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Constituição Inglesa

Constituição Inglesa

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 A reforma política deve colocar fim ao instituto da reeleição e isso traz à tona um tema clássico: a rotatividade do poder (um substrato da República) como eficaz meio de controle ao uso/abusivo do poder. O controle do poder tem muitas formas e mecanismos, internos e externos, contudo, o mais sagrado é a separação dos poderes – e isto nos leva de volta na história.

Para definir sua Teoria da Separação dos Poderes, Montesquieu recorre ao constitucionalismo inglês (desde a Magna Carta, de 1215) e ao pensamento já formulado por Locke (1994). Não há uma Constituição Inglesa, nos moldes da brasileira e de tantas outras, mas há elementos escritos do constitucionalismo inglês:

  1. Todas as leis constitucionais (escritas) produzidas pelo parlamento.
  2. As decisões judiciais escritas (Common Law) e as interpretações e reinterpretações das leis promulgadas (Cases Law).
  3. Convenções constitucionais (acordos políticos efetuados no parlamento, como normas de organização e funcionamento do Estado, e separação das funções e dos poderes de Estado)[1].

A ideia-base da separação das funções e dos poderes de Estado é funcionar como contenção do poder supremo: dividir para controlar (ou dominar) e esta concepção de limitação do poder está inscrita na Magna Carta. A separação dos poderes, em paralelo à divisão de funções (próprias aos três poderes), floresceu com o advento da liberdade negativa:

2 – Concedemos também a todos os homens livres do reino, por nós e por nossos herdeiros, para todo o sempre, todas as liberdades abaixo enumeradas, para serem gozadas e usufruídas por eles e seus herdeiros [...] 39 – Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado de seus bens [...] senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país[2] [...] Todos os direitos e liberdades, que concedemos e que reconhecemos enquanto for nosso o reino, serão igualmente reconhecidos por todos, clérigos e leigos, àqueles que deles dependem (Miranda, 1990, p. 13-16 – grifos nossos).

Ainda vimos que, na Magna Carta, a garantia do devido processo legal (due process of law) tinha aí sua bases no direito anglo-saxão. Depois, na sequência, houve A Petição de Direito (1628) e a fixação do princípio da anterioridade, a proibição das Cortes Marciais e o fim da prisão civil. Se bem que desde a Magna Carta o princípio da anterioridade já estava inscrito, proibindo-se, regulando-se a cobrança de tributos, ou seja, havendo regulação dos atos do Executivo pelo Legislativo. Seguida de A Lei de Habeas Corpus, de 1679, e A Declaração de Direitos (Bill of Rights), de 1689. Talvez neste último documento a separação de poderes (divisão de funções) esteja mais claramente definida:

1º. Que o pretenso poder do rei de suspender as leis ou a execução das leis, sem o consentimento do Parlamento, é ilegal; 2º. Que o pretenso poder do rei de dispensar da obediência às leis ou da execução das leis, usurpado e exercido nos últimos tempos, é ilegal [...] 5º. Que constitui direitos dos súditos o direito de petição perante o rei e que são ilegais todas as prisões e processos por causa do seu exercício [...] 8º. Que as eleições dos membros do Parlamento devem ser livres [...] 11º. Que os jurados devem ser escolhidos e os seus nomes dados a conhecer, por forma legal, e que os jurados incumbidos de julgamentos por alta traição devem ser proprietários livres (p. 23-24 – grifos nossos)[3].

A separação de poderes deve conter o abuso de poder e, em decorrência, as injustiças; portanto, é ilegal a faculdade de o Executivo dispensar o cumprimento das leis. Por fim, O Ato de Estabelecimento (1701) tratou das prerrogativas trazidas pelo Estado-Juiz e pelo Princípio do Juiz Natural: “7º. Que os juízes conservar-se-ão nos cargos quandiu se bene gesserint (em função do seu zelo) e perceberão vencimentos certos e fixados por lei mas poderão ser afastados por iniciativa de ambas as Câmaras de Parlamento” (Miranda, 1990, p. 27).

Na hierarquia de poderes, o Legislativo é o poder que aglutina a soberania do povo: “Não é o comissionamento, mas a autoridade que dá o direito de agir, e contra as leis não pode haver autoridade” (Locke, 1994, p. 210). Uma vez confiada a responsabilidade de gerir o Bem Público, ao Poder Executivo é conferido o poder discricionário:

Este poder de agir discricionariamente em vista do bem público na ausência de um dispositivo legal, e às vezes mesmo contra ele, é o que se chama de prerrogativa [...] o poder executivo guarda por isso uma certa liberdade para realizar muitos atos discricionários que não estão previstos na lei [...] Poucas leis estabelecidas serviam aos seus propósitos, e o discernimento e a cautela do governante supriam o resto (Locke, 1994, p. 182).

            Em Locke, o Poder Judiciário, ao contrário do que disporia Montesquieu – com total autonomia –, é um poder subordinado ou subsumido ao Poder Executivo:

Aqueles que estão reunidos de modo a formar um único corpo, com um sistema jurídico e judiciário com autoridade para decidir controvérsias entre eles e punir os ofensores, estão em sociedade civil uns com os outros; mas aqueles que não têm em comum nenhum direito de recurso, ou seja, sobre a terra, estão ainda no estado de natureza, onde cada um serve a si mesmo de juiz e de executor, o que é, como mostrei antes o perfeito estado de natureza” (Locke, 1994, pp. 132-133).

            A ordem civil, portanto, que antecipa a civilidade e a modernidade, decorre de um pacto muito mais expressivo, coletivo e definitivo. O pacto social que funda o governo civil, para Locke, obrigatoriamente retrata a formação dos poderes Judiciário e Legislativo. O governo civil, então, decorre de uma renúncia[4] e de uma anuência[5]: “Por isso, todas as vezes que um número qualquer de homens se unir em uma sociedade, ainda que cada um renuncie ao seu poder executivo da lei da natureza e o confie ao público, lá, e somente lá, existe uma sociedade política ou civil” (Locke, 1994, p. 134). Pode-se dizer, novamente, que este pacto civil será inaugural à modernidade: “Os homens passam assim do estado de natureza para aquele da comunidade civil, instituindo um juiz na terra com autoridade para dirimir todas as controvérsias e reparar as injúrias que possam ocorrer a qualquer membro da sociedade civil; este juiz é o legislativo, ou os magistrados por ele nomeados” (Locke, 1994, p. 134). Este pacto civil deveria prover mais segurança aos membros do grupo, assim como certa regularidade diante do poder. Na modernidade política, o pacto constitucional reafirmado pelo Estado de Direito assegurará a divisão ou separação (tripartite) das funções e dos poderes institucionais.


Bibliografia

LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o governo civil e outros escritos. Petrópolis-RJ : Vozes, 1994.

MIRANDA, Jorge. Textos históricos do Direito Constitucional. 2ª edição. Lisboa : Imprensa Nacional : Casa da Moeda, 1990.


Notas

[1] http://jus.com.br/artigos/5768/o-constitucionalismo-ingles.

[2] O Princípio da Legalidade.

[3] É evidente que se trata de imposição da Monarquia Constitucional.

[4] À soberania do direito natural.

[5] A adesão ao pacto social.


Autor

  • Vinício Carrilho Martinez

    Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

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