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Sobre os sistemas éticos a la carte ou “os substitutos de Deus”

Sobre os sistemas éticos a la carte ou “os substitutos de Deus”

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A tese central do artigo é de que após a queda das concepções que basearam a Ética no comando divino, os diversos sistemas normativos seculares que se sucederam são baseados em última instância nos dogmáticos princípios estabelecidos por seus fundadores.

Arthur Allen Leff, professor de Yale, publicou em 1979 um dos mais influentes artigos da história recente da filosofia do Direito: Unspeakable Ethics, Unnatural Law (“Ética Indizível, Direito Não Natural”, em tradução livre). A tese central do artigo é de que após a queda das concepções que basearam a Ética no comando divino, os diversos sistemas normativos seculares que se sucederam são baseados em última instância nos dogmáticos princípios estabelecidos por seus fundadores.

Em outras palavras: os sistemas éticos propõem diretrizes para avaliar o comportamento humano em termos de certo ou errado, desejável ou indesejável. Em cada um deles, existem premissas incontestáveis, pois fundamentam o próprio sistema. O utilitarismo, por exemplo, considera como boa a ação que produz a maior quantidade de bem-estar na sociedade. O deontologismo, por outro lado, postula que a qualidade positiva ou negativa de uma ação depende da aplicação do imperativo categórico. Qual o fundamento dessas premissas? A mera declaração de sua existência pelos fundadores dos sistemas éticos, respectivamente Emanuel Kant e Jeremy Bentham.

Qual seria então a real diferença entre os sistemas éticos teológicos e os seculares? Posto de modo extremamente simples, a diferença é a fonte de cada um desses sistemas. Nos primeiros, a fonte é a vontade divina, tal como reconhecida por alguma religião. Nos segundos, a fonte também é a vontade, mas desta vez a vontade individual, na forma declarada por seus fundadores e reconhecida por uma parcela significativa da classe intelectual. Torna-se inevitável a analogia: todo fundador de um sistema ético é, ao declarar as premissas desse sistema, um Deus “substituto”, a autoridade final sobre a qual todas a regras morais devem se fundar. Por sua vez, a parcela da classe intelectual que adota esse sistema é um novo “clero”, que reconhece a “divindade” do novo sistema e passa a propagá-lo da forma mais dogmática possível.

Quem frequenta um típico curso de Ética em uma universidade, brasileira ou estrangeira, logo percebe (maravilhado ou perplexo) que não há nenhuma necessidade de colocar em risco suas prévias concepções éticas. Basta escolher, à la carte, o sistema ético que mais esteja de acordo com elas. Se a pessoa for, por exemplo, contrária ao aborto, haverá um sistema capaz de fornecer sofisticadas fundamentações. Se, por outro lado, a pessoa for favorável ao aborto, ela também encontrará o sistema perfeito para sustentar sua crença.

Leff termina o artigo dizendo que do modo como as coisas estão, tudo encontra-se em aberto. Em outras palavras, tudo seria admissível. Porém, logo depois mostra que essa afirmativa não se sustenta com tanta facilidade:

A despeito disso:

Jogar napalm em bebês é mau.

Deixar os pobres famintos é perverso.

Comprar e vender uns aos outros é depravado.

Quem enfrentou e morreu resistindo a Hitler, Stalin, Amin e Pol Pot – e o General Custer também – mereceram a salvação.

Aqueles que concordaram com merecem a danação.

Há neste mundo algo como a maldade.

[Todos juntos agora:] Quem disse isso?

Deus nos ajude.

A tempo: Arthur Allen Leff, morto em 1982, era agnóstico.


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