, p. 71):

A idéia de organizar politicamente a sociedade internacional nasceu como reação à anarquia que resulta dos conflitos internacionais e à insuficiência da doutrina do equilíbrio. Tem por ambição integrar num sistema unitário todos os Estados do mundo, sistema que compreenda um certo número de instituições capazes de prevenir e resolver os conflitos de interesses entre os seus membros, à imagem das estruturas da sociedade estatal.

Com a criação da Liga das Nações, em 1919, as organizações passaram a ter suas atuais características fortemente delineadas. Encarnaram objetivos políticos, implementaram o princípio majoritário das decisões, assumiram um poder regulamentar e foram reconhecidas como pessoas jurídicas internacionais. As discussões exsurgidas ao final da Primeira Guerra redundaram também na criação da Corte Permanente de Justiça Internacional, sucedida pela Corte Internacional de Justiça em 1946. Finda a Segunda Guerra Mundial, estatuiu-se a sucessora da Liga das Nações. A nascente Organização das Nações Unidas (ONU) é o exemplo paradigmático das organizações internacionais.

E Lavoisier? Ah, sem prolongar o suspense, por mais que se configure na garantia da atenção do leitor, acredita-se que, à proximidade dos seus estudos, segundo os quais em uma reação química a soma das massas dos reagentes é igual à soma das massas dos produtos, no cotejo histórico, as contemporâneas organizações internacionais guardam indeléveis marcas do passado.


2 UM CONCEITO PARA COMEÇO DE CONVERSA

As organizações internacionais são associações voluntárias de Estados, formalizadas por tratados, detentoras de estrutura orgânica, de personalidade jurídica distinta da dos seus membros, regidas grandemente por normas de caráter internacional e possuidoras de finalidades claramente delimitadas.


3 AS ORGANIZAÇÕES E O DIREITO INTERNACIONAL

Ao não se deixar levar pela desatenção, vê-se que a expressão direito internacional é imprópria para o uso que se lhe empresta hodiernamente. As normas que outrora eram fruto exclusivo da intervenção de Estados nacionais, hoje não mais o são, senão da ação de uma diversidade de atores. Para além, os fatos presentes não comportam identificar Estados com nações. Ao tempo que podem coincidir, não se condicionam, ou seja, há Estados formados por uma só nação, como por algumas, assim como nações que transpõem as fronteiras de um único Estado.

Já a expressão organização internacional, empregada inicialmente na língua inglesa por Lorimer, em 1867, padece de semelhante inconveniente. De fato, se os Estados não necessariamente coincidem com as nações, é equivocado falar na constituição de organizações pela associação meramente de nações, sabendo-se que são os Estados, por sua personalidade marcadamente formal, que estão mais habilitados e efetivamente mais intervêm no que se delibera chamar de "processo organizacional". Não bastasse isso, as organizações também têm sido criadas por sujeitos não estatais, o que implicou no reconhecimento da existência de organizações "internacionais" (termo mantido por respeito ao uso corrente) intergovernamentais, formadas por Estados (associando, pois, a palavra governo ao Estado, ao país), e organizações internacionais não governamentais, compostas por personagens não-estatais. [02]

Semelhantes aos Estados, clássicos sujeitos da ordem jurídica internacional, as organizações possuem personalidade para atuar nesse cenário, sendo titulares de direitos e obrigações. Estão credenciadas para celebrar tratados [03] e desenvolver ações vinculadas aos seus objetivos fundantes. [04] Parece lógica essa situação, vez que os constituintes de sua espécie convencional são os Estados. Nesse particular é interessante o entendimento de Francisco Rezek (2008, p. 151), para quem se tem mostrado extremo de dúvidas que:

[...] Outras entidades, carentes de base territorial e de dimensão demográfica, ostentam também a personalidade jurídica de direito das gentes, porque habilitadas à titularidade de direitos e deveres internacionais, numa relação imediata e direta com aquele corpo de normas. A era das organizações internacionais trouxe à mente dos operadores dessa disciplina uma reflexão já experimentada noutras áreas: os sujeitos de direito, em determinado sistema jurídico, não precisam ser idênticos quanto à natureza ou às potencialidades.

A personalidade jurídica internacional das organizações, como resta lógico, deriva antes de uma circunstância fática que de um pronunciamento. Mais relevante que um acordo constitutivo enunciar a natureza jurídica da organização é saber se esta dispõe de estrutura e vida próprias, distinta da dos seus compositores. A capacidade de celebrar tratados em nome próprio, acima mencionada, é costumeiramente indicada como a primacial para o reconhecimento da personalidade.


4 AS RAZÕES INCLUSIVAS E AS EXCLUDENTES

Evidentemente, algumas regras balizam a entrada e a saída de componentes das organizações, estando elas presentes ao ato constitutivo, ao tratado que deu vida jurídica à organização, uma lei especial de regência, que segundo Celso Mello (2002, p. 585) adquire um aspecto de norma constitucional da organização à qual as demais devem se sujeitar. Isso não obsta, entretanto, a incidência de disciplina constante de convenção internacional de caráter genérico, principiológico, a um só tempo informadora e suplementar.

Dentre os parâmetros normativos, sói estar presente o que exige previsão convencional/estatutária para a aceitação de um novo membro, comumente aludindo à necessidade de adesão como de aprovação pelos Estados-membros. A retirada, através da "denúncia",pressupõe, igualmente, o atendimento de algumas condições, como a feitura de um aviso prévio (tantas vezes deve distar um período entre o aviso da disposição de afastamento e a sua efetivação) e a constatação de inexistirem pendências financeiras à sua conta. Incomum é admitir-se a denúncia de tratado e a retirada de organização, quando se tratar de ente criado para atuar por período limitado.

Afora a previsão, a autorização de afastamento presente nos diplomas da organização, aceita-se a desvinculação sob o argumento e para prestigiar a soberania estatal, não sem receber críticas dos que defendem a mitigação da soberania com o ingresso na organização (contributivas da efetivação das disposições de caráter internacional).

Para a Convenção de Viena sobre Tratados (1969), a denúncia ou retirada de um tratado, que não o preveja, deve ser aceita desde que as partes assim o desejem ou quando se mantenha implícito no tratado essa hipótese. Dispõe, no mais, que o aludido aviso prévio deve ser dado com a antecedência mínima de 12 (doze) meses. Fato é que não há uma normatização satisfatória dessa questão. As disposições existentes são insuficientes, incapazes de coibir deliberações estatais tendentes à retirada da organização.


5 ESTRUTURA ORGANIZACIONAL

Representativas de grande diversidade, as organizações não prescindem de órgãos permanentes, especialmente um executivo, uma assembléia e um secretariado, todos vinculados ao atendimento dos desígnios institucionais. O órgão executivo é constituído por alguns ou todos os membros, a assembléia pela totalidade e o secretariado por funcionários afetos às tarefas administrativas. Os demais órgãos complementares, sejam judiciários, técnicos, temporários, surgem a depender da especialidade da organização. Veja-se que algumas, é o caso da Organização Mundial do Comércio, prestigiam uma jurisdição própria, responsável pela interpretação e aplicação de seu arcabouço normativo.

Na assembléia geral tomam-se as principais deliberações, notadamente as constitutivas de regras, diretivas das ações da organização. Nesse contexto, os Estados-membros têm direito a voz e a voto paritário. Sem atuação permanente, se reúne em período ordinário ou excepcionalmente. A secretaria é um órgão administrativo, de atuação permanente, composto por servidores, de reconhecida competência e declarada imparcialidade, e por um secretário geral. A secretaria é o vital instrumento operacional da organização, é o meio que lhe possibilita buscar a concretização de objetivos. O conselho exerce função executiva e mantém atuação permanente.


6 OS ATOS DE CONTEÚDO NORMATIVO

As organizações internacionais são estatuidoras de considerável parcela da ordem jurídica planetária. Dentre seus atos edificadores dessa realidade, destacam-se as sentenças, decisões, regulamentos, recomendações, pareceres e diretivas. Alguns de caráter jurisdicional, outros que encerram mera recomendação ou determinam condutas.

A doutrina tem reconhecido que os atos unilaterais e as resoluções das organizações internacionais, ainda que não expressamente previsto no artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, são fontes do direito internacional. Celso Mello (2002, p. 589) defende que as organizações internacionais, "ao exercerem os seus poderes, criam, por meio de deliberações, normas internacionais. Essas deliberações, entretanto, nem sempre têm valor obrigatório; é o que ocorre com as recomendações, os votos e os ditames. Já as resoluções, os regulamentos e as decisões têm valor obrigatório". Quanto aos atos unilaterais, Hee Moon Jo (2004, p. 147) destaca:

O ato unilateral das OIs refere-se à manifestação coletiva dos países membros da OI sobre os assuntos internacionais. A maioria desses atos unilaterais tem a forma de resolução. Essa resolução, variável a denominação, conteúdo e característica, não tem, em geral, força vinculativa, exercendo o efeito de recomendação e de diretriz. Já que as práticas das OIs são a manifestação coletiva dos Estados, os atos unilaterais servem para a formação dos costumes internacionais e como base para a celebração de tratados.


7 AS IMUNIDADES E OS PRIVILÉGIOS

A dispor sobre os tratados exsurgidos das relações existentes entre as organizações internacionais ou entre estas e os Estados, há um direito específico, esculpido em 1986, dito Convenção sobre Direito dos Tratados entre Estados e Organizações Internacionais ou entre Organizações Internacionais. Embora essa não esteja em vigor, na dependência de ratificações, muitas das normas que agasalha, por terem se incorporado ao direito costumeiro, já possuem eficácia. [05]

De modo específico, no que pertine às imunidades e aos privilégios das organizações e dos seus agentes, a mencionada Convenção se faz vivamente presente, sobretudo quando versa, nos termos abaixo traçados, sobre os "acordos de sede" das organizações, haja vista constarem os privilégios e imunidades, geralmente, desses acordos e, excepcionalmente, de diplomas especiais que visam consagrar peculiaridades.

O acordo de sede é uma convenção bilateral firmada entre um Estado e uma organização através da qual aquele destina uma fração de seu território ao funcionamento do apresto sistêmico desta. O acordo costuma impor ao Estado obrigações consistentes na dispensa de privilégios à organização como aos representantes dos Estados envolvidos com a organização, a exemplo dos delegados, membros de conselho etc.

Os privilégios concedidos às organizações não se restringem à localidade da sede, mas abrangem os ambientes de atuação de seus representantes. Aos dignatários asseguram-se os privilégios e imunidades comuns aos corpos diplomáticos. Estão garantidas a inviolabilidade dos prédios e terrenos, dos arquivos, a imunidade de jurisdição e execução, a liberdade para publicações, identificação de veículos com placas diferenciadas, regime fiscal privativo (afastando os representantes do pagamento de impostos do país sede), regime previdenciário próprio, extensão de imunidades e privilégios a familiares, regime aduaneiro especial, dentre outras prerrogativas.


8 O CUSTEIO DA MÁQUINA

No que tange à manutenção financeira, advém, eminentemente, da contribuição dos Estados-membros. Frequentemente as cotizações são desiguais, considerada a capacidade contributiva de cada membro. Na Organização das Nações Unidas, por exemplo, estabeleceu-se o teto para a cota individual em 22% da receita total, objetivando-se evitar excessiva influência de um único membro, nomeadamente os Estados Unidos.


9 E AS IDIOSSINCRASIAS?

As organizações internacionais podem incorporar uma diversidade de características e, por isso mesmo, devem ser classificadas conforme as especificidades. Nessa esteira, fala-se nas organizações de alcance universal e domínio político, abertas à participação de Estados e vocacionadas, prioritariamente, à preservação da paz e da segurança (sendo o caso da ONU), como nas organizações de alcance universal e domínio específico, voltadas para uma atuação temática especializada. [06]

Existem as organizações de envergadura regional e domínio político, caracterizadas pela exclusiva participação de membros de uma limitada região, sendo a situação da Organização dos Estados Americanos – OEA (1951), da Liga dos Estados Árabes – LEA (1945) e da Organização da Unidade Africana – OUA (1963), e de alcance regional e domínio específico, das quais fazem parte as organizações regionais de cooperação e integração econômica, a exemplo da União Européia (1992).

Uma outra classificação fala na presença de organizações intergovernamentais, supranacionais e não governamentais. Nas intergovernamentais os Estados são os atores basilares, vez que seus representantes ocupam os órgãos deliberativos e ditam a política da instituição. Nesta espécie, preserva-se, ao máximo, a soberania interna. Em regra, suas decisões são tomadas por unanimidade ou maioria qualificada. As organizações supranacionais são as advindas do processo de aprofundamento das integrações regionais e pressupõem que os Estados constituintes aceitem se submeter às decisões das entidades supranacionais. Suas decisões são frequentemente tomadas por maioria e as deliberações dos órgãos legislativos e judiciais são diretamente impostas aos Estados membros. Celso Mello (1996, p. 114) sumaria as características das supranacionais da seguinte forma: "Os Estados abdicam, em favor delas, de suas competências (soberania), em sentido mais amplo do que nas organizações internacionais de modelo clássico".

As organizações internacionais não governamentais (ONG) são rebentos de vontades particulares, subsistentes à presença ou ausência de órgãos públicos. Segundo Valeiro de Oliveira Mazzuoli (2005, p. 126-127), não seriam sujeitos de direito internacional. Estruturas como a Cruz Vermelha e a Anistia Internacional estariam submetidas a normas jurídicas internas e não poderiam celebrar tratados.

A depender do autor, as organizações podem ser dispostas ou chamadas ainda de gerais ou especiais, parauniversais, regionais ou quase regionais, de cooperação ou integração, organizações que não admitem a entrada de mais nenhum membro e as abertas a novos ingressos, organizações que se pretendem permanentes e as destinadas a uma vigência limitada (vinculadas a determinadas circunstâncias) et coetera.


10 ENTRAVES À EFETIVIDADE

Ainda que não restem dúvidas da responsabilidade decorrente do não cumprimento dos deveres como membro, consistente na aplicação de sanções, sejam representadas pela suspensão de determinados direitos ou exclusão da organização, [07] as regras promanadas das organizações são largamente afrontadas e frequentemente utilizadas egoisticamente.

O direito das organizações é, factualmente, construído pelos e destinado aos Estados soberanos. Isso implica reconhecer que, entre iguais, resta dificultada a tarefa de aplicar as regras, maiormente quando impositivas de sanções: é que não se costuma assumir erros e compensar danos. Giorgio Del Vecchio (1979, p. 503-504) traça considerações pertinentes:

A dificuldade de conciliar a característica do Estado que consiste em fazer depender dele próprio todas as manifestações da sua vontade, com as características de uma sociedade de Estados com poderes vinculados em frente dos seus componentes, constitui o maior problema do Direito Internacional. E não é exagerado falar aqui numa crise do conceito de soberania como surgido precisamente em virtude do problema abordado, no que respeita às bases do sistema jurídico em geral.

O desiderato das organizações internacionais encontra-se tão dificultado que alguns estudiosos convencionaram chamar o seu direito de um soft law, ou seja, não cogente, não exigível, simplesmente propugnante. Lidando-se com as vicissitudes, registrem-se as palavras de Celso Mello (1996, p. 100-101):

[...] As organizações internacionais não dispõem de um poder efetivo, à semelhança de que têm os Estados para incorporar as suas decisões. Os Estados ainda possuem uma grande esfera de liberdade para cumprir ou não as decisões de acordo com as suas conveniências políticas [...].

As organizações deixam inteira liberdade aos seus membros para a execução de suas decisões, isto significa que elas não dispõem de meios efetivos para impô-las. Os meios que possuem são, na maioria das vezes, de relativo valor político, vez que se resumem, quase sempre, em censuras. Ou ainda, podem chegar à expulsão do Estado membro, que é uma medida que se evita aplicar, porque ela elimina o Estado do controle da organização e ele passa a ter juridicamente maior liberdade de ação. Nas organizações econômicas o meio de se obrigar o Estado autor da violação a cessar com ela é a ‘não participação’, isto é, ele deixa de se beneficiar dos programas desenvolvidos pelas organizações. Por outro lado, para estas organizações é mais importante que cesse a violação do que a aplicação de uma sanção.

Todavia, sem assombro, deve-se reconhecer a pujança das organizações internacionais. Como dito por Celso Mello (p. 600-601), elas são superestruturas da sociedade internacional, ao tempo que são o produto das relações internacionais, constroem essas mesmas relações, seja influindo nas decisões estatais, engendrando meios de controle de conflitos, favorecendo a comunicação entre Estados, constituindo mecanismos de tomada de decisão, confluindo para a segurança dos Estados, para a proteção dos direitos humanos, legitimando ações e situações, internacionalizando questões e podendo limitar o poder dos grandes. [08]

A importância das organizações é tão destacada que inspira autores como Alberto do Amaral Júnior (2008, p. 169) a dissertar que elas "moldam uma espécie de constitucionalismo mundial, composto por regras e princípios que balizam o comportamento dos Estados". Dinh, Daillier e Pellet (2003, p. 71) realçam que, apesar de recuos temporários, há uma tendência de fortalecimento das organizações, patente que "as crises e as tensões da sociedade internacional, ao demonstrarem as insuficiências da cooperação interestatal, obrigam a reforçar a rede das organizações e a confiar-lhes a solução de problemas cada vez mais agudos".

As organizações internacionais, surgidas para conciliar os interesses dos atores globais, evitando as guerras ou, em outras e melhores palavras, disseminando a paz, e, por conseguinte, promovendo desenvolvimento, o mais alargado, nas expressões de Hans Küng e Amartya Sen, exigem, em verdade, como pressuposto para a efetivação de desígnios, um voluntário e digno comprometimento dos seus compositores que, embora distante, prevalecente o individualismo insano, deve ser incansável e maiormente buscado.


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VELASCO, Manuel Diez de. Instituciones de derecho internacional publico. t. I. Madrid: Tecnos, 1973.


Notas

  1. A propósito, veja-se: "Numa conferência realizada há dois anos em Genebra, notava com razão o Sr. Hammarskjöld que todos os esforços até hoje desenvolvidos para a organização do mundo giram em torno de dois pólos opostos: a comunhão dos interesses e o conflito dos interesses. O trabalho da civilização tende, por um lado, a confederar os interesses comuns; é a obra das uniões internacionais – correios e telégrafos, caminhos de ferro, marcas de fábrica, etc. –; por outro lado, tomo como objetivo a solução pacífica das lides entre Estados" (PESSOA, 1960, p. 4).
  2. Guido Fernando Silva Soares usa o termo "intergovernamentais" para realçar a existência das não governamentais – ONG.
  3. Quanto à capacidade de celebrar tratados, perdura o dissenso. A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados entre Estados e Organizações Internacionais e entre Organizações Internacionais (1986) reconhece a possibilidade e atribui ao direito interno de cada organização a competência para estabelecer as condições de seu exercício. O Brasil, nos termos de parecer da Consultoria Jurídica do Ministério das Relações Exteriores, lavrado por A. A. Cançado Trindade em 1986, compartilha do entendimento expresso na Convenção.
  4. Celso Mello (2002, p. 589) enumera uma série de poderes das organizações, citem-se: concluir tratados; enviar e receber representantes diplomáticos; organizar o seu funcionamento interno; ter privilégios e imunidades; promover e participar de conferências; apresentar reclamações; ser depositário de tratados; participar de arbitragem; operar navios e aeronaves com sua bandeira.
  5. Leia-se: "A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados entre Estados e Organizações Internacionais e entre Organizações Internacionais de 1986 é um instrumento jurídico de grande atualidade e utilidade prática no cotidiano da prática do diplomata. Ainda que a Convenção não esteja em vigência, é fundamental o conhecimento doutrinário e teórico do instrumento em função da grande interação entre chancelarias – representantes dos Estados – e organizações internacionais.
  6. [...] Apesar das dificuldades para a entrada em vigência do instrumento, a construção da Convenção fundamentada em muitos princípios costumeiros de direito internacional faz com que ela se torne presente em muitos tratados entre Estados e organismos internacionais mesmo que não haja expressa menção. A presença de fato retoma a sua importância e atualidade no âmbito das relações internacionais" (BERNARDES; CHADID; CARNEIRO, 2003, p. 198-199).

  7. Interessante a observação de Francisco Rezek (2008, p. 265): "Nesta categoria inscrevem-se as chamadas ‘agências especializadas’ da ONU, que na realidade são organizações internacionais distintas, dotada cada uma delas de personalidade jurídica própria em direito das gentes. Sua gravitação em torno das Nações Unidas resulta de uma circunstância de fato: os Estados-membros são praticamente os mesmos, e não há inconveniente em que, reunidos no foro principal, que é a ONU, ali estabeleçam diretrizes de ação para as organizações especializadas".
  8. A exclusão de um Estado costuma ser a sanção mais expressiva imposta a um transgressor dos princípios fundamentais da organização. Quanto a outras, leia-se: "Sanções, menos radicais, estão igualmente previstas, segundo uma gama ascendente destinada a fazer pressão sobre o Estado em causa e a retardar o momento em que, pela expulsão, ele possa escapar a qualquer possibilidade de sanção efectiva. Estas sanções poderão ser a suspensão de direitos e privilégios inerentes à qualidade de membro, a suspensão do direito de voto em certos órgãos".
  9. Para Luis Ivani de Amorim Araújo (2003, p. 255), a presença das organizações internacionais é a prova mais eloqüente da própria existência do direito internacional.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JOB, Ulisses da Silveira. Conciliar interesses e promover desenvolvimento. A difícil tarefa das organizações internacionais em um mundo fraturado pelo individualismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2957, 6 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19699. Acesso em: 19 abr. 2024.