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Os cursos jurídicos são mesmo os vilões da alegada má formação acadêmica?

Os cursos jurídicos são mesmo os vilões da alegada má formação acadêmica?

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Aborda a discussão acerca de quais seriam as razões pela suposta má formação dos acadêmicos dos cursos de Direito.

Os cursos jurídicos são mesmo os vilões da alegada má formação acadêmica?

Muito se tem discutido na atualidade acerca de quais seriam as razões pela suposta má formação dos acadêmicos dos cursos de Direito, que, de acordo com alguns, estariam saindo das universidades com falta de preparo adequado para enfrentar a vida profissional. E, em especial, para galgar aprovação no Exame da OAB e concursos públicos de admissão para as carreiras jurídicas.

Segundo dados estatísticos, os índices de reprovação nestas provas de aferição de conhecimento para o ingresso e exercício na atividade profissional, seriam altíssimos. E estariam a revelar a deficiência no ensino ministrado nas faculdades de Direito.

Razão pela qual, inclusive, existem propostas de eliminação do Exame da OAB como condição sine quo non para o exercício da advocacia. Questão que foi analisada recentemente, também, pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito do Recurso Extraordinário n° 603.583. Que acabou por considerar de acordo com os preceitos constitucionais a exigência desta prova da OAB para o exercício da advocacia, in verbis:

TRABALHO – OFÍCIO OU PROFISSÃO – EXERCÍCIO. Consoante disposto no inciso XIII do artigo 5º da Constituição Federal, “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.     BACHARÉIS EM DIREITO – QUALIFICAÇÃO. Alcança-se a qualificação de bacharel em Direito mediante conclusão do curso respectivo e colação de grau.     ADVOGADO – EXERCÍCIO PROFISSIONAL – EXAME DE ORDEM. O Exame de Ordem, inicialmente previsto no artigo 48, inciso III, da Lei nº 4.215/63 e hoje no artigo 84 da Lei nº 8.906/94, no que a atuação profissional repercute no campo de interesse de terceiros, mostra-se consentâneo com a Constituição Federal, que remete às qualificações previstas em lei. Considerações. 

Sobre este dado da realidade (baixo índice de aprovação nestas avaliações a que se submetem os egressos dos cursos de Direito) pouca divergência parece existir. As dúvidas centrais residem em saber, com algum grau de certeza, quais seriam as causas que estariam levando a este estado de coisas.

Noutros dizeres, será que o fato (real) de haver um grande número de reprovações nestes certames, estaria a evidenciar a deficiência das Faculdades de Direito, que não estariam formando adequadamente os estudantes que saem dessas instituições?

A resposta a esta indagação não é simples, e demanda uma análise sobre diversos aspectos que permeiam este cenário.

Não há dúvida de que existe uma proliferação de cursos de Direito no país. De acordo com estatísticas não oficiais (mas que nem por isto podem ser simplesmente ignoradas), o Brasil tem cerca de 1.240 Faculdades de Direito, e em torno de 800.000 advogados (sem contar o número de juízes, promotores, procuradores etc). Sendo que, no mundo, o somatório total das faculdades jurídicas existentes chega no máximo a 1.100.

Certamente que é um número impressionante e que, vamos e venhamos, deveria sofrer alguma redução. Até porque é inquestionável que existem algumas instituições “caça-níqueis”, que estão muito mais empenhadas em abrir uma Faculdade de Direito (cujos custos de manutenção são relativamente baixos, comparados aos valores arrecadados com as respectivas mensalidades) para auferir dividendos, que para proporcionar um ensino de qualidade.

Tal redução, todavia, não deveria chegar aos mesmos patamares do passado. Quando existiam pouquíssimas faculdades de Direito no país. O que acabava elitizando o ensino jurídico.

Pois poucos eram os ungidos que tinham o privilégio de frequentar estes bancos acadêmicos. Seja porque tinham melhores condições financeiras (e, portanto, melhores condições de estudo – sem impedimento de que pessoas menos favorecidas conseguissem também ingressar nestes cursos), seja porque estavam mais próximas das faculdades (que só existiam nos grandes centros – inexistindo a interiorização e democratização do acesso aos cursos).

É preciso ter em mente, entretanto, que na sociedade contemporânea, o curso de Direito tem não apenas a incumbência de formar profissionais do Direito. Mas também ostenta a função social de capacitar as pessoas acerca das concepções jurídicas do mundo em que vivem.

Porque, uma pessoa mais cônscia dos seus direitos e deveres, e da estrutura jurídica do país onde vive, é um melhor cidadão. Que, alfim, gera o efeito multiplicador de aperfeiçoamento do funcionamento das instituições públicas e privadas, e eleva o nível de consciência coletiva das pessoas como um todo.

Assim, o número elevado de Faculdades de Direito não parece ser o fator preponderante para o fraco desempenho nestas provas admissionais. Mas, então, qual seria?

Inequivocamente estes fatores são múltiplos e, abaixo, são arrolados (ainda que resumidamente) alguns deles, que podem estar contribuindo para este estado de coisas.


COMPLEXIDADE DO ESTUDO JURÍDICO NA ATUALIDADE

O mundo moderno ficou mais complexo e, acompanhando estas modificações, o Direito vem sendo alvo de constantes alterações. E, como não poderia ser diferente, as provas de admissão cada vez mais vem cobrando assuntos relacionados a estes campos do Direito que estão em evidência. Se noutros tempos os conteúdos cobrados praticamente se limitavam a Direito Civil e Penal, Processo Civil e Penal, e Constitucional, hoje estas cobranças se expandiram para outros inúmeros ramos, dentre os quais: ambiental, infância e juventude, consumidor, direitos humanos etc

Equivale a dizer, aquele que faz uma prova hoje em dia, tem que ter uma preparação muito mais exaustiva que em algumas décadas passadas. A quantidade de matérias a ser estudada é muito maior que nos tempos remotos.


RIGORISMO NO PROCESSO ADMISSIONAL

Como resultado direto do grande número de cursos jurídicos, acabam saindo dos bancos acadêmicos uma enormidade de bacharéis a cada ano (ou semestre). E, uma vez formados, iniciam a busca por uma ocupação jurídica, tendo antes, obviamente, de se submeter aos exames de proficiência.

Ora, uma vez que existe uma quantidade ingente de pessoas sequiosas de ingressar num determinado setor, naturalmente, começa a ocorrer uma seletividade maior. Pura e simples aplicação da lei da oferta e da procura.

O raciocínio, apesar de draconiano, é compreensível: se existem muitas pessoas se habilitando para obter a carteira da OAB ou para ingressar numa carreira pública, e poucas vagas disponíveis, ou uma intenção (ainda que não expressamente confessada) de impor alguma limitação ao crescimento desordenado de profissionais (como parece ser o caso da OAB – ao tentar frear o inchaço do número de advogados em exercício), nada mais coerente que ser rigoroso ao extremo nas provas de seleção.

Verdadeiramente, muitas destas avaliações vem-se revestindo de uma tal dificuldade (não raro impregnadas por questionamentos sofismáticos), que somente aqueles com um preparo muito acima da média (e com excelente capacidade para memorizar conceitos e teses jurídicas, nacionais e estrangeiras) conseguem obter êxito e uma nota razoável.


DISTRAÇÕES ATÉ ENTÃO NÃO EXISTENTES

Outro problema é o grande número de distrações que roubam a atenção dos estudantes. Prejudicando a concentração nos estudos, e dificultando o aprendizado.

Até bem pouco tempo os alunos não dispunham de um arsenal tão grande de artefatos eletrônicos que, teoricamente, deveriam facilitar suas vidas e estudos. Nas salas de aulas é comum os alunos se distraírem com telefones celulares, notebooks, redes sociais e outras mídias interativas congêneres.

Não que se deva ter aversão à tecnologia. Mas para tudo há limites. Acreditar que estudantes (pelo menos uma boa maioria) usando telefones celulares e laptops na aula não darão uma espiada em algum site de conteúdo alheio ao Direito, ou que não passarão ou receberão mensagens por email, twitter ou redes sociais, é ignorar a realidade.

E quando chegam em casa, existem um sem-número de canais de televisão fechada que podem contribuir para este roubo de atenção aos estudos.

Nestes casos, cabe a cada estudante ter consciência do tempo que gasta com estas distrações. De modo a que não venham a prejudicar à dedicação aos estudos.


POUCA DEDICAÇÃO AO ESTUDO

A experiência em sala de aula revela que muitos vem para a universidade apenas e tão-somente para conseguir um diploma. Não querem se dedicar ao estudo, mas querem o diploma.

Muitos fatores poderiam ser aqui listados. Fiquemos, entretanto, com apenas um: as inúmeras tarefas que temos de executar todos os dias.

Foi-se o tempo em que se podia trabalhar apenas 8 horas diárias e ir para casa descansar. A demanda laboral vem exigindo uma dedicação, em geral, cada vez maior dos trabalhadores. Sem contar que muitos, para complementar a renda, são obrigados a ter mais de uma ocupação trabalhista.

Afora o trabalho em si, os deslocamentos nas cidades vem se tornando cada vez mais desgastantes (trânsito parado, perda de tempo, estresse gerado pela falta de educação de motoristas dentre outros fatores). E ainda existem as pequenas incumbências domésticas a serem enfrentadas ao se chegar em casa (filhos, arrumação e limpeza da casa, planejamento do orçamento doméstico etc).

Num cenário destes, é comum se deparar com alunos em frangalhos na sala. Com pouca (ou nenhuma) disposição para o estudo. Claro que são mais vítimas que culpados, mas nem por isto deixam de colocar em xeque o aprendizado. Apresentando rendimento acadêmico sofrível, e sem perspectiva de melhora.


CUSINHOS PREPARATÓRIOS

Um pensamento equivocado de alguns estudantes é achar que podem se descuidar do curso de graduação, porque depois poderão tirar o atraso num cursinho preparatório para carreiras jurídicas.

Por certo que muitos destes cursinhos são excelentes, e fornecem realmente uma complementação educacional importante. E, de fato, alguns conseguem estudar no cursinho tudo aquilo que foi negligenciado durante a faculdade.

Mas será, então, que o cursinho é bom e a faculdade ruim?

A questão não é bem esta mas, para simplificar a análise, é inegável que muitos alunos realmente estudam muito quando vão para estes cursinhos. Talvez pelo fato de agora já estarem graduados (e daí começarem as cobranças da famílias, sociais e dos empregadores), e terem de exercer a profissão para a qual se capacitaram.

Sentem, ainda que tardiamente, o rubor nas faces por terem sido displicentes durante os cinco anos da graduação. E passam a encarar os estudos como uma realidade presente e inafastável.

Quem dera tivéssemos na graduação alunos tão interessados como os de cursinhos. Claro que na universidade existem incontáveis alunos que são exemplares na conduta e no estudo. E sem dúvida que nos cursinhos também se pode encontrar pessoas que estão ali apenas para preencher o tempo, sem maiores preocupações com os estudos.

Todavia, em geral, os alunos se lançam nestes cursinhos com uma assiduidade religiosa. Mesmo não sendo obrigados a se submeterem a provas e listas de presença.

Com uma dedicação assim, não é surpresa nenhuma que consigam assimilar todo aquele conteúdo que foi desprestigiado na graduação.

Sem falar que os cursinhos se valem de uma plataforma que, bem ou mal, já está sedimentada. Na graduação tudo é novo. Já no cursinho o conteúdo não será mais novidade para o aluno, que apenas estará reforçando aquilo que, de alguma forma, já tomou conhecimento (mesmo que precário). Haverá no cursinho uma recapitulação do tema, e abordagem sobre alguns assuntos que possam ter escapado da graduação. Mas, em regra, aquilo já não mais será um assunto estranho para o estudante.


GANHO FÁCIL

Dentro desta esteira de causas, pode ser enumerada a sanha pelo ganho fácil. O querer se tornar celebridade da noite para o dia. Alguns, ansiosos por obterem o reconhecimento social e uma vida de abundância sem maiores esforços, ficam a espreita de uma oportunidade para chegar a este status.

Exemplos na mídia não faltam: a) é a estudante que por usar trajes inadequados num ambiente acadêmico (e por isto é bestial e inaceitavelmente expulsa da sala pelos seus colegas) ganha uma polpuda indenização por danos morais, torna-se uma celebridade, e passa a frequentar capas de revistas e a dar entrevistas; b) é a prostituta que escreve um livro e vira produção cinematográfica; c) o adolescente que genialmente cria um ambiente virtual para hospedar uma rede social.

Quer dizer, para que estudar se a pessoa pode se valer da extravagância para se tornar uma celebridade e ficar rica? Ou se num golpe de genialidade (que estatisticamente é quase como ganhar na loteria) ela pode ser tornar milionária no dia seguinte?

Muitos, infelizmente, colocam-se nesta posição. Sobre os quais as instituições de ensino pouca influência tem.

Vê-se, portanto, que muitos são os fatores que contribuem para o mencionado baixo índice de aprovação nas provas realizadas pelos egressos das Faculdades de Direito. O que não significa, que isto seja resultado direto da suposta má qualidade generalizada dos cursos jurídicos.

É de todo desejável que sejam cobrados aperfeiçoamentos das Faculdades de Direito. Contudo, antes de mais nada, é necessário se ter a exata compreensão do problema que se tem a enfrentar. De forma a se evitar a depreciação (generalizada e infundada) dos cursos jurídicos existentes no país.


Autor

  • Sérgio de Oliveira Netto

    Procurador Federal. Mestre em Direito Internacional (Master of Law), com concentração na área de Direitos Humanos, pela American University – Washington College of Law. Especialista em Direito Civil e Processo Civil. Professor do Curso de Direito da Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE (SC).

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