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O princípio da boa-fé objetiva como instrumento de proteção nas relações contratuais

O princípio da boa-fé objetiva como instrumento de proteção nas relações contratuais

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O presente trabalho versa sobre o princípio da boa-fé objetiva como medida para a redução da desigualdade negocial entre os contratantes, sendo dissertado na sua vertente objetiva e subjetiva, como um elemento da equidade nas relações contratuais.

O campo de atuação da boa-fé é amplo, o que implica uma séria dificuldade na sua conceituação, em razão de este princípio comportar uma extensa variedade de significados e aplicações, seja sob o prisma subjetivo ou objetivo, como princípio ou cláusula geral.

O principio da boa-fé, conforme aduz Roberto Oliveira Filho, tem a função de assegurar o acolhimento do que é licito e de repelir o ilícito. Diante deste raciocínio, aquele que contraria a boa-fé comete abuso de direito, respondendo no campo da responsabilidade civil.[1]

O Código Civil brasileiro de 1916 não disciplinava a boa-fé como cláusula geral, sendo esta tratada como princípio geral de direito, e em alguns casos como conceito jurídico indeterminado.

Hodiernamente, com a positivação da boa-fé, esta passou a agir principalmente como princípio inspirador do ordenamento jurídico para a aplicação das normas existentes, podendo-se afirmar que é um dos princípios que mais influencia o sistema jurídico brasileiro, representando o baluarte da ética nas relações jurídicas interpessoais.

Em função da sua natureza jurídica, a boa-fé desdobra-se em subjetiva e objetiva. A boa-fé subjetiva, também conhecida como boa fé crença, diz respeito ao estado de espírito do agente.

Em uma primeira acepção, Luis Diéz-Picaso salienta que a boa-fé significa honradez subjetiva de uma pessoa, uma crença nascida de um erro escusável, de que a conduta realizada não esta contra o direito e em uma segunda acepção, alude a um conjunto de regras objetivas de honestidade comercial ou jurídica.[2]

Nelson Rosenvald aduz que a boa-fé subjetiva não é um princípio, e sim um estado psicológico, no qual a pessoa acredita ser titular de um direito que, verdadeiramente só existe na aparência, levando o indivíduo a se encontrar em uma escusável situação de ignorância sobre a realidade dos fatos e da lesão a direito alheio.[3]

O Código Civil de 2002 açambarcou a boa-fé subjetiva nos artigos 1.201, 1.214 e 1.219, dimensionando a convicção interna do possuidor no tocante a inexistência de defeitos em sua posse.

Obtempera Judith Martins-Costa, que esta situação de ignorância é escusável por residir no próprio estado subjetivo de desconhecimento por parte do agente, nas hipóteses de casamento putativo, da aquisição de propriedade alheia mediante a usucapião, seja numa errônea aparência de certo ato, como mandato aparente ou herdeiro aparente.[4]

No mesmo sentido, está o entendimento de Luis Diéz-Picaso:

La buena fe es considerada como “ignorancia de la lesión que se ocasiona en un interés de otra persona que se halla tutelado por el Derecho”. Al acto, que es objetivamente irregular, pero realizado por una persona con la convicción de que su comportamento era regular y permitido, se le da un trato más benévolo. Ocorre así cuando los códigos hablan del que edifica, siembra o planta en terreno ajeno, o con materiales ajenos creyendo que son propios; del vendedor que es de buena fe cuando ignora los defectos ocultos que tiene la cosa vendida, y en otros muchos casos semejantes.[5]

O princípio da boa-fé objetiva, na lição de Nelson Rosenvald, compreende um modelo para a ética da conduta social, sendo deveras um standard jurídico comportamental, orientado por padrões sociais de honestidade e lisura, de modo a não frustrar a legitima confiança da outra parte.[6]

Antes de se dar o devido aprofundamento ao cerne deste tópico, é mister que fique evidenciada a dicotomia existente entre a boa-fé subjetiva e a boa-fé objetiva, que de acordo com a alusão feita por Fernando Noronha:

A primeira diz respeito a dados internos, fundamentalmente psicológicos, atinentes diretamente ao sujeito; a segunda a elementos externos, a normas de conduta que determinam como ele deve agir. Num caso está de boa-fé quem ignora a real situação jurídica; no outro, está de boa-fé quem tem motivos para confiar na contraparte. Uma é boa-fé estado, a outra, boa-fé princípio.[7]

Essa distinção é essencial para a compreensão destes institutos, pois a boa-fé objetiva é analisada externamente, aferindo-se a correção da conduta do individuo, tendo a sua convicção pouco valor, contrariamente a boa-fé subjetiva, na qual o comportamento humano é desprovido de honestidade e retidão.

O melhor entendimento sobre o princípio da boa-fé objetiva é o desenvolvido por Miguel Reale:

A boa-fé objetiva é noção sinônima de “honestidade pública” e “se apresenta como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria uma pessoa honesta, proba e leal”.[8]

O princípio da boa-fé objetiva, segundo Nelson Rosenvald, pressupõe uma relação jurídica que ligue os contratantes, impondo-lhes especiais deveres recíprocos de conduta, conjugados com padrões de comportamento exigíveis dos profissionais competentes nas tratativas e uma reunião de condições que ensejem na outra parte um estado de confiança no ato negocial.[9]

Nesse sentido o Código Civil refere-se a ela no artigo 422, assim como o diploma espanhol prevê dispositivos com o mesmo teor nos arts. 7.1 e 1.258, de sualegislação.

As codificações europeias, em sua quase totalidade, incorporaram o princípio da boa-fé em seus textos legais, ainda que, em alguns deles, sua aplicação prática não se compare ao papel fundamental do parágrafo 2º do artigo 242 do BGB.

O artigo 242 do Código Civil Alemão consigna que a boa-fé objetiva é o agir com lealdade e confiança, para que não se traiam as legítimas expectativas da contraparte.

O diploma civil Italiano de 1942 traz vários dispositivos que consagram a boa-fé, forjando um modelo que ulteriormente orientou a propagação do referido princípio nos demais ordenamentos através do mundo, sendo que no artigo 1.175, as partes devem comportar-se pela regra da corretteza, que no vernáculo corresponde à retidão e seriedade.

Ainda no mesmo ordenamento, o artigo 1.176 impõe diligência ao adimplemento, ao referir que o devedor deve valer-se da diligência do bonus pater familias.

Por fim, a referida codificação ainda dispõe sobre o comportamento das partes no desenvolvimento das negociações e sobre a interpretação do contrato segundo a boa-fé, nos artigos 1.336 e 1.337.

Com relação aos contratos de adesão, a boa-fé objetiva é um eficaz instrumento de proteção e equilíbrio contratual em relação ao contratante mais fraco, de acordo com a lição de Gustavo Ordoqui Castilla:

La debilidad no está en no tener dinero sino en no poder negociar (...). La buena fe del proponente debe quedar evidente no sólo en el contenido de las cláusulas sino en la claridad de la redacción y de visión de lo escrito (...). Con el contrato de adhesión se debilita, por no decir, desaparece, tanto la libertad de contratación, pues en ocasiones no sólo no se participa de la posibilidad de negociar sino que existe necesidad o urgencia del producto o servicio lo que determina falta de libertad para no contratar.[10]

A vigência do princípio da boa-fé determinou a existência de critérios interpretativos particulares em prol do aderente, com o intuito de afastar eventuais abusos no momento da contratação. O Código Civil espanhol, no art. 1.288 destaca que em caso de redação confusa ou obscura, as cláusulas contratuais não deverão favorecer quem as formulou, sendo a mesma matéria tratada nos arts. 46 e 47 do Código de Proteção e defesa do Consumidor brasileiro.

Em caso de existência de abusos em se tratando de prestações desequilibradas ou injustificadas, o princípio da boa-fé será aplicado a essas cláusulas, para se atingir o equilíbrio da relação contratual (arts. 82 e 83, do Real Decreto Legislativo 1/2007), cujo exato teor se encontra nos arts. 51 e 54 do diploma consumerista brasileiro.

Uma das situações mais lembradas de desrespeito à aplicação do princípio da boa fé objetiva no Brasil é o caso que envolve o cantor Zeca Pagodinho e as duas cervejarias às quais emprestou sua imagem como meio de publicidade.

INDENIZAÇÃO - Danos morais e materiais - Contrato de utilização da imagem e voz de cantor em campanha publicitária de cerveja - Quebra do contrato, com o debande do artista para empresa concorrente - Violação do contrato, com efetivação de danos materiais e morais - Provimento parcial a ambos os recursos - Danos materiais a serem apurados em liquidação de sentença por arbitramento, proporcionalmente ao efetivo cumprimento do contrato de prestação de serviços - Dano moral, considerando a condição das partes e o valor do contrato, na quantia de R$ 420.000,00. (TJSP, Apelação cível 7.155.293-9, 14ª Câmara de Direito Privado. 09.04.2008. Rel. Des. Pedro Alexandrino Ablas).

O referido cantor, a princípio, havia celebrado contrato com a empresa Primo Schincariol S/A, mediante o uso do bordão “Experimenta”. Ainda estando em vigência o contrato publicitário com a Nova Schin, o cantor participou de uma campanha publicitária da Brahma, empresa concorrente, cedendo a sua imagem e o seu talento artístico.

No referido comercial, Zeca Pagodinho entoava: “Fui provar outro sabor, eu sei. Mas não largo meu amor, voltei”. Além do descumprimento do contrato publicitário, houve violação do princípio boa-fé objetiva por parte do cantor, pelo teor depreciativo da música engendrada na campanha da Brahma.

Ao inferiorizar a cerveja Schincariol em meio à música, classificando-a como “coisa de momento” e concluir dizendo que esta não se compara a que é fabricada pelo seu “grande amor”, fica evidente o enquadramento de conduta oposta ao que dispõe o art. 187 do Código Civil.

Com isso, é possível vislumbrar que o uso de um direito, poder ou coisa além do tolerado ou extrapolando os limites jurídicos, vindo a causar lesão a outrem, tem como efeito o dever de indenizar, pois caracteriza o abuso de direito, que na lição de Rubens Limongi França: “O abuso de direito consiste em um ato jurídico de objeto lícito, mas cujo exercício, levado a efeito sem a devida regularidade, acarreta um resultado que se considera ilícito”.[11]

Maria Helena Diniz pondera que a ilicitude nesses casos, esconde-se no resultado, atentando contra o princípio da boa-fé e aos bons costumes, havendo o desvio da função socioeconômica para a qual o direito foi estabelecido.[12]

Obtempera Ruy Rosado de Aguiar que, o “sentimento mau”, a intenção de causar dano desaparece como elemento essencial exigido pela jurisprudência pátria, para o reconhecimento da presença do abuso de direito, pois o projeto tem por escopo dispensar o elemento subjetivo, satisfazendo-se com a culpa social que reside no comportamento excessivo.[13]

Nessa senda, o objetivo dos arts. 187do Código Civil de 2002e o art. 7.2 do diploma espanhol é salientar que o cerne do abuso não se encontra no plano psicológico da culpabilidade, mas sim no desvio de direito e a deturpação de sua finalidade ou função social.

O mesmo entendimento pode ser extraído do enunciado nº 37, aprovado na I jornada de Direito Civil, promovida em setembro de 2002, pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal, que dispõe que: “A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”.

Diante do estudo apresentado, conclui-se que a normatização da boa-fé objetiva no Código Civil de 2002, segundo Roberto Oliveira Filho, traduz a situação jurídica atual, traçando o novo perfil da sociedade, inexistente no Código de Bevilqua, que propugnava pela boa-fé subjetiva, como próprio de sua época.[14]

A crise no antigo modelo jurídico se refletia no cotidiano das pessoas, devido ao tratamento dado ao direito pelas escolas formalistas, como a positivista, que possuía uma concepção exclusivamente técnica, descurando-se de sua vertente ética, de verdadeiro reflexo da cultura jurídica da experiência de uma sociedade (ser) e instrumento hábil a sua transformação (dever ser).

O Código Civil de 2002 e o Código Civil espanhol possuem a boa-fé arraigada profundamente na esfera negocialpodendo ser vislumbrados todas as suas formas de aplicação, tendo em mira o reequilíbrio contratual, vale dizer, que assim ocorreà ruptura das tradicionais formas interpretativas dos contratos, o que torna árdua a atividade hermenêutica em definir qual das funções da boa-fé poderá ser empregada na concretude de cada caso.

Mesmo assim, a sua imprecisão não reduz a sua eficiência, muito pelo contrário, torna a percepção sobre a sua multidisciplinaridade assaz aguçada, criando variadas formas de aplicação no direito e em todas as fases do contrato.

Portanto, a incorporação da boa-fé objetiva como norma jurídica no Código Civil de 2002, assim como no diploma espanhol e em legislações por todo o mundo revelou-se verdadeiro divisor de águas, assumindo a posição de modelo de comportamento no direito e possibilitando aos juristas a formulação de argumentações há muito desenvolvidas e vistas anteriormente em normas expressas em código.


[1] OLIVEIRA FILHO, Roberto Alves de. O princípio da boa-fé e o abuso de direito. In: MOURA, Fernando Galvão (Org.). O direito ao alcance de todos. 5. ed. Bebedouro: Unifafibe, 2011. p. 68.

[2]DÍEZ-PICAZO, LUIS. Fundamentos del derecho civil patrimonial. Introducción teoria del contrato. 6. ed. v. 1. – Pamplona: Civitas, 2007. p. 60.

[3] ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 79.

[4] MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 411-412.

[5]DÍEZ-PICAZO, LUIS. Fundamentos del derecho civil patrimonial. Introducción teoria del contrato. 6. ed. v. 1. – Pamplona: Civitas, 2007. p. 60.

[6] ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no código civil. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 80.

[7] NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 132.

[8] REALE, Miguel. A boa-fé no código civil. O Estado de São Paulo, 16-08-2003.

[9] ROSENVALD, Nelson. Op. cit., p. 80.

[10] CASTILLA, Gustavo Ordoqui. Buena fe en los contratos. – Madrid: Editorial Reus. 2011. p. 70.

[11] FRANÇA, Rubens Limongi. Instituições de direito civil. - São Paulo: Saraiva, 1991. p. 889.

[12] DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 209.

[13] AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Projeto do Código Civil- As obrigações e os contratos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. n. 775. p. 23.

[14] OLIVEIRA FILHO, Roberto Alves de. Op. cit., p. 69.


Autor

  • Roberto Alves de Oliveira Filho

    Mestrando em Direito Civil pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho - FCHS UNESP Franca (2015). Pós-graduando lato sensu em Direito Civil pela Universidade de São Paulo - FDRP USP (2015). Especialista em Direito Contratual pela Universidade Pontifícia de Salamanca (2014). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Franca (2013). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON). Advogado.

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