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A Lei de Responsabilidade Fiscal e os limites de atuação do Estado

A Lei de Responsabilidade Fiscal e os limites de atuação do Estado

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O presente artigo visa verificar o conteúdo da Lei de Responsabilidade Fiscal no que se refere à normatização dos gastos públicos e a suas limitações quanto às despesas e expõe o conteúdo do parágrafo 2º do artigo 9º da mesma lei.

Resumo

O presente artigo visa verificar o conteúdo da Lei de Responsabilidade Fiscal no que se refere à normatização dos gastos públicos e a suas limitações quanto às despesas com contratação de pessoal, e à saúde e expõe o conteúdo do parágrafo 2º do artigo 9º da mesma lei.

O supracitado artigo prediz que não há limites para o pagamento dos juros relativos à dívida contraída pelo Estado perante as instituições financeiras privadas, em contrapartida, há várias limitações para a atuação do Estado em promover ações públicas relativas à contratação de pessoal, havendo flagrante privilégio dos interesses das instituições privadas em detrimento dos direitos sociais coletivos.

Palavras chave: Lei de Responsabilidade Fiscal. Contratação de Pessoal. Saúde. Parágrafo 2º do artigo 9º da Lei de responsabilidade Fiscal. Limites. Atuação do Estado. Políticas Públicas.

A Lei de responsabilidade Fiscal e os limites à atuação do Estado

A Lei de responsabilidade fiscal surgiu com inspiração no Fiscal Responsability Act da Nova Zelândia, por intermédio do Comitê Interino, que, em atendimento à exigência do Fundo Monetário Internacional, liderou o fomento pela normatização de práticas que viabilizem não somente um aumento do controle sobre as ações dos administradores públicos, mas uma alteração da cultura do uso da máquina pública para a promoção de benefícios pessoais em detrimento da busca pelo bem comum, por meio da difusão de códigos como o Código de Boas Práticas para a Transparência Fiscal, que serviu como base para a criação da Lei de Responsabilidade Fiscal.

O objetivo principal da Lei de Responsabilidade Fiscal, segundo nos esclarece Regis Fernandes de Oliveira, é:

“fixar a responsabilidade fiscal como um dos princípios da gestão pública. Não se destina apenas à fixação de agente responsável. É muito mais que isto. É redefinir a cultura da atividade pública do País. É uma verdadeira evolução conceitual, de forma a que o agente público saiba que exerce, não apenas um mandato ou uma função, mas que é integrante de uma ordem completa de preservação dos valores sociais.” [1]

Dessa forma, a Lei de Responsabilidade Fiscal estabelece maneiras concretas de se realizar a administração pública, por meio da obrigatoriedade em se realizar a exposição transparente do planejamento da ação pública, do atingimento das metas estabelecidas e da identificação e prevenção dos riscos ao desequilíbrio das contas públicas, tudo com vistas à manutenção do equilíbrio entre a arrecadação e os gastos públicos.

Vejamos o que nos diz o artigo 1º da citada lei:

“Art. 1º Esta Lei Complementar estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, com amparo no Capítulo II do Título VI da Constituição.

§ 1º A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em restos a pagar.”

Além da mera punição dos agentes públicos ímprobos, e, por já possuirmos normas que determinam a penalização deles, a Lei Complementar 101 vem determinar às ações públicas a aplicação do que segue:

  1. Transparência fiscal, por meio da divulgação dos balanços das contas públicas, a adequação à lei, e a exposição relativa à motivação das ações publicas, que devem se pautar pela racionalidade;
  2. Planejamento das ações públicas, com o estabelecimento de metas a serem cumpridas e a divulgação dos resultados na busca pelo implemento dessas ações;
  3. Manutenção do equilíbrio fiscal, por obediência aos limites predeterminados por lei, pela prevenção e apontamento dos riscos ao equilíbrio das contas, e pela correção de desvios das ações;
  4. Estabelecimento de condições para: a renúncia de receitas, geração de despesas (relativas a folha de pagamento, seguridade social, dívidas, operações de crédito, concessão de garantias) e na inscrição em restos a pagar.

Em termos práticos, a responsabilidade apregoada por essa lei determina uma aproximação das práticas já implementadas no âmbito da iniciativa privada, com a objetivação das metas e foco nos resultados, itens esses dispostos de forma mensurável, possibilitando o controle, seja pelo próprio Estado e os órgãos a ele relacionados, como o Tribunal de Contas, seja por parte do próprio cidadão, a quem é dado participar do controle por meio da vinculação relativa à transparência, que dá visibilidade dos atos Estatais aos cidadãos, aos quais as políticas públicas visam atender. Dessa forma, a gestão financeira da atividade da administração pública possibilita o acompanhamento de seu desempenho por meio da exposição periódica de planilhas, preenchidas pelos gestores financeiros, contratados segundo suas capacidades técnicas, de acordo com as normas de contratação dispostas pela administração pública, tudo em conformidade com as regras de contabilidade vigentes no nosso país, cada vez mais aproximada das normas internacionais, imprimindo a racionalização dos procedimentos da administração pública, desde o início até o final, diminuindo a margem de improvisação e amadorismo na gestão financeira do ente público e aumentando a austeridade nas práticas concernentes à contabilidade e gestão financeira.

Com relação à transparência, em 2005 surgiu o Decreto nº 5.482, e em 2006 a Portaria Interministerial nº 140, com vistas a normatizar a divulgação de informações relativas à execução orçamentária e financeira da União, determinando que os dados relativos aos gastos públicos, repasses de recursos federais, crédito e operações de descentralização de recursos orçamentários, licitações contratos, convênios e dados sobre passagens e diárias de hotel sejam dispostos pelos órgãos e entidades da administração pública federal pela internet. [2]

A LRF é aplicável a todos os entes da federação, entendidos como todas as pessoas jurídicas de Direito Público Interno (União, Estados, Municípios e Distrito Federal), compreendidos como o Poder Executivo, Legislativo (com a inclusão do Tribunal de Contas), o Judiciário, o Ministério Público e as administrações diretas e indiretas, inclusive fundos, autarquias, fundações e empresas estatais dependentes. É de se mencionar que os fundos financeiro-fiscais e o fundos de previdência estão submetidos à LRF por integrarem o conceito de ente da Federação, restando excluídos do enquadramento somente as empresas estatais independentes, ou seja, que não dependem do orçamento da Federação para custeio de suas atividades. A chamada empresa estatal dependente é aquela que tenha recebido recursos financeiros de seu controlador, ou tenha autorização orçamentária para recebimento de recursos financeiros.[3]

  1. A Lei de Responsabilidade Fiscal e as despesas de pessoal

Uma das grandes inovações da LRF foi o tratamento específico das despesas de pessoal, sejam elas relativas a aumentos da remuneração ou criação de cargos e contratação de pessoal. O caput do artigo 21 inicia com a frase: “É nulo de pleno direito o ato que provoque aumento da despesa com pessoal que não atenda..” cuja interpretação  é a de que se os atos que não observarem os requisitos determinados por lei ficarão sujeitos à invalidade, ou seja, não são eficazes, deixando de gerar os direitos a eles relativos, em razão do vício nos seus elementos constitutivos. E expõe os requisitos a serem preenchidos para sua concessão, verificados a seguir:

  • Em atinência ao parágrafo único do artigo 21 da LRF, a despesa não pode ser realizada nos 180 dias anteriores ao final do mandato;
  • Deve ser demonstrada a origem dos recursos para seu custeio, conforme estipula o artigo 17 em seu parágrafo 1º, bem como deve ser realizada a sua estimativa, conforme art. 16, inciso I;
  • Em observância ao disposto no art. 17, § 2º da LRF, deve-se fazer a comprovação de que a despesa criada ou aumentada não afetará as metas de resultados fiscais, e, caso ocorra o impacto, este deverá ser compensado pela redução permanente de despesa ou aumento da receita;
  • Deve-se observar que o orçamento deverá ser suficiente para o atendimento às projeções de despesas, em consonância com o disposto no artigo 169 da Constituição Federal, bem como o artigo 21 da LRF.
  • Os artigos 19 e 20 da LRF, também com base no artigo 169 da CF, estabeleceu limites para cada ente da federação com relação à ocorrência da despesa total com pessoal.[4]

A LRF prediz que haverá a submissão ao controle interno e externo das condições impostas para as despesas com pessoal, que tem grande representatividade dentro das despesas públicas totais. Esse controle é feito a cada 04 meses, considerando-se as datas do calendário civil para início e fim dos períodos anuais, apurando-se os gastos ocorridos e a receita corrente líquida dos últimos 12 meses anteriores ao período verificado. Obviamente que, para fins de apuração do equilíbrio das contas e sua manutenção, o ideal é a realização do balanço mensal, que possibilita a correção de possíveis excessos de forma mais eficaz.

O aumento das despesas com pessoal que venham a gerar impactos de longo prazo nas contas públicas, ou mesmo aumentos pontuais como horas extras não previstas, mesmo sem a taxativa proibição por lei, devem ser evitadas sob pena de não serem válidas em razão de interpretação sistemática das normas relativas à gestão fiscal.

O artigo 19 e 20 estabelecem os limites estabelecidos como teto de despesas com pessoal, de acordo com cada nível de administração, sendo o primeiro recorte o dos entes da federação: 50% para a União, 60% para os Estados e Municípios. O segundo recorte é o da repartição dos poderes, estabelecendo a LRF o percentual máximo a ser observado por cada um dos poderes: Executivo, composto pela administração direta, fundos, autarquias, fundações e empresas estatais dependentes; Legislativo e Judiciário. Todos esses entes somados não devem ultrapassar o percentual determinado para cada ente da federação (União, Estados e Municípios) sendo obrigatório que cada órgão divulgue as suas despesas por meio de um Relatório de Gestão Fiscal em até 30 dias após o encerramento do quadrimestre.

A não observância dos prazos e do cumprimento dessas obrigações poderá acarretar as penalidades previstas em lei, além do impedimento ao recebimento de transferências voluntárias, obtenção de garantia e a realização de operações de crédito.

E, a não observância dos limites de gastos determinados por lei acarretará, num primeiro momento, quando atingido o percentual igual ou superior a 95% do total de gastos, a aplicação de medidas de contenção de despesas, com a adoção de ações que visam corrigir eventuais abusos, de modo a trazer o equilíbrio das contas. Num segundo momento, depois de atingido o limite de gastos, ou se o mesmo foi ultrapassado, haverá a adoção de medidas de corte de gastos, o que implica em dizer que haverá demissões no quadro de servidores, iniciando-se pelos servidores cujo vínculo empregatício seja instável (cargos em comissão,ou de confiança), para na sequencia serem atingidos os funcionários estáveis.

Como medida de contenção, no final de um período que pode ser de quatro ou seis meses, verificada a circunstancia de ter havido a transposição dos limites estabelecidos para os gastos, a administração pública responsável terá o prazo de 08 meses para realização do ajuste necessário à retomada do equilíbrio financeiro, por meio das vias que considerar mais adequadas (demissão de servidores, redução da jornada de trabalho, limitação às horas extras, etc).

Já nos casos em que haja redução do PIB, acarretando uma diminuição das receitas em razão da redução do crescimento econômico, o prazo para que se realize os ajustes de contas é contado em dobro[5].

Em suma síntese, a LRF vem dispor de uma série de limitações à atuação do Estado em prover servidores públicos para o atendimento das premissas constitucionais atinentes à prestação de serviços aos cidadãos, que inclui a transparência, sujeitando ao controle interno e externo as suas ações, bem como à verificação das contas públicas pelos cidadãos, que devem ter acesso às informações relativas à gestão financeira das contas públicas.

  1. A Lei de Responsabilidade Fiscal com relação à Saúde

O principal artigo constitucional que rege as ações de saúde no Brasil é o de nº 198:

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

(...)

§ 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre: 

I – no caso da União, na forma definida nos termos da lei complementar prevista no § 3º; 

II – no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios; 

III – no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º.

§ 3º Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada cinco anos, estabelecerá:

I – os percentuais de que trata o § 2º;  II – os critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde destinados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, e dos Estados destinados a seus respectivos Municípios, objetivando a progressiva redução das disparidades regionais; 

III – as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal;

IV – as normas de cálculo do montante a ser aplicado pela União. (...)[6]

Conforme vimos, é de natureza constitucional o mandamento que determina seja utilizado recursos mínimos da receita da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, atendendo a percentuais estipulados por meio de lei complementar.

Em assim sendo, a Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012 veio regular o mandamento do §3º do artigo 198 da CF e determina que as Ações e Serviços Públicos de Saúde sejam financiados pelos de fundos de saúde, criados com o fito de atender aos mandamentos constitucionais de promoção da saúde pública no Brasil, além de estabelecer os citados percentuais a serem disponibilizados para esse fim, conforme demonstrativo a seguir[7]:

FINANCIAMENTO DA SAÚDE

UNIÃO

Valor empenhado no exercício anterior acrescido de no

MÍNIMO o percentual correspondente à variação nominal do PIB

ESTADOS

MÍNIMO de 12% dos Impostos em Ações e Serviços Públicos de Saúde

ITCD - Impostos s/ Transmissão "causa mortis" e Doação

ICMS - Imposto s/ Circulação de Mercad. e Serviços de Transporte Interestadual e

Intermunicipal e de Comunicação

IPVA - Imposto s/ Propriedade de Veículos Automotores

IRRF - Imposto de Renda Retido na Fonte

FPE - Fundo de Participação dos Estados e DF

Cota-Parte IPI Exportação

Compensações Financeiras Provenientes de Impostos e Transferências Constitucionais

MUNICÍPIOS

MÍNIMO de 15% dos Impostos em Ações e Serviços Públicos de Saúde

IPTU - Imposto s/ Propriedade Territorial Urbana

ITBI - Imposto s/ Transmissão de Bens "Inter Vivos"

ISS - Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza

IRRF - Imposto de Renda Retido na Fonte

ITR - Imposto Territorial Rural

Cota-Parte IPVA

Cota-Parte ICMS

Cota-Parte ITR

FPM - Fundo de Participação dos Municípios

Cota-Parte IPI Exportação

Compensações Financeiras Provenientes de Impostos e Transferências Constitucionais

DISTRITO FEDERAL

MÍNIMO de 12% dos Impostos Estaduais em Ações e Serviços Públicos de Saúde

ITCD - Impostos s/ Transmissão "causa mortis" e Doação

ICMS - Imposto s/ Circulação de Mercad. e Serviços de Transporte Interestadual e

Intermunicipal e de Comunicação

IPVA - Imposto s/ Propriedade de Veículos Automotores

FPE - Fundo de Participação dos Estados e DF

Cota-Parte IPI Exportação

Compensações Financeiras Provenientes de Impostos e Transferências Constitucionais

MÍNIMO de 15% dos Impostos Municipais em Ações e Serviços Públicos de Saúde

IPTU - Imposto s/ Propriedade Territorial Urbana

ITBI - Imposto s/ Transmissão de Bens "Inter Vivos"

ISS - Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza

ITR - Imposto Territorial Rural

Cota-Parte IPVA

Cota-Parte ICMS

Cota- Parte ITR

FPM - Fundo de Participação dos Municípios

Cota-Parte IPI Exportação

Compensações Financeiras Provenientes de Impostos e Transferências Constitucionais

MÍNIMO de 12% dos Impostos não segregáveis em Ações e Serviços Públicos de Saúde

IRRF - Imposto de Renda Retido na Fonte

Por força da Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012, o artigo 35 determina que as receitas correntes e as despesas com ações e serviços públicos de saúde serão calculadas e divulgadas em demonstrativo próprio que acompanhará o relatório de que trata o § 3º do art. 165 da Constituição Federal até 30 dias após o encerramento do período de um bimestre.

O cumprimento dessa ordem legal de divulgar o demonstrativo de despesas - além do cumprimento de seus limites de gastos com relação à saúde e educação, cuja lógica é inversa, ou seja, obriga a que os entes empenhem em sua administração os valores estabelecidos como mínimos para o fomento da saúde - é condição para o recebimento de transferências constitucionais, conforme disposto no art. 25, § 1º, inciso IV, alínea b, da LRF. No caso de não cumprimento do atendimento dos percentuais mínimos obrigatórios, os valores deverão ser corrigidos a cada quadrimestre do exercício financeiro.

Os responsáveis pela administração e gestão de cada unidade de saúde pública deverão realizar os devidos registros de dados financeiros e relativos ao orçamento público no SIOPS, que consiste em um sistema de informática denominado de Sistema de Informação sobre Orçamento Publico em Saúde.

Esse sistema é uma forma integrada e centralizada de monitoramento e gestão dos orçamentos pelo Ministério da Saúde, e realiza os cálculos referentes ao uso dos percentuais mínimos a que se obrigam os administradores públicos em investir na promoção da saúde pública.

  1. Sobre a obrigação de pagamento da dívida

Importante mencionar o conteúdo do artigo 9º, parágrafo 2º da LRF:

“§ 2o Não serão objeto de limitação as despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do ente, inclusive aquelas destinadas ao pagamento do serviço da dívida, e as ressalvadas pela lei de diretrizes orçamentárias.” (grifos nossos)

Esse mandamento legal impõe a obrigatoriedade do pagamento relativo aos valores da dívida e do chamado serviço da dívida, os juros e demais cálculos que a integram, determinando não ser passível de limitação dessas despesas.

Dessa forma, são limitados os valores a serem empenhados na prestação de serviços à população, mesmo em casos de contratação para prestação de serviços de saúde, conforme exposição feita relativa às limitações à contração de pessoal, e das regras atinentes à saúde, sem, no entanto, restar sujeita às mesmas limitações o pagamento da dívida, consagrando-se uma prevalência dos direitos das instituições bancárias nacionais e internacionais, bem como de seus representantes, em detrimento de toda uma população.

Essa determinação, surgiu em um cenário político de fomento à atividade dos banqueiros nos idos dos anos de 1995, quando o governo nacional implementou o PROER, Programa de Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional[8], e em atendimento ao FMI, criou a LRF, visando atender aos interesses das instituições financeiras, assegurando suas garantias.

Essas garantias, no entanto, significam uma inversão da atividade política de implemento de políticas na busca do bem comum,  para cortejar os interesses de um grupo específico, que é justamente a classe dominante do poder econômico e financeiro.

Vejamos um gráfico demonstrativo relativo ao tema em comento[9]:

Tendo-se em vista o tamanho da dívida, e o que ela representa em termos de vinculação do orçamento público, é possível vislumbrar o prejuízo para a nossa população, e as consequências danosas para o próprio desenvolvimento do país, em razão da impossibilidade de viabilizar os programas sociais por mera indisponibilidade dos recursos financeiros, em atendimento à limitação da atuação do Estado em prover os serviços sociais inerentes à concretização dos direitos sociais insculpidas em nossa Carta Magna, colocada em posição inferior com relação ao pagamento da dívida, ao qual o investimento financeiro Estatal não se submete a nenhuma limitação.

Nas palavras de Regis Fernandes de Oliveira:

“Nesse ponto, realmente, asseguram-se os interesses dos detentores do capital financeiro, colocando-o acima de qualquer outro interesse social. (...) Este engessamento pode ser pernicioso ao País e a cada ente federal, uma vez que, enquanto beneficia o pagamento da dívida, que não pode ser objeto de limitação de despesa, os gastos públicos no âmbito social devem, se necessário, ser objeto de contingenciamento. Tal determinação cria soluções injustas e, com certeza, inconstitucionais, uma vez que desequipara valores, atingindo os encampados nos artigos 1º e 3º da CF. “ [10]

Dessa forma, a intenção precípua da normatização fiscal da atividade estatal é a diminuição dos riscos aos investidores, sejam eles estrangeiros ou nacionais, que faz subjazer os interesses de ordem social, bem como os princípios insculpidos em nossa Constituição Federal relativos aos direitos sociais e ao atendimento das necessidades da população.

Nas palavras de Gilberto Bercovici:

“A implementação da ordem econômica e da ordem social da Constituição de 1988 ficam restritas, assim, às sobras orçamentárias e financeiras do Estado. (...) Ou seja, a constituição dirigente das políticas públicas e dos direitos sociais, como o texto original da Constituição de 1988, é entendida como prejudicial aos interesses do país, causadora última das crises econômicas, do déficit público e da ‘ingovernabilidade’. A constituição dirigente invertida, isto é, a constituição dirigente das políticas públicas neoliberais de ajuste fiscal, é vista como algo positivo para a credibilidade e confiança do país no sistema financeiro internacional.” [11]

  1. CONCLUSÃO

A Lei de Responsabilidade Fiscal pode ser tida como um marco regulatório da atividade Estatal no que concerne à administração financeira, representando um grande avanço na direção do controle dos gastos públicos, além de, por meio das práticas fomentadas pela obrigatoriedade em se atender à transparência e seus princípios, incluir a figura do cidadão como partícipe da democracia, tida como uma decorrência da personificação jurídica do Estado, criando o chamado Estado de Direito, ente que cria e garante direitos, aos quais também se submete, perfazendo unidade política e aperfeiçoando a soberania da autolimitação Estatal.

É, portanto, essencial ao equilíbrio financeiro da atividade estatal a formulação de meios de controle das ações relativas à gestão fiscal, e principalmente, a criação de ferramental capaz de gerar meios de combate à corrupção, com a devida responsabilização dos gestores públicos, trazendo maior racionalidade aos seus atos, cuja essência deve ser pautada pela promoção do bem comum, havendo-se que penalizar aqueles que invertem essa ordem.

No entanto, exatamente nesse ponto é que a LRF deveria ser reformulada, para efetivamente favorecer a que se realize a promoção dos direitos sociais, sem que esses mesmos direitos se sujeitem a interesses de um único grupo, privilegiando interesses de alguns, em detrimento do interesse de toda uma coletividade.

Não há que se falar em combate ao adimplemento das dívidas, ou a quebra do pacta sund servanda dos contratos já realizados pelo ente público com as instituições que financiam a atividade estatal, sob pena de romper com segurança jurídica e econômica do país. Não obstante, é necessária a criação de meios hábeis a harmonizar os interesses de um e de outro, vez que não se pode contrapor direitos de dimensões tão distintas, submetendo a concretização dos direitos sociais, incluindo as relativas à promoção e manutenção do mínimo vital, no qual se inclui a saúde de uma nação, aos ditames de um grupo financeiro.

Nesse âmbito, é papel do direito econômico interelacionar conflitos entre a liberdade individual e o compromisso coletivo, de modo a ultrapassar a mera análise, para transformar a realidade, mesmo contra as tendências da realidade social, demonstrando seu caráter contrafático, sob pena de se tornar desnecessário.

Nesse sentido, para fazer frente a forças representativas do poder econômico privado, o Estado também deveria se fortalecer economicamente, de forma a atuar no livre mercado sem sufocá-lo, mas também, sem render-se por à sua força esmagadora, submetendo toda uma população.[12]

BIBLIOGRAFIA

BANCO DO BRASIL. PROER - Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional. Disponível em: http://www.bcb.gov.br/?PROER. Acesso em: 07/11/2014.

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: 07/11/2014.

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CRUZ, Flávio da (coord.); GLOCK, José Osvaldo; HERZMANN, Nélio; TREMEL, Rosângela. Lei de responsabilidade fiscal comentada: lei complementar n 101, de 4 de maio de 2000. Modelos dos Relatórios exigidos pelas portarias nº 559/01 e 560/01 da STN. 3ª ed. – São Paulo : Atlas, 2002.

MINISTÉRIO DA FAZENDA. Secretaria do Tesouro Nacional. Manual de Demonstrativos Fiscais. Aplicado à União, Distrito Federal e Municípios. Válido para o exercício de 2013. 5ª edição. Disponível em: http://www3.tesouro.fazenda.gov.br/legislacao/download/contabilidade/MDF5/MDF_5edicao.pdf. Acesso em 07/11/2014.

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OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de direito financeiro / Regis Fernandes de Oliveira. 2ª ed. rev. e atual. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2008.

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, Controladoria Geral da União – CGU. Transparência Pública. Disponível em: http://www3.transparencia.gov.br/TransparenciaPublica/. Acesso em 07/11/2014.


[1] Oliveira, Regis Fernandes de. Curso de direito financeiro, 2ª ed. rev. e atual, página 399.

[2] Disponível em: http://www3.transparencia.gov.br/TransparenciaPublica. Acesso em 03/11/2014.

[3] Disponível em: http://www3.tesouro.fazenda.gov.br/legislacao/download/contabilidade/MDF5/MDF_5edicao.pdf.  Página 30. Acesso em 03/11/2014.

[4] Nascimento, Carlos Valder do [Coord.]. Lei de responsabilidade fiscal – teoria e prática. Páginas 12 e 13.

[5] Cruz, Flávio da (coord.); Glock, José Osvaldo; Herzmann, Nélio; Tremel, Rosângela. Lei de responsabilidade fiscal comentada: lei complementar n 101, de 4 de maio de 2000. Páginas 112 a 121.

[6] Constituição da República Federativa do Brasil, artigo 198 (em parte).

[7] Ministério da Fazenda. Secretaria do Tesouro Nacional. Manual de Demonstrativos Fiscais. Aplicado à União, Distrito Federal e Municípios. Válido para o exercício de 2013. 5ª edição. Tabela da página 406.

[8]Disponível em: http://www.bcb.gov.br/?PROER. Acesso em: 07/11/2014.

[9] Disponível em http://www.auditoriacidada.org.br/. Acesso em 07/11/2014.

[10] Oliveira, Regis Fernandes de. Curso de direito financeiro, 2ª ed. rev. e atual, página 419.

[11] Bercovici, Gilberto. Estado, instituições e democracia: desenvolvimento, capítulo 19. (volume 3). Organizado por José Celso Cardoso Jr., Eduardo Pinto e Paulo de Tarso Linhares, Ipea.

[12]  Bercovici, Gilberto. Benevides, Maria Victoria de Mesquita. Melo, Claudiceu de. Direitos Humanos, Democracia e República, Homenagem a Fábio Konder Comparato. O ainda indispensável direito econômico. Página 516 a 519.


Autor

  • Clara Furukawa

    Estudante de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, atuou como estagiária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, além de outros escritórios de advocacia e empresas multinacionais.

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