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O crime de emissão de cheque sem suficiente provisão de fundos e a garantia da dívida

O crime de emissão de cheque sem suficiente provisão de fundos e a garantia da dívida

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O PRESENTE ARTIGO PROCURA ESTUDAR O CRIME PREVISTO NO ARTIGO 171, § 2º, INCISO IV, DO CP, E AINDA A HIPÓTESE EM QUE O CHEQUE SERVE COMO GARANTIA DE DÍVIDA.

O CRIME DE EMISSÃO DE CHEQUE SEM  SUFICIENTE PROVISÃO DE FUNDOS  E A GARANTIA DE DÍVIDA

ROGÉRIO TADEU ROMANO

Procurador Regional da República aposentado

No cotidiano vem sempre a questão da emissão do cheque como garantia de dívida(pré-datados), e não como ordem de pagamento á vista, de forma a afastar a fraude específica prevista no artigo 171, § 2º, inciso  VI, do Código Penal.

A matéria foi debatida, dentre outros julgamentos, no REsp 693.804/RS, Relator Ministro Gilson Dipp, DJ de 4 de abril de 2005, onde se concluiu que o fato de se utilizar de cheque pré-datado não descaracteriza o delito de estelionato se o mesmo foi objeto de furto.

Realmente o agente comete conduta criminosa quando, pelo que se vê do artigo 171, § 2º,  VI, do Código Penal:

VI - emite cheque, sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado, ou lhe frustra o pagamento.

Sujeito passivo do crime é o tomador(beneficiário) do cheque, aquele que o recebe para desconto, sendo lesado por não haver fundos suficientes em poder do sacado. Pratica o crime aquele que emite o cheque sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado ou quem lhe frustra o pagamento(é o emitente do título). Comete o crime  o avalista do emitente do titulo quando participa, de má-fé,  da sua elaboração cambial, figurando como coautor, quando agir em conluio prévio com o emitente do cheque. Poderá o avalista responder por estelionato quando sua malícia simplesmente acompanhar a transferência do cheque. Já se entendeu que é partícipe aquele que, em prévio ajuste com o emitente, inclui despesa de seu interesse entre aquelas que o autor principal simulou o pagamento(RJDTACRIM 9/70).

O cheque, como título de crédito, é uma ordem de pagamento à vista. Isso porque a Lei nº 7.357, de 2 de setembro de 1985, artigo 33, prevê: “o prazo de 30 dias para a apresentação do cheque na praça ou de 60 dias fora dela, sob pena de perder algumas de suas garantias”. Assim se presume que sua emissão, fora desse prazo, será vista como promessa de pagamento(RF 262/299, 257/306).  

Trata-se de crime material, entendendo o Supremo Tribunal Federal, na edição da Súmula 521, que “o foro competente para o processo e o julgamento dos crimes de estelionato, sob a modalidade de emissão dolosa de cheque sem provisão de fundos, é o do local onde se deu a recusa do pagamento do sacado”. O crime em discussão é admissível de tentativa.

É certo que Heleno Cláudio Fragoso, em comentários a acórdão do STF, diverge dessa orientação da Súmula, apoiando voto do Ministro Gonçalves de Oliveira(Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal, 15/173; 12/163; 9/173; 10/185), pois, para ele, o importante é saber onde efetivamente o agente praticou o fato criminoso, em respeito a inte4rpretação dos artigos 69, I, e ainda 70 e seguintes do Código de Processo Penal. Mas, naquele sentido, foi editada a Súmula 244 do STJ, no sentido de que “compete ao foro do local da recusa processar e julgar o crime de estelionato mediante cheque sem provisão de fundos”.

Examinando o artigo 171, § 2º, VI, do Código Penal, Nelson Hungria, em seus Comentários ao Código Penal, volume VII, pág. 247, assentou posição no sentido de que emitido o cheque como documento de dívida não será reconhecível crime.

Realmente o Supremo Tribunal Federal já editou Súmula 246 onde se diz que “comprovado não ter havido fraude, não se configura o crime de emissão de cheque sem fundo”.

Por sua vez, a Súmula 554 do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que “o pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, após o recebimento de denúncia, não obsta ao prosseguimento da ação penal”. Só se descaracteriza o crime se não houver fraude(RTJ 119/1.063, 120/653).

Discute-se a questão que envolve a dúvida no sentido de que  o  pagamento do cheque antes da denúncia descaracteriza o crime. Ora, já se entendeu pela falta de justa causa para a ação penal(RTJ 75/732, 77/648, 96/1.038). Assim já houve conclusão  de que o pagamento do cheque deve ser causa que exclui a possibilidade de ação penal(RT 658/348). Aliás, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC 19.539/SP, Relator Ministro Gilson Dipp, DJ de 3 de fevereiro de 2003, julgou no sentido de, na hipótese de denúncia pela eventual prática de estelionato mediante fraude no pagamento por meio de cheque, tem-se como extinta a punibilidade do paciente, se evidenciada a quitação do débito antes do oferecimento da peça acusatória. Mas é tranquila a  orientação de que o pagamento do cheque antes do recebimento da denúncia não descaracteriza o crime previsto no artigo 171, caput, quando se tratar de cheque furtado, emitido contra conta encerrada(STF, HC 72.944 – 4, DJU de 8 de março de 1996). Mas ressalte-se: entendeu o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC 280.089/SP, Relator Ministro Jorge Mussi, DJe de 26 de fevereiro de 2014, que o agente que realiza pagamento através de emissão de cheque que chegou ilicitamente a seu poder, incide na figura prevista no caput do artigo 171 do Código Penal, não em seu § 2º, inciso IV. Recorde-se que o Superior Tribunal de Justiça já deixou assentado que “inexiste justa causa para a ação penal, quando, comprovadamente, há o pagamento do cheque sem provisão de fundos, antes do recebimento da denúncia”(RHC 15.039/AM, DJ de 6 de fevereiro de 2006). É certo que questiona-se, diante da redação dada pela Lei nº 7.209/84, se ainda prevalece a orientação do STF quanto à falta de justa causa para a ação penal pelo pagamento do cheque antes do recebimento da denúncia ou da queixa ou se é ele agora apenas causa de diminuição da pena. Para Mirabete(Manual de Direito Penal, volume II, 25ª edição, pág. 311), tratando-se de benefício maior, concedido mesmo na ausência de dispositivo expresso, pelo STF, o pagamento do cheque deve continuar a ser, nessa hipótese, causa que exclui a possibilidade de ação penal(RT 658/348).

A emissão não ocorre com o simples preenchimento e assinatura do emitente, mas pela circulação do título sem que haja suficiente provisão de fundos em poder do sacado, exigível no momento do saque. Mas o agente poderá providenciar o depósito necessário antes da apresentação do titulo pelo tomador ao sacado, não ocorrendo prejuízo para o beneficiário, quando se fala em inexistência do crime delito material contra o patrimônio, que exige resultado lesivo. Pode acontecer que o sacado honre o pagamento, ainda na inexistência de fundos, sem que o tomador sofra qualquer dano. No último caso, o pagamento pelo sacado, descaracteriza o delito com relação ao beneficiário, mas não quanto ao sacado.

O cheque, nos tempos atuais, devido a tecnologia e comodidade dos cartões de crédito, e outros métodos que a informática nos apresenta (são os tempos modernos), vem deixando de ser forma usual  de pagamento no comércio. Aliás, há organizações comerciais que sequer o aceitam. Diversos são os exemplos de devolução, no comércio, de cheques sem fundo, cujas estatísticas eram alarmantes.

Fala-se no cheque especial, sistema equiparado ao dos cheques a descoberto. É certo que, no passado, considerava-se que não se podia imputar ao emitente o crime em estudo quando o correntista ultrapassava o valor de seu crédito, respondendo ele por estelionato comum, na forma do artigo 171 do Código Penal(RT 564/343, 545/349). Com o advento da nova Lei do Cheque(Lei nº 7.347, de 2 de setembro de 1985), porém, considera-se ainda fundos disponíveis, além dos créditos e saldo, a soma proveniente da abertura de crédito (artigo 4º, § 2, c), devendo o agente, no caso de emitir cheque em quantia superior ao crédito, responder pelo crime de emissão de cheque sem fundos(STJ: RHC 1.536 – SP, DJU de 18 de novembro de 1991).

De toda sorte, repita-se a existência do crime de emissão de cheques sem fundos depende da má-fé do agente, a configurar esse tipo especial de estelionato. Não se configura esse crime por saber a vítima da inexistência de fundos quando o título é desvirtuado de sua característica específica que é de ser ordem de pagamento à vista(RT 486/349). Não há esse crime se o cheque é dado sem data ou é pós-datado(RT 329/199; 510/435, dentre outros).

Ainda não se configura o crime no pagamento efetuado por meio de cheque sem fundos de títulos de crédito(promissórias, duplicatas etc), como já se decidiu(RTJ 77/143; RT 575/372, 574/419, dentre outros). Isso porque estar-se-ia diante de simples promessas de pagamento e a vantagem é preexistente à emissão do cheque e não resulta deste, havendo que se falar em novação(para muitos, meio de substituição de títulos, sendo o cheque, um título de maior garantia, como ensinou Fabbrini Mirabete(Manual de Direito Penal, volume II, 25ª edição, pág. 309).

Mesmo em caso de pagamento de dívida de jogo persiste o crime, como ensinou Nelson Hungria(Comentários ao Código Penal, volume VII, pág. 250 – 256). No entanto, Dirceu de Mello(Aspectos penais do cheque, pág. 145), na linha de Magalhães Noronha(Direito penal, volume II, pág. 442) entendia que somente há o ilícito quando se trata de jogo lícito. Ora, é caso de impossibilidade jurídica do pedido a cobrança de dívida de jogo, além de haver falta de prejuízo para o patrimônio da vítima(RF 263/313).

O cheque pós-datado ou pré-datado quando emitido em garantia de dívida não configura o crime do artigo 171, § 2º, VI, nem do caput do artigo 171(estelionato), como já decidiu o Pleno do STF(RTJ 110/79) e ainda o STJ(RHC 2.285, DJU de 16 de novembro de 1992).

Vem a pergunta: Haverá crime de emissão de cheque sem fundo em caso de garantia de dívida? Penso que não.

O cheque dado como garantia de dívida está desvirtuado de sua função própria e não configura o delito(STF, RTJ  546/451, RTJ 92/611) e do que decidiu o STJ(RT 782/544), não há  qualquer relevância o fato de encontrar-se encerrada a conta corrente no momento da apresentação da cártula(TJDF, Ap 12.396, DJU de 18 de novembro de 1992). Já entendeu o Superior Tribunal deJustiça(RHC 9.221/MT, Relator Ministro Vicente Leal, DJ de 3 de abril de 2000) que “não constitui crime de estelionato, na modalidade prevista no artigo 171, § 2º, VI, do Código Penal, a emissão de cheque sem provisão de fundos e a sua entrega ao credor como garantia de dívida, sendo certo que para a configuração de tal delito é imprescindível a prática de fraude para a obtenção da vantagem ilícita”.

Haveria, no caso, do cheque sem suficiente  provisão de fundos, em que há garantia de pagamento, uma atipicidade penal.


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