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Direito internacional e Direito interno

sua interação na proteção dos direitos humanos

Direito internacional e Direito interno: sua interação na proteção dos direitos humanos

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Um dos aspectos básicos do labor de promoção dos direitos humanos reside na difusão da normativa de proteção. A presente iniciativa atende a esse propósito.

I. Introdução.

Um dos aspectos básicos do labor de promoção dos direitos humanos reside na difusão da normativa de proteção. A presente iniciativa atende a esse propósito. É, assim, com satisfação, que acedemos ao honroso convite da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo para elaborar, em forma de estudo doutrinário introdutório, o Prefácio desta coletânea intitulada Os Instrumentos Internacionais de Proteção aos Direitos Humanos. Há que somar esforços em prol da causa comum da plena vigência dos direitos humanos em nosso país; a presente publicação se dá em meio a um alentador florescimento de interesse em nossos círculos jurídicos pela aplicação dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos em nosso direito interno.

Ainda há pouco, a coletânea de ensaios que editamos intitulada A Incorporação das Normas Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos no Direito Brasileiro (Instituto Interamericano de Direitos Humanos, 1996, págs. 1-845), reunindo contribuições de cerca de cinqüenta autores, em sua grande maioria brasileiros, alcançou sua segunda edição duas semanas depois de seu lançamento em Brasília e São Paulo. Nossas Universidades passam, enfim, a incluir em seus currículos e cursos regulares, a temática dos Direitos Humanos, ainda que com denominações distintas. O despertar de nossos círculos jurídicos e universitários para os direitos humanos como disciplina autônoma é, além de alentador, irreversível. A presente e louvável iniciativa da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo vem reforçar os esforços envidados em nosso país por todos os que acreditamos que só pode haver democracia e Estado de Direito com a plena observância dos direitos humanos, tomados estes em sua concepção integral, a abarcar os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.

Uma publicação como a presente atende, com efeito, a dois objetivos básicos e complementares: em primeiro lugar, alcançar a mais ampla difusão dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, o que se reveste de suma importância, porquanto o passo inicial para a vindicação dos direitos consiste em bem conhecê-los. Em segundo lugar, visa contribuir à fiel aplicação dos instrumentos internacionais relacionados, no plano do direito interno. A tarefa de legislação internacional no presente domínio já se encontra bastante avançada; cumpre agora dar real efetividade aos múltiplos instrumentos internacionais coexistentes no plano do direito interno.

A incorporação da normativa internacional de proteção no direito interno dos Estados constitui alta prioridade em nossos dias: pensamos que, da adoção e aperfeiçoamento de medidas nacionais de implementação depende em grande parte o futuro da própria proteção internacional dos direitos humanos. Na verdade, como se pode depreender de um exame cuidadoso da matéria, no presente domínio de proteção o direito internacional e o direito interno conformam um todo indivisível: apontam na mesma direção, desvendando o propósito comum de proteção da pessoa humana. O direito internacional e o direito interno aqui se mostram, desse modo, em constante interação, em benefício dos seres humanos protegidos. Senão vejamos.

O antagonismo irreconciliável entre as posições monista e dualista clássicas provavelmente levou os juristas a abordar mais recentemente a relação entre o direito internacional e o direito interno de ângulos distintos. A distinção tradicional, enfatizando a pretensa diferença das relações reguladas pelos dois ordenamentos jurídicos, dificilmente poderia fornecer uma resposta satisfatória à questão da proteção internacional dos direitos humanos: sob o direito interno as relações entre os indivíduos, ou entre o Estado e os indivíduos, eram consideradas sob o aspecto da "competência nacional exclusiva"; e tentava-se mesmo argumentar que os direitos individuais reconhecidos pelo direito internacional não se dirigiam diretamente aos beneficiários, e por conseguinte não eram diretamente aplicáveis. Com o passar dos anos, houve um avanço, no sentido de, ao menos, distinguir entre os países em que certas normas dos instrumentos internacionais de direitos humanos passaram a ter aplicabilidade direta, e os países em que necessitavam elas ser "transformadas" em leis ou disposições de direito interno para ser aplicadas pelos tribunais e autoridades administrativas.

Como buscamos demonstrar em estudo publicado na Alemanha em meados dos anos setenta, outros abordamentos podem desvendar um campo de pesquisa bem mais rico e fértil, quais sejam, o status interno (nacional) de disposições jurídicas internacionais a partir do prisma do direito constitucional (comparado), ou o exame ou a interpretação do direito interno pelos tribunais internacionais (para verificar a compatibilidade do direito interno com o direito internacional), ou a relevância do direito interno no processo legal internacional, ou a implementação de decisões judiciais internacionais pelos tribunais internos. Estes enfoques continuam a requerer, e merecer, maior atenção.

Decorridas duas décadas desde a publicação deste nosso estudo, é chegado o momento de retomarmos o exame do tema, tomando em conta desenvolvimentos recentes sobre a matéria. Para tal, consideraremos de início o impacto de instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos em Constituições recentes. A seguir, examinaremos quatro questões, a saber: a supervisão internacional da compatibilidade dos atos internos dos Estado com suas obrigações internacionais de proteção; a compatibilização e prevenção de conflitos entre as jurisdições internacional e nacional em matéria de direitos humanos; a obrigação internacional dos Estados de provimento de recursos de direito interno eficazes; e a função dos órgãos e procedimentos do direito público interno. Enfim, abordaremos as questões das normas internacionais de proteção diretamente aplicáveis no direito interno, e da primazia da norma mais favorável às vítimas. O campo estará, então, aberto à apresentação de nossas conclusões.

 

II. O Impacto de Instrumentos Internacionais de Proteção

dos Direitos Humanos em Constituições Recentes.

Já não mais se justifica que o direito internacional e o direito constitucional continuem sendo abordados de forma estanque ou compartimentalizada, como o foram no passado. Já não pode haver dúvida de que as grandes transformações internas dos Estados repercutem no plano internacional, e a nova realidade neste assim formada provoca mudanças na evolução interna e no ordenamento constitucional dos Estados afetados. Ilustram-no, e.g., as profundas mudanças constitucionais que vêm ocorrendo nos países de Leste Europeu a partir de 1988-1989, visando a construção de novos Estados de Direito, durante cujo processo aqueles países foram levados gradualmente a tornar-se Partes nos dois Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas. Estas transformações recentes têm, a um tempo, gerado um novo constitucionalismo assim como uma abertura à internacionalização da proteção dos direitos humanos.

Com efeito, nos últimos anos o impacto de instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos tem-se feito sentir em algumas Constituições. Ilustração pertinente é fornecida pela Constituição Portuguesa de 1976, que estabelece que os direitos fundamentais nela consagrados "não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional", e acrescenta: - "Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados em harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem" (artigo 16(1) e (2)). A disposição da Constituição da Alemanha - com emendas até dezembro de 1983 - segundo a qual "as normas gerais do Direito Internacional Público constituem parte integrante do direito federal" e "sobrepõem-se às leis e constituem fonte de direitos e obrigações para os habitantes do território federal" (artigo 25), pode ser entendida como englobando os direitos e obrigações consagrados nos instrumentos de proteção internacional dos direitos humanos.

Um dos exemplos mais comumente lembrados em nossos dias de Constituições recentes que, reconhecendo a importância dos tratados de direitos humanos, os singularizam e a eles estendem cuidado especial, é o da Constituição Espanhola de 1978, que submete a eventual denúncia de tratados sobre direitos e deveres fundamentais ao requisito da prévia autorização ou aprovação do Poder Legislativo (artigos 96(2) e 94(1)(c)). Tal aprovação congressual para a eventual denúncia daqueles tratados naturalmente abre uma brecha em reduto do Executivo, em favor da manutenção da vigência de tais instrumentos, mesmo porque o Legislativo só poderia autorizar sua denúncia na forma prevista nos próprios tratados ou consoante as regras gerais do direito internacional. Fortalecem-se, desse modo, os tratados de direitos humanos.

Não é este um exemplo isolado. Na América Latina, surgem mostras em nossos dias de nova postura ante a questão clássica da hierarquia normativa dos tratados internacionais vigentes, como revelado pela nova tendência de algumas Constituições latino-americanas recentes de dispensar um tratamento diferenciado ou especial aos tratados de direitos humanos ou aos preceitos neles consagrados. Exemplo dos mais marcantes, nesta nova linha, é fornecido pela [anterior] Constituição do Peru de 1978, cujo artigo 105 determinava que os preceitos contidos nos tratados de direitos humanos têm hierarquia constitucional, e não podem ser modificados senão pelo procedimento para a reforma da própria Constituição. Lamentavelmente não se encontra esta disposição reiterada nos mesmos termos na atual Constituição Política do Peru de 1993 (referendo de 31.10.1993), a qual se limita a determinar (4a. disposição final e transitória) que os direitos constitucionalmente reconhecidos se interpretam de conformidade com a Declaração Universal de Direitos Humanos e com os tratados de direitos humanos ratificados pelo Peru. Outro exemplo reside na Constituição da Guatemala de 1985, cujo artigo 46 estabelece que os tratados de direitos humanos ratificados pela Guatemala têm preeminência sobre o direito interno. Assim, enquanto a anterior Constituição Peruana atribuía hierarquia constitucional aos tratados de direitos humanos, a atual Constituição Guatemalteca atribui a estes hierarquia especial, com preeminência sobre a legislação ordinária e o restante do direito interno. Outra ilustração é dada pela nova Constituição da Nicarágua, de 1987, que, pelo disposto em seu artigo 46, integra, para fins de proteção, na enumeração constitucional de direitos, os direitos consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, nos dois Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas (de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e de Direitos Civis e Políticos), e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Na mesma linha de pensamento situa-se uma das recentes modificações introduzidas na Constituição do Chile em decorrência do plebiscito convocado para 30 de julho de 1989; pela nova reforma constitucional, de 1989, agregou-se ao final do artigo 5(II) da Constituição Chilena a seguinte disposição: - "É dever dos órgãos do Estado respeitar e promover tais direitos, garantidos por esta Constituição, assim como pelos tratados internacionais ratificados pelo Chile e que se encontrem vigentes". Desse modo, os direitos garantidos por aqueles tratados passaram a equiparar-se hierarquicamente aos garantidos pela Constituição Chilena reformada. Outro exemplo pertinente é fornecido pela Constituição da Colômbia de 1991, cujo artigo 93 determina que os tratados de direitos humanos ratificados pela Colômbia "prevalecem na ordem interna", e que os direitos humanos constitucionalmente consagrados serão interpretados de conformidade com os tratados de direitos humanos ratificados pela Colômbia.

Bem próxima da postura refletida nas soluções acima referidas encontra-se a da Constituição Brasileira de 1988, que, após proclamar que o Brasil se rege em suas relações internacionais pelo princípio, entre outros, da prevalência dos direitos humanos (artigo 4(II)), constituindo-se em Estado Democrático de Direito tendo como fundamento, inter alia, a dignidade da pessoa humana (artigo 1(III)), estatui, - consoante proposta que avançamos na Assembléia Nacional Constituinte e por esta aceita, - que os direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja Parte (artigo 5(2)). E acrescenta que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata (artigo 5(1)).

O disposto no artigo 5(2) da Constituição Brasileira de 1988 se insere na nova tendência de Constituições latino-americanas recentes de conceder um tratamento especial ou diferenciado também no plano do direito interno aos direitos e garantias individuais internacionalmente consagrados. A especificidade e o caráter especial dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos encontram-se, com efeito, reconhecidos e sancionados pela Constituição Brasileira de 1988: se, para os tratados internacionais em geral, se tem exigido a intermediação pelo Poder Legislativo de ato com força de lei de modo a outorgar a suas disposições vigência ou obrigatoriedade no plano do ordenamento jurídico interno, distintamente no caso dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos em que o Brasil é Parte os direitos fundamentais neles garantidos passam, consoante os artigos 5(2) e 5(1) da Constituição Brasileira de 1988, a integrar o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados e direta e imediatamente exigíveis no plano do ordenamento jurídico interno.

Mais recentemente, incorporou-se à Constituição da Argentina, reformada em agosto de 1994, o artigo 75(22), pelo qual determinados tratados e instrumentos de direitos humanos, nele enumerados, têm "hierarquia constitucional", só podendo ser denunciados mediante prévia aprovação de dois terços dos membros do Legislativo; tais tratados e instrumentos de direitos humanos são "complementares" aos direitos e garantias reconhecidos na Constituição. Outra técnica seguida em recentes reformas constitucionais tem consistido em dispor sobre a procedência do recurso de amparo para a salvaguarda dos direitos consagrados nos tratados de direitos humanos (Constituição da Costa Rica, reformada em 1989, artigo 48; além da Constituição da Argentina, artigo 43); outras Constituições optam por referir-se à normativa internacional em relação a um determinado direito, para o qual "a fonte internacional adquire hierarquia constitucional" (Constituições do Equador, artigos 43 e 17; de El Salvador, artigo 28; de Honduras, artigo 119(2)).

As Constituições latino-americanas supracitadas reconhecem assim a relevância da proteção internacional dos direitos humanos e dispensam atenção e tratamento especiais à matéria. Ao reconhecerem que sua enumeração de direitos não é exaustiva ou supressiva de outros, descartam desse modo o princípio de interpretação das leis inclusio unius est exclusio alterius. É alentador que as conquistas do direito internacional em favor da proteção do ser humano venham a projetar-se no direito constitucional, enriquecendo-o, e demonstrando que a busca de proteção cada vez mais eficaz da pessoa humana encontra guarida nas raízes do pensamento tanto internacionalista quanto constitucionalista.

As soluções, de direito constitucional, quanto à hierarquia entre normas de tratados e de direito interno, resultam de critérios valorativos e da discricionariedade dos constituintes nacionais, variando, pois, de país a país. Não surpreende, assim, que algumas Constituições se mostrem mais abertas ao direito internacional do que outras. O que deve resultar claro é que isto ocorre não em razão da natureza intrínseca da norma jurídica; se assim fosse, não haveria a diversidade de soluções (constitucionais) à questão. A tendência constitucional contemporânea de dispensar um tratamento especial aos tratados de direitos humanos é, pois, sintomática de uma escala de valores na qual o ser humano passa a ocupar posição central. Um papel importante está aqui reservado aos advogados de supostas vítimas de violações de direitos humanos, particularmente nos países em que aquela tendência ainda não se tem acentuado com vigor: no intuito de buscar a redução da considerável distância entre o reconhecimento formal, e a vigência real, dos direitos humanos, consagrados não só na Constituição e na lei interna como também nos tratados de proteção, cabe aos advogados invocar estes últimos, referindo-se às obrigações internacionais que vinculam o Estado no presente domínio de proteção, de modo a exigir dos juízes e tribunais nacionais, no exercício permanente de suas funções, que considerem, estudem e apliquem as normas dos tratados de direitos humanos, e fundamentem devidamente suas decisões.

Os fundamentos últimos da proteção dos direitos humanos transcendem o direito estatal, e o consenso generalizado formado hoje em torno da necessidade da internacionalização de sua proteção corresponde a uma manifestação cultural de nossos tempos, juridicamente viabilizada pela coincidência de objetivos entre o direito internacional e o direito interno quanto à proteção da pessoa humana. Como, também neste domínio, a um Estado não é dado deixar de cumprir suas obrigações convencionais sob o pretexto de supostas dificuldades de ordem constitucional ou interna, com maior razão ainda não haver desculpa para um Estado de não se conformar a um tratado de direitos humanos no qual é Parte pelo simples fato de seus tribunais interpretarem, no plano do direito interno, o tratado de modo diferente do que se impõe no plano do direito internacional. Com estas reflexões em mente, passemos ao ponto seguinte de nosso estudo, qual seja, o da compatibilidade dos atos internos dos Estados com suas obrigações internacionais de proteção.

 

III. A Supervisão Internacional da Compatibilidade dos Atos Internos dos Estados com Suas Obrigações Internacionais de Proteção.

Constatamos atualmente, por um lado, uma crescente "abertura" das Constituições contemporâneas - de que dão exemplo marcante as de alguns países latino-americanos e as de países tanto da Europa Oriental hodierna como da Europa Ocidental - à normativa internacional de proteção dos direitos humanos. A este fenômeno se agrega, por outro lado, a atribuição de funções, pelos tratados de direitos humanos, aos órgãos internos dos Estados, para a realização de seu objeto e propósito. A interação resultante entre o direito internacional e o direito interno no presente domínio de proteção é, pois, manifesta e inquestionável. E não se limita à relação, com o direito interno, dos tratados de direitos humanos propriamente ditos: outra ilustração, talvez menos lembrada, no mesmo sentido da interação, reside na implementação das Convenções internacionais do trabalho da OIT.

Alguns aspectos da interação entre o direito internacional e o direito interno na proteção dos direitos humanos são particularmente significativos. Em primeiro lugar, os próprios tratados de direitos humanos atribuem uma função capital à proteção por parte dos tribunais internos, como evidenciado pelas obrigações de fornecer recursos internos eficazes e de esgotá-los, que recaem, respetivamente, sobre os Estados demandados e os indivíduos reclamantes. Tendo a si confiada a proteção primária dos direitos humanos, os tribunais internos têm, em contrapartida, que conhecer e interpretar as disposições pertinentes dos tratados de direitos humanos. Donde a propalada subsidiaridade do processo legal internacional, a qual encontra sólido respaldo na prática internacional, na jurisprudência, nos tratados, assim como na doutrina.

Em segundo lugar, a margem de controvérsias é reduzida ou mesmo eliminada na medida em que os próprios tratados disponham sobre a função e o procedimento dos tribunais internos na aplicação das normas internacionais de proteção neles consagradas. Nos casos em que a atuação dos tribunais internos envolve a aplicação do direito internacional dos direitos humanos, assume importância crucial a autonomia do Judiciário, a sua independência de qualquer tipo de influência executiva. Em terceiro lugar, é certo que os tribunais internacionais de direitos humanos existentes - as Cortes Européia, e Interamericana de Direitos Humanos - não "substituem" os tribunais internos, e tampouco operam como tribunais de recursos ou de cassação de decisões dos tribunais internos. Não obstante, os atos internos dos Estados podem vir a ser objeto de exame por parte dos órgãos de supervisão internacionais quando se trata de verificar a sua conformidade com as obrigações internacionais dos Estados em matéria de direitos humanos. Os atos internos dos Estados não se encontram isentos de verificação quanto ao seu valor de prova, porquanto podem não estar conformes as obrigações internacionais dos Estados.

Isto se aplica à legislação nacional assim como às decisões internas judiciais e administrativas. Por exemplo, uma decisão judicial interna pode dar uma interpretação incorreta a uma norma de um tratado de direitos humanos; ou qualquer outro órgão estatal pode deixar de cumprir uma obrigação internacional do Estado neste domínio. Em tais hipóteses pode-se configurar a responsabilidade internacional do Estado, porquanto seus tribunais ou outros órgãos não são os intérpretes finais de suas obrigações internacionais em matéria de direitos humanos. Os órgãos de supervisão internacionais não são obrigados a conhecer o direito interno dos diversos Estados, mas sim a tomar conhecimento dele como elemento de prova, no processo de verificação da conformidade dos atos internos (judiciais, legislativos, administrativos) dos Estados com as obrigações convencionais que a estes se impõem. Este exame da aplicação do direito interno é de certo modo incidenter tantum, como parte essencial ou integral da função de supervisão internacional, e elemento probatório para o exame do comportamento estatal interno de relevância internacional. Nessa ótica, é o próprio direito interno que assume importância no processo legal internacional.

Isto se torna ainda mais claro em um sistema de garantia coletiva como o da proteção dos direitos humanos, particularmente o dos tratados de direitos humanos dotados também de petições inter-estatais (e.g., Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 45; Convenção Européia de Direitos Humanos, artigo 24; Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos, artigos 47-54; Pacto de Direitos Civis e Políticos, artigo 41; Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, artigos XI-XIII; Convenção das Nações Unidas contra a Tortura, artigo 21), em que os órgãos de supervisão internacionais em questão podem ser convocados por um Estado Parte para verificar se os atos normativos, administrativos ou judiciais internos de outro Estado Parte, em suma, o próprio comportamento deste, encontra-se ou não em conformidade com as disposições daqueles tratados. E mesmo no tocante ao exercício do direito de petição individual nestes consagrado (e.g., Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 44; Convenção Européia de Direitos Humanos, artigo 25; Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos, artigos 55-58; [primeiro] Protocolo Facultativo ao Pacto dos Direitos Civis e Políticos, artigos 1-3 e 5; Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, artigo XIV; Convenção das Nações Unidas contra a Tortura, artigo 22), registram-se hoje inúmeros casos relativos a matérias normalmente regidas pelo direito interno: basta lembrar, por exemplo, sob a Convenção Européia de Direitos Humanos, os numerosos casos de petições ou reclamações sob o artigo 6 (concernente ao direito de toda pessoa a que a sua causa seja examinada eqüitativamente por um tribunal independente e imparcial) e o artigo 5 (referente a prisão ou detenção legal e o direito à liberdade e segurança de toda pessoa), cobrindo matérias reguladas pelo ordenamento jurídico interno.

A par desses casos numerosos, poder-se-ia aqui fazer referência específica ao célebre Caso Lingüístico Belga, por exemplo, em que a Corte Européia de Direitos Humanos deixou claro (julgamento quanto ao mérito, 1968) que não poderia assumir a função das autoridades nacionais competentes, que permaneciam livres para escolher e tomar as providências que considerassem apropriadas nas matérias regidas pela Convenção Européia: sua função de supervisão dizia respeito tão somente à conformidade dessas providências com os requisitos da Convenção. No caso dos 23 Habitantes de Alsemberg e de Beersel versus Bélgica (1963), a Comissão Européia de Direitos Humanos, a seu turno, observou que a reclamação pretendia a declaração não da nulidade de uma decisão isolada mas antes da incompatibilidade da legislação "lingüística" belga com os requisitos da Convenção; pouco antes, no caso X versus Bélgica (1960), a Comissão advertira que não lhe incumbia decidir sobre a interpretação e aplicação do direito interno pelos tribunais internos, a não ser que tal direito constituísse uma violação da Convenção ou que na interpretação ou aplicação do direito interno tivessem os tribunais internos cometido tal violação.

No continente americano, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em seu relatório anual de 1977, constatou deficiências no direito interno de muitos países (inoperância de garantias e meios de defesa, falta de independência do Poder Judiciário), que deixavam de oferecer proteção adequada às vítimas de violações de direitos humanos; era precisamente nestas circunstâncias, - esclareceu a Comissão Interamericana no relatório de 1980 sobre a situação dos direitos humanos na Argentina, - que se tornava necessária a atuação dos órgãos de supervisão internacionais. Em relatórios anuais mais recentes, a Comissão relacionou a proteção dos direitos humanos com a própria organização política (interna) do Estado e o exercício efetivo da democracia, e em varias ocasiões instou os Estados-membros da OEA a incorporar aos textos de suas Constituições certos direitos e a harmonizar suas legislações respectivas com os preceitos contidos nos tratados de direitos humanos. Em decorrência das recomendações gerais formuladas em seus relatórios ou dirigidas a determinados Governos, logrou a Comissão que se modificassem ou derrogassem leis violatórias dos direitos humanos, e que se estabelecessem ou aperfeiçoassem recursos e procedimentos de direito interno para a plena vigência dos direitos humanos.

Cabe, pois, naturalmente aos tribunais internos interpretar e aplicar as leis dos países respectivos, exercendo os órgãos internacionais especificamente a função de supervisão, nos termos e parâmetros dos mandatos que lhes foram atribuídos pelos tratados e instrumentos de direitos humanos respectivos. Mas cabe, ademais, aos tribunais internos, e outros órgãos dos Estados, assegurar a implementação a nível nacional das normas internacionais de proteção, o que realça a importância de seu papel em um sistema integrado como o da proteção dos direitos humanos, no qual as obrigações convencionais abrigam um interesse comum superior de todos os Estados Partes, o da proteção do ser humano. Os órgãos de supervisão internacionais, por sua vez, controlam a compatibilidade da interpretação e aplicação do direito interno com as obrigações convencionais, para determinação dos elementos factuais a serem avaliados para o propósito da aplicação das disposições pertinentes dos tratados de direitos humanos.

É possível que os órgãos de supervisão venham a ocupar-se, no exame dos casos concretos, e.g., de erros de fato ou de direito cometidos pelos tribunais internos, na medida em que tais erros pareçam ter resultado em violação de um dos direitos assegurados pelos tratados de direitos humanos. Na mesma linha, podem os órgãos de supervisão, na consideração dos casos concretos, vir a examinar a legislação nacional, não in abstracto, mas na medida em que sua aplicação pareça constituir uma violação de um dos direitos assegurados pelos tratados de direitos humanos. Com efeito, graças à atuação - desde seus primórdios - dos órgãos de supervisão próprios aos sistemas europeu e interamericano de direitos humanos, em numerosos casos tem-se logrado pôr fim a práticas administrativas violatórias dos direitos humanos e alterar medidas legislativas para salvaguardar os direitos humanos.

 

IV. Compatibilização e Prevenção de Conflitos entre as Jurisdições Internacional e Nacional em Matéria de Direitos Humanos.

Vê-se, do acima exposto, que os tratados de direitos humanos impõem deveres que implicam a interação entre suas normas e as de direito interno. Ao consagrarem normas que acarretam esta interação, como as atinentes à compatibilização entre seus dispositivos e os de direito interno (por vezes com referência expressa e preceitos constitucionais e leis internas), os tratados de direitos humanos atenderam à necessidade de prevenir ou evitar conflitos entre as jurisdições internacional e nacional e de harmonizar a legislação nacional com as obrigações convencionais. Daí a total improcedência da invocação da soberania estatal no tocante à interpretação e aplicação dos tratados de direitos humanos vigentes. A propósito, em seu discurso na plenária de abertura da II Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, junho de 1993), o Secretário-Geral das Nações Unidas (B. Boutros-Ghali) sugeriu que, "par leur nature, les droits de l'homme abolissent la distinction traditionnelle entre l'ordre interne et l'ordre international. Ils sont créateurs d'une perméabilité juridique nouvelle. Il s'agit donc de ne les considérer, ni sous l'angle de la souveraineté absolue, ni sous celui de l'ingérence politique. Mais, au contraire, il faut comprendre que les droits de l'homme impliquent la collaboration et la coordenation des États et des organisations internationales".

A par das vias supracitadas de compatibilização dos dispositivos convencionais e dos de direito interno, também se voltam a este mesmo propósito as cláusulas de derrogação e de limitações ou restrições ao exercício de certos direitos (a serem restritivamente interpretadas), para atender às necessidades dos Estados diante de situações factuais de emergência imprevisíveis e propiciar o fiel desempenho pelos Estados de seus deveres públicos em prol do bem comum; as reservas autorizadas ou permitidas pelos próprios tratados (também a serem restritivamente interpretadas, além de necessariamente compatíveis com o objeto e propósito dos referidos tratados); a consagração do requisito do prévio esgotamento dos recursos de direito interno nos instrumentos de proteção internacional dos direitos humanos, a evidenciar o caráter subsidiário dos procedimentos internacionais e a função primordial e responsabilidade primária dos órgãos internos dos Estados como parte integrante do sistema de proteção internacional dos direitos humanos; e as cláusulas facultativas (e.g., de reconhecimento da competência de órgãos de supervisão internacionais para examinar petições ou reclamações individuais e inter-estatais, e de reconhecimento da jurisdição compulsória de órgãos judiciais de proteção dos direitos humanos), como alternativas abertas aos Estados pelos próprios tratados de direitos humanos para a aceitação normal das obrigações convencionais, de modo a possibilitar-lhes medir o grau de comprometimento que se vêem em condições de assumir, e desse modo viabilizar as ratificações ou adesões do maior número possível de Estados.

Não há que confundir as categorias acima (cláusulas de compatibilização, derrogações e limitações ou restrições permissíveis, reservas permissíveis, prévio esgotamento dos recursos internos, e cláusulas facultativas), todas distintas mas contribuindo cada uma a seu modo para prevenir ou evitar conflitos entre as jurisdições internacional e nacional, e para remover obstáculos à evolução da proteção internacional dos direitos humanos. Nunca é demais deixar esclarecido que as eventuais limitações ou restrições permissíveis ao exercício dos direitos consagrados, ademais de deverem ser interpretadas restritivamente e em favor destes últimos, devem necessariamente cumprir certos requisitos, a saber: ser previstas em lei, ser justificadas pelo Estado, limitar-se a situações em que sejam absolutamente necessárias e ao propósito para o qual foram prescritas, ser aplicadas no interesse geral da coletividade (ordre public) coadunando-se com as exigências de uma "sociedade democrática", respeitar o princípio da proporcionalidade, não ser aplicadas de modo arbitrário ou discriminatório, sujeitar-se a controle por órgãos independentes (com a previsão de recursos para os casos de abusos), e ser compatíveis com o objeto e propósito dos tratados de direitos humanos.

É de se esperar que nos próximos anos se intensifiquem os esforços no sentido de verificar e assegurar o fiel cumprimento desses requisitos pelos Estados, a começar pela ampla divulgação das iniciativas e providências por estes tomadas; neste propósito, há que considerar, e.g., a obtenção de informações mais detalhadas por parte de Estados que impuseram derrogações, limitações e estados ou medidas de emergência, assim como a designação pelos órgãos de supervisão internacionais de relatores especiais ou órgãos subsidiários de investigação em relação a estados ou medidas de emergência pública prolongados. Já há indicações jurisprudenciais concretas em nosso continente para o tratamento da matéria. Assim, no Parecer sobre o Habeas Corpus sob Suspensão de Garantias (1987), a Corte Interamericana de Direitos Humanos sustentou que os recursos de amparo e habeas corpus (a que se referem, respectivamente, os artigos 25(1) e 7(6) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos) constituem "garantias judiciais indispensáveis" à proteção dos direitos humanos e não podem ser suspensas (sob o artigo 27(2) da Convenção); por conseguinte, acrescentou a Corte, os ordenamentos constitucionais e legais dos Estados Partes que autorizarem, explícita ou implicitamente, a suspensão daqueles recursos (ou equiparáveis) em situações de emergência hão de ser considerados "incompatíveis" com as obrigações internacionais impostas pela Convenção Americana.

Pouco após, em outro Parecer (do mesmo ano), sobre Garantias Judiciais em Estados de Emergência, a Corte, ao recordar o direito a um recurso efetivo consagrado na Convenção (artigo 25(1)), para a proteção dos direitos reconhecidos por esta, pela Constituição ou pela lei, advertiu prontamente que não basta que os recursos estejam formalmente previstos pelo direito interno, porquanto requer-se sejam eles ademais eficazes. O artigo 8 da Convenção, agregou a Corte, reconhece o due process of law que se aplica essencialmente a "todas as garantias judiciais" referidas na Convenção, "mesmo sob o regime de suspensão regulado pelo artigo 27 da mesma". Enfim, outras garantias, derivadas da "forma democrática de governo" (a que se refere o artigo 29(c) da Convenção), implicam não apenas uma determinada organização política, mas a necessidade de que as medidas tomadas por um governo em situação de emergência contem com garantias judiciais e estejam sujeitas a um controle de legalidade, de modo que "se preserve o Estado de Direito".

Uma atitude da doutrina tem consistido em tentar medir o alcance dos tratados de direitos humanos por seus efeitos jurídicos no direito interno dos Estados Partes. A este respeito, cabe recordar o artigo 2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, segundo o qual se o exercício dos direitos mencionados no artigo 1 da Convenção não estiver já garantido por disposições legislativas ou de outro caráter, os Estados Partes se comprometem a adotar, de acordo com seus processos constitucionais e com as disposições da Convenção Americana, as medidas legislativas ou de outro caráter que forem necessárias para tornar efetivos aqueles direitos. À época da adoção da Convenção Americana (novembro de 1969), a Delegação dos Estados Unidos à Conferência de San José da Costa Rica argumentou (relatório de abril de 1970) que o principal efeito do artigo 2 era o de permitir aos Estados Partes tratar as disposições substantivas da Parte I da Convenção (artigos I a 32) como sendo "non-self-executing"; esta seria a intenção dos Estados Unidos, porquanto, no entender de sua Delegação, o artigo 2 era "suficientemente flexível" para permitir a cada país "implementar da melhor maneira" a Convenção "de acordo com sua prática interna".

A conseqüência desta posição era negar que a Convenção pudesse beneficiar diretamente os indivíduos, sem a legislação interna adicional prevista no artigo 2, - o que prontamente revela a improcedência desta tese. Se o artigo 2 fosse interpretado como o pretendia a Delegação norteamericana, frustraria as tentativas de invocar a Convenção Americana perante os tribunais nacionais para garantir determinados direitos (e.g., em conflito com a legislação interna ou nesta não existentes), negando aplicabilidade direta a toda a Parte I da Convenção, e privaria esta última de qualquer impacto significativo na administração da justiça quotidiana dos Estados Partes. A Convenção se tornaria virtualmente letra morta. Não surpreendentemente, a própria Corte Interamericana de Direitos Humanos, em Parecer de 1986, assinalou (em relação ao artigo 14(1) da Convenção) que o fato de que um artigo faça referência à lei "não é suficiente" para que perca autoaplicabilidade (exceto se a própria vigência do direito estiver inteiramente condicionada à lei evocada). Assim, no entendimento da Corte, o fato de poderem os Estados Partes determinar as condições do exercício de um direito (no caso, do direito de retificação ou resposta), "não impede a exigibilidade conforme ao Direito Internacional" das obrigações contraídas sob o artigo 1(1) da Convenção; concluiu, desse modo, a Corte que o artigo 14 (1) da Convenção é autoaplicável (self-executing), consagrando "um direito de retificação ou resposta internacionalmente exigível".

A obrigação do artigo 2 (supra) soma-se ao dever geral do artigo 1 da Convenção. Não se pode condicionar a totalidade dos direitos internacionalmente consagrados às providências legislativas internas dos Estados Partes; trata-se de uma obrigação adicional e complementar à obrigação geral do artigo 1 da Convenção. O propósito do artigo 2 é antes o de superar obstáculos e tomar as medidas cabíveis para assegurar a aplicação de todas as normas (inclusive as programáticas) da Convenção e garantir assim a proteção dos direitos nela consignados em quaisquer circunstâncias. Se a Convenção não pudesse aplicar-se imediata e diretamente às pessoas protegidas, estaria privada de todo efeito significativo e estaria paralisado todo o sistema de salvaguarda dos direitos humanos. Ademais, a Convenção contém normas que podem ser aplicadas pelos tribunais nacionais sem medidas legislativas adicionais. Os preceitos sobre não-discriminação, consagrados em tantos tratados de direitos humanos, prestam-se à autoaplicação. Segundo um estudo recente, com exceção de seis cláusulas da Parte I da Convenção Americana que expressamente reclamam a existência de uma lei ou de medidas complementares, todos os demais preceitos da Parte I da Convenção são autoaplicáveis (self-executing), em razão da própria natureza das obrigações que incorporam e de sua "exigibilidade direta e imediata"; se deixarem de ser aplicados pelos tribunais nacionais ou outros órgãos internos dos Estados, configurar-se-á em conseqüência a responsabilidade internacional destes últimos por violação de suas obrigações convencionais.

Pode-se mesmo admitir uma presunção em favor da auto-aplicabilidade das normas substantivas dos tratados de direitos humanos, exceto se contiverem uma estipulação expressa de execução por meio de leis subseqüentes que condicionem inteiramente o cumprimento das obrigações em apreço; assim como a questão da hierarquia das normas (e da determinação de qual delas deve prevalecer) tem sido tradicionalmente reservada ao direito constitucional (daí advindo as consideráveis variações neste particular de país a país), a determinação do caráter autoaplicável (self-executing) de uma norma internacional constitui, como se tem bem assinalado, por sua vez, "uma questão regida pelo Direito Internacional, já que se trata nada menos que do cumprimento ou da violação de uma norma de Direito Internacional". O sentido e o alcance do artigo 2 da Convenção Americana encontram-se hoje suficientemente esclarecidos. Talvez a sua inserção na Convenção não tivesse sido das mais felizes, em razão das incertezas que prontamente advirem. A despeito destas, o recente Protocolo Adicional à Convenção Americana em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1988) curiosamente reedita sua formulação, ao dispor que se o exercício dos direitos nele consagrados "ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes, comprometem-se a adotar, de acordo com seus processos constitucionais" e com as disposições do próprio Protocolo, "as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos esses direitos" (artigo 2). Mas hoje, distintamente, já se dispõe de elementos, doutrinários e jurisprudenciais (supra), para assegurar um entendimento e uma aplicação apropriados desta disposição do Protocolo de San Salvador e evitar as incertezas que pareceram circundar o equivalente artigo 2 da Convenção Americana em seus primórdios.

 

V. A Obrigação Internacional dos Estados de Provimento de Recursos de Direito Interno Eficazes.

Assim como é possível medir a relevância das normas internacionais de proteção no âmbito do direito interno dos Estados pelo impacto neste último dos tratados e instrumentos de direitos humanos (cf.supra), do mesmo modo os meios de reparação de direito interno se fazem presentes no próprio processo legal internacional no dever do Estado de fornecer recursos internos eficazes e no dever correspondente do indivíduo reclamante de utilizá-los como condição de admissibilidade da petição internacional. Com efeito, uma nova visão desta conjunção de deveres complementares quanto aos meios de reparação internos contribui para uma reavaliação da questão mais ampla da interação entre o direito internacional e o direito interno no âmbito da proteção dos direitos humanos.

Neste âmbito de proteção, a visão clássica do requisito formal do esgotamento - pelos indivíduos reclamantes - dos recursos de direito interno para a instituição de procedimento contencioso internacional perde terreno para uma nova concepção voltada ao elemento da reparação propriamente dita. Apercebe-se então que a regra do esgotamento, na proteção dos direitos humanos, só pode ser considerada adequadamente em conexão com a obrigação correspondente dos Estados de prover recursos internos eficazes; a ênfase passa a recair na tendência de aprimoramento dos instrumentos e mecanismos nacionais de proteção judicial. Esta mudança de ênfase atribui maior responsabilidade aos tribunais internos (judiciais e administrativos), convocando-os a exercer atualmente um papel mais ativo - se não criativo - do que no passado na implementação das normas internacionais de proteção. Se, por um lado, isto pode a curto prazo revelar ou expor suas insuficiências ou deficiências no exercício desta função "ampliada" de administração da justiça, por outro lado isto pode, a médio e longo prazos, acarretar conseqüências positivas. Uma primeira é, como já assinalado, o aprimoramento da administração interna da justiça; uma segunda é uma maior aproximação entre os Estados, já não pela predominância clássica dos contatos entre os poderes executivos com seu apego quase instintivo ao dogma da soberania exclusiva, mas também pelos contatos internacionais dos poderes judiciários, beneficiando-se assim do conhecimento mútuo das realidades jurídicas internas dos Estados; e uma terceira é a atuação coordenada dos tribunais internos sob os tratados de direitos humanos, em matérias por estes regidas, a despeito das variações nos distintos ordenamentos jurídicos internos, propiciando um certo grau de uniformidade na aplicação das normas dos referidos tratados.

Dada a estrutura descentralizada do ordenamento jurídico internacional, não é de surpreender que, ao menos no âmbito da proteção internacional dos direitos humanos, as atenções se voltem crescentemente à função reservada aos tribunais nacionais na implementação das normas internacionais. A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, por exemplo, impõe aos Estados Partes o dever de "garantir a independência dos tribunais" e de propiciar o estabelecimento e aperfeiçoamento de "instituições nacionais apropriadas" de promoção e proteção dos direitos humanos nela garantidos (artigo 26). Ademais, os tratados de direitos humanos regulamentam hoje uma área que, no passado, era tida como tradicionalmente reservada ao direito constitucional, a dos direitos fundamentais dos cidadãos vis-à-vis o poder público. Com a "internacionalização" da proteção dos direitos humanos, viram-se os Estados na obrigação adicional de equipar-se devidamente para dar efeito aos tratados, particularmente os de direitos humanos que requerem medidas a nível nacional para sua implementação (e.g., o dever de prover recursos internos eficazes). Tais medidas (legislativas ou administrativas) são de fundamental importância, porquanto, segundo o princípio consagrado da responsabilidade internacional, nenhum Estado pode invocar dificuldades ou deficiências de direito interno como desculpa para evadir suas obrigações internacionais.

O dever de provimento pelos Estados Partes de recursos internos eficazes, imposto pelos tratados de direitos humanos, constitui o necessário fundamento no direito interno do dever correspondente dos indivíduos reclamantes de fazer uso de tais recursos antes de levar o caso aos órgãos internacionais. Com efeito, é precisamente porque os tratados de direitos humanos impõem aos Estados Partes o dever de assegurar às supostas vítimas recursos eficazes perante as instâncias nacionais contra violações de seus direitos reconhecidos (nos tratados ou no direito interno) (e.g., Pacto de Direitos Civis e Políticos, artigo 2(3)(a); Convenção das Nações Unidas contra a Tortura, artigo 14; Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, artigo VI; Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 25(1); Convenção Européia de Direitos Humanos, artigo 13; Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, artigo 7), que, reversamente, requerem de todo reclamante o prévio esgotamento dos recursos de direito interno como condição de admissibilidade de suas petições a nível internacional (e.g., [primeiro] Protocolo Facultativo Relativo ao Pacto de Direitos Civis e Políticos, artigo 5(2)(b); Convenção das Nações Unidas contra a Tortura, artigo 22(5)(b); Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, artigo XIV(7)(a); Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 46(1)(a); Convenção Européia de Direitos Humanos, artigos 26 e 27(3); Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, artigo 56(5) e (6)).

 

VI. A Função dos Órgãos e Procedimentos do Direito Público Interno.

Há tratados de direitos humanos que vão mais além, prevendo inclusive o compromisso dos Estados Partes de "desenvolver as possibilidades de recurso judicial" (e.g., Pacto de Direitos Civis e Políticos, artigo 2(3) (b); Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 25(2) (b)). Os tratados supracitados confiam assim a proteção dos direitos humanos também aos órgãos e procedimentos do direito público interno e à legislação constitucional e ordinária. A Convenção das Nações Unidas contra a Tortura, por exemplo, determina que os Estados Partes assegurarão às vítimas (ou seus dependentes), o direito à reparação e a uma indenização "justa e adequada", incluídos os meios necessários para a "mais completa reabilitação possível" (artigo 14). Também a Convenção Interamericana contra a Tortura prevê a adoção de medidas efetivas de direito interno (artigos 6-7 e 9) para prevenir e punir a tortura. A seu turno, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial consagra um elenco significativo de medidas exigidas dos Estados Partes, a engajarem não só os tribunais nacionais como também os demais órgãos do poder público; a Convenção prevê, e.g., a revisão de políticas governamentais (artigo II (1) (c)), a adoção de medidas legislativas, judiciais, administrativas ou outras (artigo II (1) (d) e (2) e artigos IV e IX) e de medidas educativas (artigo VIII), para a realização de seu objeto e propósito. A adoção de tais medidas, legislativas, judiciais, administrativas ou outras, é igualmente prevista pela Convenção sobre a Eliminação e a Punição do Crime do Apartheid (artigos 4 e 7).

Outros exemplos podem ser destacados. A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, e.g., encontra-se permeada de inúmeros compromissos de adoção de medidas diversas pelos Estados Partes (artigos 3-8, 10-13, 14(2), 16 e 18) para a realização de seu objeto e propósito. Pelo artigo 2(a), os Estados Partes se comprometem inclusive a consagrar em suas Constituições nacionais ou em outra legislação apropriada o princípio da igualdade do homem e da mulher e assegurar por lei outros meios apropriados à "realização prática" desse princípio; comprometem-se a adotar todas as medidas adequadas (legislativas e outras), inclusive as sanções cabíveis, e a modificação ou derrogação de leis, regulamentos, usos e práticas, para por fim à discriminação contra a mulher (artigo 2(b), (f) e (g)); comprometem-se, ademais, a assegurar, por meio dos tribunais nacionais e outras instituições públicas, a proteção jurídica efetiva da mulher (contra todo ato de discriminação) em base de igualdade com o homem. Ao final de um elenco longo e circunstanciado de medidas a serem tomadas pelos Estados Partes a nível do direito interno, o artigo 24, como que para evitar qualquer omissão nesse sentido, dispõe em suma sobre o compromisso dos Estados Partes de "adotar todas as medidas necessárias em âmbito nacional para alcançar a plena realização" dos direitos reconhecidos na Convenção. Igual compromisso é assumido pelos Estados Partes na Convenção sobre os Direitos da Criança (artigos 4, 19, 33 e 39).

Os Estados Partes em tratados de direitos humanos encontram-se, em suma, obrigados a organizar o seu ordenamento jurídico interno de modo que as supostas vítimas de violações dos direitos neles consagrados disponham de um recurso eficaz perante as instâncias nacionais. Esta obrigação adicional opera como uma salvaguarda contra eventuais denegações de justiça, ou atrasos indevidos ou outras irregularidades processuais na administração da justiça. Com isto ao menos ficam impedidos os governos dos Estados Partes de obstruir ações ante os tribunais nacionais (no processo de esgotamento de recursos de direito interno) para obter reparação de danos resultantes de violações dos direitos consagrados nos tratados de direitos humanos. A operação dos deveres complementares de utilização dos recursos de direito interno (pelos reclamantes) e de provimento de tais recursos eficazes (pelos Estados demandados) contribui assim para uma melhor apreciação da interação entre o direito internacional e o direito interno no contexto da proteção dos direitos humanos.

 

VII. As Normas Internacionais de Proteção Diretamente 
Aplicáveis no Direito Interno
.

O impacto dos tratados de direitos humanos nos ordenamentos jurídicos internos dos Estados Partes (supra) tem atraído bastante atenção nos últimos anos, e tem se notabilizado mormente em numerosos casos que acarretaram, e.g., alterações nas respectivas legislações nacionais com o propósito de harmonizá-las com os referidos tratados. Reversamente, a influência do direito interno dos Estados Partes nos sistemas dos tratados de direitos humanos tem atraído consideravelmente menos atenção. O fato de que não raro os tribunais internos são chamados a interpretar disposições dos tratados de direitos humanos no exame de casos concretos contribui em parte para explicar o impacto desses tratados no direito interno dos Estados Partes. Ao enfocar os efeitos desses tratados no direito interno dos Estados Partes, a atitude da doutrina clássica tem consistido em classificar estes últimos, de modo geral, em dois grupos, a saber: os que possibilitam dar efeito direto a disposições dos referidos tratados, tidas como self-executing ou de aplicabilidade direta, e os países cujo direito constitucional determina que, mesmo ratificados, tais tratados não se tornam ipso facto direito interno, para o que se requer legislação especial.

É esta uma determinação que tem cabido ao direito constitucional; no entanto, cuidou o direito internacional de elaborar o conceito das normas diretamente aplicáveis (self-executing) propriamente ditas, com relação a disposições de tratados passíveis de ser invocadas por um particular ante um tribunal ou juiz ("incorporação" automática), sem necessidade de um ato jurídico complementar ("transformação") para sua exigibilidade e implementação. Para que uma norma convencional possa ser autoaplicável, passou-se a considerar necessária a conjugação de duas condições, a saber, primeiro, que a norma conceda ao indivíduo um direito claramente definido e exigível ante um juiz, e segundo, que seja ela suficientemente específica para poder ser aplicada judicialmente em um caso concreto, operando per se sem necessidade de um ato legislativo ou medidas administrativas subseqüentes. A norma diretamente aplicável, em suma, consagra um direito individual, passível de pronta aplicação ou execução pelos tribunais ou juízes nacionais.

Não obstante as variações verificáveis de país a país quanto à questão mais ampla do status preciso dos tratados de direitos humanos no direito interno, por ser deixada ao critério do direito constitucional de cada Estado Parte, a aplicação das disposições convencionais - e de modo especial as consideradas self-executing - pelos tribunais internos revela ao menos o alcance da influência exercida ao longo dos anos pelos tratados de direitos humanos nos Estados Partes. No plano normativo e em perspectiva histórica, é sempre lembrada a consagração, nas Constituições modernas, de direitos anteriormente proclamados em tratados e instrumentos internacionais de direitos humanos, particularmente a partir da Declaração Universal de 1948. Muito significativamente, os resultados concretos obtidos nas últimas décadas sob os tratados e instrumentos de direitos humanos demonstram que não há, como a rigor nunca houve, qualquer impossibilidade lógica ou jurídica de que indivíduos, seres humanos, sejam beneficiários diretos de instrumentos internacionais. A polêmica clássica entre dualistas e monistas, em seu inelutável hermetismo, parece ter-se erigido em falsas premissas, ao se ter em mente os sistemas contemporâneos de proteção dos direitos humanos.

A par da função "internacional" atribuída aos tribunais internos, as próprias características do processo legiferante que hoje conhecemos contribuem para desvencilhar-nos das amarras da polêmica irreconciliável entre monistas e dualistas. Para a liberação, nesse sentido, do espírito jurídico contemporâneo, têm ademais contribuído decisivamente o reconhecimento da competência ou capacidade de agir dos órgãos de supervisão internacionais e sobretudo do direito de petição individual ou da capacidade processual internacional dos indivíduos sob os tratados e instrumentos de direitos humanos, os quais têm tornado a controvérsia clássica entre dualistas e monistas ociosa, supérflua, dispensável, e sem resultados práticos ao menos no tocante à operação de tais tratados e instrumentos de proteção. Há que ter em mente que, em uma dimensão mais ampla, os reconhecimentos do direito de petição individual e da competência dos órgãos de supervisão internacionais têm-se dado em meio à conscientização da identidade de propósito primordial do direito internacional e do direito público interno contemporâneos quanto às necessidades de proteção do ser humano.

Mesmo nos Estados que efetivamente "incorporaram" os tratados de direitos humanos no ordenamento jurídico interno persiste uma certa diversidade quanto ao status ou posição exata desses tratados na hierarquia legal interna, - o que era de se esperar, por se tratar de soluções de direito interno. Sabe-se, por exemplo, que, no início dos anos noventa, dos 22 Estados ratificantes da Convenção Européia de Direitos Humanos 14 já haviam assegurado a esta o status de direito interno. Nem por isso se pode deduzir que nos 14 Estados que incorporaram a Convenção ao ordenamento jurídico interno os direitos humanos são necessariamente melhor protegidos como conseqüência direta daquela providência: a "incorporação" - embora meritória - não reflete automaticamente a realidade da observância dos direitos humanos em um país e o grau da proteção jurídica a eles estendida, sendo medidas mais significativas e de maior alcance prático a aceitação do direito de petição individual e da jurisdição compulsória dos órgãos judiciais de proteção internacional. Assim, o fato de que no início desta década todos os 22 Estados Partes na Convenção Européia haviam aceito o direito de petição individual sob a Convenção (artigo 25) e todos os Estados Partes (com a única exceção da Turquia) haviam aceito a jurisdição compulsória da Corte Européia de Direitos Humanos (artigo 46 da Convenção) - independentemente do status da Convenção no direito interno de cada país - revela a seriedade e maturidade dos Estados Partes e explica em grande parte o êxito daquele sistema regional de proteção dos direitos humanos.

Os tratados de direitos humanos beneficiam diretamente os indivíduos e grupos protegidos. Cobrem relações (dos indivíduos frente ao poder público) cuja regulamentação era outrora o apanágio do direito constitucional. E diversas das Constituições modernas, a seu turno, remetem expressamente aos direitos consagrados nos tratados de direitos humanos (cf. supra), a um tempo revelando nova postura ante a questão clássica da hierarquia normativa dos tratados internacionais vigentes assim como concedendo um tratamento especial ou diferenciado também no plano do direito interno aos direitos e garantias individuais internacionalmente consagrados (cf. supra). Regendo a mesma gama de relações, dos indivíduos ante o Estado, o direito internacional e o direito interno apontam aqui na mesma direção, coincidindo no propósito básico e último de ambos da proteção do ser humano.

 

VIII. A Primazia da Norma Mais Favorável às Vítimas.

Não mais há pretensão de primazia de um ou outro, como na polêmica clássica e superada entre monistas e dualistas. No presente domínio de proteção, a primazia é da norma mais favorável às vítimas, seja ela norma de direito internacional ou de direito interno. Este e aquele aqui interagem em benefício dos seres protegidos. É a solução expressamente consagrada em diversos tratados de direitos humanos, da maior relevância por suas implicações práticas. Merecedora da maior atenção, tem curiosamente passado quase despercebida na doutrina contemporânea. Concentremo-nos, pois, no que dispõem os tratados de direitos humanos a respeito.

No plano global, o Pacto de Direitos Civis e Políticos proíbe expressamente qualquer restrição ou derrogação aos direitos humanos reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado Parte, em virtude de outras convenções, ou de leis, regulamentos ou costumes, "sob pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau" (artigo 5(2)). Tanto a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (artigo 5) quanto a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas (artigo 5), prevêem igualmente que nenhuma de suas disposições prejudicará os outros direitos e vantagens concedidos respectivamente aos refugiados e apátridas, independentemente delas. A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher adverte que nada do disposto nela prejudicará "qualquer disposição que seja mais propícia à obtenção da igualdade entre homens e mulheres e que esteja contida: a) na legislação de um Estado Parte; ou b) em qualquer outra convenção, tratado ou acordo internacional vigente nesse Estado" (artigo 23). Na mesma linha de pensamento, a Convenção sobre os Direitos da Criança também adverte que nada do estipulado nela afetará "disposições que sejam mais convenientes para a realização dos direitos da criança e que podem constar: a) das leis de um Estado Parte; b) das normas de direito internacional vigentes para esse Estado" (artigo 41).

No plano regional, a mesma ressalva se encontra na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que proíbe a interpretação de qualquer de suas disposições no sentido de limitar o gozo e exercício de quaisquer direitos que "possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados Partes ou de acordo com outra convenção em que seja Parte um dos referidos Estados" (artigo 29(b)); proíbe, ademais, a interpretação de qualquer de suas disposições no sentido de excluir ou limitar "o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza" (artigo 29(d)). Da mesma forma, o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador) determina que "não se poderá restringir ou limitar qualquer dos direitos reconhecidos ou vigentes em um Estado em virtude de sua legislação interna ou de convenções internacionais, sob pretexto de que este Protocolo não os reconhece ou os reconhece em menor grau" (artigo 4).

No continente americano assim como no continente europeu a solução é a mesma. Estipula a Convenção Européia de Direitos Humanos que nenhuma de suas disposições será interpretada no sentido de limitar ou prejudicar os direitos humanos reconhecidos de acordo com as leis de qualquer Estado Parte ou com qualquer outra convenção em que este for Parte (artigo 60). A Convenção Européia para Prevenção da Tortura e Tratamento ou Punição Desumano ou Degradante esclarece que não prejudicará ela "os dispositivos do direito interno ou de qualquer acordo internacional que forneçam maior proteção às pessoas privadas de sua liberdade" (artigo 17(1)). A Carta Social Européia, a seu turno, determina igualmente que suas disposições não prejudicarão as de direito interno nem as de tratados que "sejam mais favoráveis às pessoas protegidas" (artigo 32).

O critério da primazia da norma mais favorável às pessoas protegidas, consagrado expressamente em tantos tratados de direitos humanos, contribui em primeiro lugar para reduzir ou minimizar consideravelmente as pretensas possibilidades de "conflitos" entre instrumentos legais em seus aspectos normativos. Contribui, em segundo lugar, para obter maior coordenação entre tais instrumentos, em dimensão tanto vertical (tratados e instrumentos de direito interno) quanto horizontal (dois ou mais tratados). No tocante a esta última, o critério da primazia da disposição mais favorável às vítimas já em fins da década de cinqüenta era aplicado pela Comissão Européia de Direitos Humanos (petição nº 235/56, de 1958-1959), e recebeu reconhecimento judicial da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Parecer de 1985 sobre a Associação Obrigatória de Jornalistas. Contribui, em terceiro lugar, como ressaltamos em nosso curso ministrado na Academia de Direito Internacional da Haia em 1987, para demonstrar que a tendência e o propósito da coexistência de distintos instrumentos jurídicos - garantindo os mesmos direitos - são no sentido de ampliar e fortalecer a proteção. O que importa em última análise é o grau de eficácia da proteção, e por conseguinte há de impor-se a norma que no caso concreto melhor proteja, seja ela de direito internacional ou de direito interno.

 

IX. Conclusões.

Nas últimas décadas, a operação regular dos tratados e instrumentos internacionais de direitos humanos tem demonstrado sobejamente que podem beneficiar diretamente os indivíduos. Na verdade, é este o seu propósito último; ao criarem obrigações para os Estados vis-à-vis os seres humanos sob sua jurisdição, as normas dos tratados de direitos humanos aplicam-se não só na ação conjunta (exercício de garantia coletiva) dos Estados Partes na realização do propósito comum de proteção, mas também e sobretudo no âmbito do ordenamento interno de cada um deles, nas relações entre o poder público e os indivíduos. Diversas Constituições contemporâneas, referindo-se expressamente aos tratados de direitos humanos, concedem um tratamento especial ou diferenciado também no plano do direito interno aos direitos humanos internacionalmente consagrados. Os tratados de direitos humanos indicam vias de compatibilização dos dispositivos convencionais e dos de direito interno de modo a prevenir conflitos entre as jurisdições internacional e nacional no presente domínio de proteção; impõem aos Estados Partes o dever de provimento de recursos de direito interno eficazes, e por vezes o compromisso de desenvolvimento das "possibilidades de recurso judicial"; prevêem a adoção pelos Estados Partes de medidas legislativas, judiciais, administrativas ou outras, para a realização de seu objeto e propósito. Em suma, contam com o concurso dos órgãos e procedimentos do direito público interno. Há, assim, uma interpenetração entre as jurisdições internacional e nacional no âmbito de proteção do ser humano.

O cumprimento das obrigações internacionais de proteção requer o concurso dos órgãos internos dos Estados, e estes são chamados a aplicar as normas internacionais. É este o traço distintivo e talvez o mais marcante dos tratados de direitos humanos, dotados de especificidade própria e a requererem uma interpretação própria guiada pelos valores comuns superiores que abrigam, diferentemente dos tratados clássicos que se limitam a regulamentar os interesses recíprocos entre as Partes. Com a interação entre o direito internacional e o direito interno no presente contexto, os grandes beneficiários são as pessoas protegidas. Em um sistema integrado como o da proteção dos direitos humanos, os atos internos dos Estados estão sujeitos à supervisão dos órgãos internacionais de proteção quando, no exame dos casos concretos, se trata de verificar a sua conformidade com as obrigações internacionais dos Estados em matéria de direitos humanos. As normas internacionais que consagram e definem claramente um direito individual, passível de vindicação ante um tribunal ou juiz nacional, são diretamente aplicáveis. Além disso, os próprios tratados de direitos humanos significativamente consagram o critério da primazia da norma mais favorável às vítimas, seja ela norma de direito internacional ou de direito interno.

Afastada, no presente domínio, a compartimentalização, teórica e estática da doutrina clássica, entre o direito internacional e o direito interno, em nossos dias, com a interação dinâmica entre um e outro neste âmbito de proteção, é o próprio Direito que se enriquece - e se justifica, - na medida em que cumpre a sua missão última de fazer justiça. No presente contexto, o direito internacional e o direito interno interagem e se auxiliam mutuamente no processo de expansão e fortalecimento do direito de proteção do ser humano. Nestes anos derradeiros a conduzir-nos ao final do século, é alentador constatar que o direito internacional e o direito interno caminham juntos e apontam na mesma direção, coincidindo no propósito básico e último de ambos da proteção do ser humano.

São José da Costa Rica,

12 de junho de 1996.

A.A.C.T.

Prefácio

 

DIREITO INTERNACIONAL E DIREITO INTERNO: SUA INTERAÇÃO NA PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Por:

 

Antônio Augusto CANÇADO TRINDADE

Ph.D. (Cambridge), Juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Professor Titular da Universidade de Brasília,

Diretor Executivo do Instituto Interamericano de Direitos Humanos

 

I. Introdução.

Um dos aspectos básicos do labor de promoção dos direitos humanos reside na difusão da normativa de proteção. A presente iniciativa atende a esse propósito. É, assim, com satisfação, que acedemos ao honroso convite da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo para elaborar, em forma de estudo doutrinário introdutório, o Prefácio desta coletânea intitulada Os Instrumentos Internacionais de Proteção aos Direitos Humanos. Há que somar esforços em prol da causa comum da plena vigência dos direitos humanos em nosso país; a presente publicação se dá em meio a um alentador florescimento de interesse em nossos círculos jurídicos pela aplicação dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos em nosso direito interno.

Ainda há pouco, a coletânea de ensaios que editamos intitulada A Incorporação das Normas Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos no Direito Brasileiro (Instituto Interamericano de Direitos Humanos, 1996, págs. 1-845), reunindo contribuições de cerca de cinqüenta autores, em sua grande maioria brasileiros, alcançou sua segunda edição duas semanas depois de seu lançamento em Brasília e São Paulo. Nossas Universidades passam, enfim, a incluir em seus currículos e cursos regulares, a temática dos Direitos Humanos, ainda que com denominações distintas. O despertar de nossos círculos jurídicos e universitários para os direitos humanos como disciplina autônoma é, além de alentador, irreversível. A presente e louvável iniciativa da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo vem reforçar os esforços envidados em nosso país por todos os que acreditamos que só pode haver democracia e Estado de Direito com a plena observância dos direitos humanos, tomados estes em sua concepção integral, a abarcar os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.

Uma publicação como a presente atende, com efeito, a dois objetivos básicos e complementares: em primeiro lugar, alcançar a mais ampla difusão dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, o que se reveste de suma importância, porquanto o passo inicial para a vindicação dos direitos consiste em bem conhecê-los. Em segundo lugar, visa contribuir à fiel aplicação dos instrumentos internacionais relacionados, no plano do direito interno. A tarefa de legislação internacional no presente domínio já se encontra bastante avançada; cumpre agora dar real efetividade aos múltiplos instrumentos internacionais coexistentes no plano do direito interno.

A incorporação da normativa internacional de proteção no direito interno dos Estados constitui alta prioridade em nossos dias: pensamos que, da adoção e aperfeiçoamento de medidas nacionais de implementação depende em grande parte o futuro da própria proteção internacional dos direitos humanos. Na verdade, como se pode depreender de um exame cuidadoso da matéria, no presente domínio de proteção o direito internacional e o direito interno conformam um todo indivisível: apontam na mesma direção, desvendando o propósito comum de proteção da pessoa humana. O direito internacional e o direito interno aqui se mostram, desse modo, em constante interação, em benefício dos seres humanos protegidos. Senão vejamos.

O antagonismo irreconciliável entre as posições monista e dualista clássicas provavelmente levou os juristas a abordar mais recentemente a relação entre o direito internacional e o direito interno de ângulos distintos. A distinção tradicional, enfatizando a pretensa diferença das relações reguladas pelos dois ordenamentos jurídicos, dificilmente poderia fornecer uma resposta satisfatória à questão da proteção internacional dos direitos humanos: sob o direito interno as relações entre os indivíduos, ou entre o Estado e os indivíduos, eram consideradas sob o aspecto da "competência nacional exclusiva"; e tentava-se mesmo argumentar que os direitos individuais reconhecidos pelo direito internacional não se dirigiam diretamente aos beneficiários, e por conseguinte não eram diretamente aplicáveis. Com o passar dos anos, houve um avanço, no sentido de, ao menos, distinguir entre os países em que certas normas dos instrumentos internacionais de direitos humanos passaram a ter aplicabilidade direta, e os países em que necessitavam elas ser "transformadas" em leis ou disposições de direito interno para ser aplicadas pelos tribunais e autoridades administrativas.

Como buscamos demonstrar em estudo publicado na Alemanha em meados dos anos setenta, outros abordamentos podem desvendar um campo de pesquisa bem mais rico e fértil, quais sejam, o status interno (nacional) de disposições jurídicas internacionais a partir do prisma do direito constitucional (comparado), ou o exame ou a interpretação do direito interno pelos tribunais internacionais (para verificar a compatibilidade do direito interno com o direito internacional), ou a relevância do direito interno no processo legal internacional, ou a implementação de decisões judiciais internacionais pelos tribunais internos. Estes enfoques continuam a requerer, e merecer, maior atenção.

Decorridas duas décadas desde a publicação deste nosso estudo, é chegado o momento de retomarmos o exame do tema, tomando em conta desenvolvimentos recentes sobre a matéria. Para tal, consideraremos de início o impacto de instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos em Constituições recentes. A seguir, examinaremos quatro questões, a saber: a supervisão internacional da compatibilidade dos atos internos dos Estado com suas obrigações internacionais de proteção; a compatibilização e prevenção de conflitos entre as jurisdições internacional e nacional em matéria de direitos humanos; a obrigação internacional dos Estados de provimento de recursos de direito interno eficazes; e a função dos órgãos e procedimentos do direito público interno. Enfim, abordaremos as questões das normas internacionais de proteção diretamente aplicáveis no direito interno, e da primazia da norma mais favorável às vítimas. O campo estará, então, aberto à apresentação de nossas conclusões.

 

II. O Impacto de Instrumentos Internacionais de Proteção

dos Direitos Humanos em Constituições Recentes.

Já não mais se justifica que o direito internacional e o direito constitucional continuem sendo abordados de forma estanque ou compartimentalizada, como o foram no passado. Já não pode haver dúvida de que as grandes transformações internas dos Estados repercutem no plano internacional, e a nova realidade neste assim formada provoca mudanças na evolução interna e no ordenamento constitucional dos Estados afetados. Ilustram-no, e.g., as profundas mudanças constitucionais que vêm ocorrendo nos países de Leste Europeu a partir de 1988-1989, visando a construção de novos Estados de Direito, durante cujo processo aqueles países foram levados gradualmente a tornar-se Partes nos dois Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas. Estas transformações recentes têm, a um tempo, gerado um novo constitucionalismo assim como uma abertura à internacionalização da proteção dos direitos humanos.

Com efeito, nos últimos anos o impacto de instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos tem-se feito sentir em algumas Constituições. Ilustração pertinente é fornecida pela Constituição Portuguesa de 1976, que estabelece que os direitos fundamentais nela consagrados "não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional", e acrescenta: - "Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados em harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem" (artigo 16(1) e (2)). A disposição da Constituição da Alemanha - com emendas até dezembro de 1983 - segundo a qual "as normas gerais do Direito Internacional Público constituem parte integrante do direito federal" e "sobrepõem-se às leis e constituem fonte de direitos e obrigações para os habitantes do território federal" (artigo 25), pode ser entendida como englobando os direitos e obrigações consagrados nos instrumentos de proteção internacional dos direitos humanos.

Um dos exemplos mais comumente lembrados em nossos dias de Constituições recentes que, reconhecendo a importância dos tratados de direitos humanos, os singularizam e a eles estendem cuidado especial, é o da Constituição Espanhola de 1978, que submete a eventual denúncia de tratados sobre direitos e deveres fundamentais ao requisito da prévia autorização ou aprovação do Poder Legislativo (artigos 96(2) e 94(1)(c)). Tal aprovação congressual para a eventual denúncia daqueles tratados naturalmente abre uma brecha em reduto do Executivo, em favor da manutenção da vigência de tais instrumentos, mesmo porque o Legislativo só poderia autorizar sua denúncia na forma prevista nos próprios tratados ou consoante as regras gerais do direito internacional. Fortalecem-se, desse modo, os tratados de direitos humanos.

Não é este um exemplo isolado. Na América Latina, surgem mostras em nossos dias de nova postura ante a questão clássica da hierarquia normativa dos tratados internacionais vigentes, como revelado pela nova tendência de algumas Constituições latino-americanas recentes de dispensar um tratamento diferenciado ou especial aos tratados de direitos humanos ou aos preceitos neles consagrados. Exemplo dos mais marcantes, nesta nova linha, é fornecido pela [anterior] Constituição do Peru de 1978, cujo artigo 105 determinava que os preceitos contidos nos tratados de direitos humanos têm hierarquia constitucional, e não podem ser modificados senão pelo procedimento para a reforma da própria Constituição. Lamentavelmente não se encontra esta disposição reiterada nos mesmos termos na atual Constituição Política do Peru de 1993 (referendo de 31.10.1993), a qual se limita a determinar (4a. disposição final e transitória) que os direitos constitucionalmente reconhecidos se interpretam de conformidade com a Declaração Universal de Direitos Humanos e com os tratados de direitos humanos ratificados pelo Peru. Outro exemplo reside na Constituição da Guatemala de 1985, cujo artigo 46 estabelece que os tratados de direitos humanos ratificados pela Guatemala têm preeminência sobre o direito interno. Assim, enquanto a anterior Constituição Peruana atribuía hierarquia constitucional aos tratados de direitos humanos, a atual Constituição Guatemalteca atribui a estes hierarquia especial, com preeminência sobre a legislação ordinária e o restante do direito interno. Outra ilustração é dada pela nova Constituição da Nicarágua, de 1987, que, pelo disposto em seu artigo 46, integra, para fins de proteção, na enumeração constitucional de direitos, os direitos consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, nos dois Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas (de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e de Direitos Civis e Políticos), e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Na mesma linha de pensamento situa-se uma das recentes modificações introduzidas na Constituição do Chile em decorrência do plebiscito convocado para 30 de julho de 1989; pela nova reforma constitucional, de 1989, agregou-se ao final do artigo 5(II) da Constituição Chilena a seguinte disposição: - "É dever dos órgãos do Estado respeitar e promover tais direitos, garantidos por esta Constituição, assim como pelos tratados internacionais ratificados pelo Chile e que se encontrem vigentes". Desse modo, os direitos garantidos por aqueles tratados passaram a equiparar-se hierarquicamente aos garantidos pela Constituição Chilena reformada. Outro exemplo pertinente é fornecido pela Constituição da Colômbia de 1991, cujo artigo 93 determina que os tratados de direitos humanos ratificados pela Colômbia "prevalecem na ordem interna", e que os direitos humanos constitucionalmente consagrados serão interpretados de conformidade com os tratados de direitos humanos ratificados pela Colômbia.

Bem próxima da postura refletida nas soluções acima referidas encontra-se a da Constituição Brasileira de 1988, que, após proclamar que o Brasil se rege em suas relações internacionais pelo princípio, entre outros, da prevalência dos direitos humanos (artigo 4(II)), constituindo-se em Estado Democrático de Direito tendo como fundamento, inter alia, a dignidade da pessoa humana (artigo 1(III)), estatui, - consoante proposta que avançamos na Assembléia Nacional Constituinte e por esta aceita, - que os direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja Parte (artigo 5(2)). E acrescenta que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata (artigo 5(1)).

O disposto no artigo 5(2) da Constituição Brasileira de 1988 se insere na nova tendência de Constituições latino-americanas recentes de conceder um tratamento especial ou diferenciado também no plano do direito interno aos direitos e garantias individuais internacionalmente consagrados. A especificidade e o caráter especial dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos encontram-se, com efeito, reconhecidos e sancionados pela Constituição Brasileira de 1988: se, para os tratados internacionais em geral, se tem exigido a intermediação pelo Poder Legislativo de ato com força de lei de modo a outorgar a suas disposições vigência ou obrigatoriedade no plano do ordenamento jurídico interno, distintamente no caso dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos em que o Brasil é Parte os direitos fundamentais neles garantidos passam, consoante os artigos 5(2) e 5(1) da Constituição Brasileira de 1988, a integrar o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados e direta e imediatamente exigíveis no plano do ordenamento jurídico interno.

Mais recentemente, incorporou-se à Constituição da Argentina, reformada em agosto de 1994, o artigo 75(22), pelo qual determinados tratados e instrumentos de direitos humanos, nele enumerados, têm "hierarquia constitucional", só podendo ser denunciados mediante prévia aprovação de dois terços dos membros do Legislativo; tais tratados e instrumentos de direitos humanos são "complementares" aos direitos e garantias reconhecidos na Constituição. Outra técnica seguida em recentes reformas constitucionais tem consistido em dispor sobre a procedência do recurso de amparo para a salvaguarda dos direitos consagrados nos tratados de direitos humanos (Constituição da Costa Rica, reformada em 1989, artigo 48; além da Constituição da Argentina, artigo 43); outras Constituições optam por referir-se à normativa internacional em relação a um determinado direito, para o qual "a fonte internacional adquire hierarquia constitucional" (Constituições do Equador, artigos 43 e 17; de El Salvador, artigo 28; de Honduras, artigo 119(2)).

As Constituições latino-americanas supracitadas reconhecem assim a relevância da proteção internacional dos direitos humanos e dispensam atenção e tratamento especiais à matéria. Ao reconhecerem que sua enumeração de direitos não é exaustiva ou supressiva de outros, descartam desse modo o princípio de interpretação das leis inclusio unius est exclusio alterius. É alentador que as conquistas do direito internacional em favor da proteção do ser humano venham a projetar-se no direito constitucional, enriquecendo-o, e demonstrando que a busca de proteção cada vez mais eficaz da pessoa humana encontra guarida nas raízes do pensamento tanto internacionalista quanto constitucionalista.

As soluções, de direito constitucional, quanto à hierarquia entre normas de tratados e de direito interno, resultam de critérios valorativos e da discricionariedade dos constituintes nacionais, variando, pois, de país a país. Não surpreende, assim, que algumas Constituições se mostrem mais abertas ao direito internacional do que outras. O que deve resultar claro é que isto ocorre não em razão da natureza intrínseca da norma jurídica; se assim fosse, não haveria a diversidade de soluções (constitucionais) à questão. A tendência constitucional contemporânea de dispensar um tratamento especial aos tratados de direitos humanos é, pois, sintomática de uma escala de valores na qual o ser humano passa a ocupar posição central. Um papel importante está aqui reservado aos advogados de supostas vítimas de violações de direitos humanos, particularmente nos países em que aquela tendência ainda não se tem acentuado com vigor: no intuito de buscar a redução da considerável distância entre o reconhecimento formal, e a vigência real, dos direitos humanos, consagrados não só na Constituição e na lei interna como também nos tratados de proteção, cabe aos advogados invocar estes últimos, referindo-se às obrigações internacionais que vinculam o Estado no presente domínio de proteção, de modo a exigir dos juízes e tribunais nacionais, no exercício permanente de suas funções, que considerem, estudem e apliquem as normas dos tratados de direitos humanos, e fundamentem devidamente suas decisões.

Os fundamentos últimos da proteção dos direitos humanos transcendem o direito estatal, e o consenso generalizado formado hoje em torno da necessidade da internacionalização de sua proteção corresponde a uma manifestação cultural de nossos tempos, juridicamente viabilizada pela coincidência de objetivos entre o direito internacional e o direito interno quanto à proteção da pessoa humana. Como, também neste domínio, a um Estado não é dado deixar de cumprir suas obrigações convencionais sob o pretexto de supostas dificuldades de ordem constitucional ou interna, com maior razão ainda não haver desculpa para um Estado de não se conformar a um tratado de direitos humanos no qual é Parte pelo simples fato de seus tribunais interpretarem, no plano do direito interno, o tratado de modo diferente do que se impõe no plano do direito internacional. Com estas reflexões em mente, passemos ao ponto seguinte de nosso estudo, qual seja, o da compatibilidade dos atos internos dos Estados com suas obrigações internacionais de proteção.

 

III. A Supervisão Internacional da Compatibilidade dos Atos Internos dos Estados com Suas Obrigações Internacionais de Proteção.

Constatamos atualmente, por um lado, uma crescente "abertura" das Constituições contemporâneas - de que dão exemplo marcante as de alguns países latino-americanos e as de países tanto da Europa Oriental hodierna como da Europa Ocidental - à normativa internacional de proteção dos direitos humanos. A este fenômeno se agrega, por outro lado, a atribuição de funções, pelos tratados de direitos humanos, aos órgãos internos dos Estados, para a realização de seu objeto e propósito. A interação resultante entre o direito internacional e o direito interno no presente domínio de proteção é, pois, manifesta e inquestionável. E não se limita à relação, com o direito interno, dos tratados de direitos humanos propriamente ditos: outra ilustração, talvez menos lembrada, no mesmo sentido da interação, reside na implementação das Convenções internacionais do trabalho da OIT.

Alguns aspectos da interação entre o direito internacional e o direito interno na proteção dos direitos humanos são particularmente significativos. Em primeiro lugar, os próprios tratados de direitos humanos atribuem uma função capital à proteção por parte dos tribunais internos, como evidenciado pelas obrigações de fornecer recursos internos eficazes e de esgotá-los, que recaem, respetivamente, sobre os Estados demandados e os indivíduos reclamantes. Tendo a si confiada a proteção primária dos direitos humanos, os tribunais internos têm, em contrapartida, que conhecer e interpretar as disposições pertinentes dos tratados de direitos humanos. Donde a propalada subsidiaridade do processo legal internacional, a qual encontra sólido respaldo na prática internacional, na jurisprudência, nos tratados, assim como na doutrina.

Em segundo lugar, a margem de controvérsias é reduzida ou mesmo eliminada na medida em que os próprios tratados disponham sobre a função e o procedimento dos tribunais internos na aplicação das normas internacionais de proteção neles consagradas. Nos casos em que a atuação dos tribunais internos envolve a aplicação do direito internacional dos direitos humanos, assume importância crucial a autonomia do Judiciário, a sua independência de qualquer tipo de influência executiva. Em terceiro lugar, é certo que os tribunais internacionais de direitos humanos existentes - as Cortes Européia, e Interamericana de Direitos Humanos - não "substituem" os tribunais internos, e tampouco operam como tribunais de recursos ou de cassação de decisões dos tribunais internos. Não obstante, os atos internos dos Estados podem vir a ser objeto de exame por parte dos órgãos de supervisão internacionais quando se trata de verificar a sua conformidade com as obrigações internacionais dos Estados em matéria de direitos humanos. Os atos internos dos Estados não se encontram isentos de verificação quanto ao seu valor de prova, porquanto podem não estar conformes as obrigações internacionais dos Estados.

Isto se aplica à legislação nacional assim como às decisões internas judiciais e administrativas. Por exemplo, uma decisão judicial interna pode dar uma interpretação incorreta de uma norma de um tratado de direitos humanos; ou qualquer outro órgão estatal pode deixar de cumprir uma obrigação internacional do Estado neste domínio. Em tais hipóteses pode-se configurar a responsabilidade internacional do Estado, porquanto seus tribunais ou outros órgãos não são os intérpretes finais de suas obrigações internacionais em matéria de direitos humanos. Os órgãos de supervisão internacionais não são obrigados a conhecer o direito interno dos diversos Estados, mas sim a tomar conhecimento dele como elemento de prova, no processo de verificação da conformidade dos atos internos (judiciais, legislativos, administrativos) dos Estados com as obrigações convencionais que a estes se impõem. Este exame da aplicação do direito interno é de certo modo incidenter tantum, como parte essencial ou integral da função de supervisão internacional, e elemento probatório para o exame do comportamento estatal interno de relevância internacional. Nessa ótica, é o próprio direito interno que assume importância no processo legal internacional.

Isto se torna ainda mais claro em um sistema de garantia coletiva como o da proteção dos direitos humanos, particularmente o dos tratados de direitos humanos dotados também de petições inter-estatais (e.g., Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 45; Convenção Européia de Direitos Humanos, artigo 24; Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos, artigos 47-54; Pacto de Direitos Civis e Políticos, artigo 41; Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, artigos XI-XIII; Convenção das Nações Unidas contra a Tortura, artigo 21), em que os órgãos de supervisão internacionais em questão podem ser convocados por um Estado Parte para verificar se os atos normativos, administrativos ou judiciais internos de outro Estado Parte, em suma, o próprio comportamento deste, encontra-se ou não em conformidade com as disposições daqueles tratados. E mesmo no tocante ao exercício do direito de petição individual nestes consagrado (e.g., Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 44; Convenção Européia de Direitos Humanos, artigo 25; Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos, artigos 55-58; [primeiro] Protocolo Facultativo ao Pacto dos Direitos Civis e Políticos, artigos 1-3 e 5; Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, artigo XIV; Convenção das Nações Unidas contra a Tortura, artigo 22), registram-se hoje inúmeros casos relativos a matérias normalmente regidas pelo direito interno: basta lembrar, por exemplo, sob a Convenção Européia de Direitos Humanos, os numerosos casos de petições ou reclamações sob o artigo 6 (concernente ao direito de toda pessoa a que a sua causa seja examinada eqüitativamente por um tribunal independente e imparcial) e o artigo 5 (referente a prisão ou detenção legal e o direito à liberdade e segurança de toda pessoa), cobrindo matérias reguladas pelo ordenamento jurídico interno.

A par desses casos numerosos, poder-se-ia aqui fazer referência específica ao célebre Caso Lingüístico Belga, por exemplo, em que a Corte Européia de Direitos Humanos deixou claro (julgamento quanto ao mérito, 1968) que não poderia assumir a função das autoridades nacionais competentes, que permaneciam livres para escolher e tomar as providências que considerassem apropriadas nas matérias regidas pela Convenção Européia: sua função de supervisão dizia respeito tão somente à conformidade dessas providências com os requisitos da Convenção. No caso dos 23 Habitantes de Alsemberg e de Beersel versus Bélgica (1963), a Comissão Européia de Direitos Humanos, a seu turno, observou que a reclamação pretendia a declaração não da nulidade de uma decisão isolada mas antes da incompatibilidade da legislação "lingüística" belga com os requisitos da Convenção; pouco antes, no caso X versus Bélgica (1960), a Comissão advertira que não lhe incumbia decidir sobre a interpretação e aplicação do direito interno pelos tribunais internos, a não ser que tal direito constituísse uma violação da Convenção ou que na interpretação ou aplicação do direito interno tivessem os tribunais internos cometido tal violação.

No continente americano, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em seu relatório anual de 1977, constatou deficiências no direito interno de muitos países (inoperância de garantias e meios de defesa, falta de independência do Poder Judiciário), que deixavam de oferecer proteção adequada às vítimas de violações de direitos humanos; era precisamente nestas circunstâncias, - esclareceu a Comissão Interamericana no relatório de 1980 sobre a situação dos direitos humanos na Argentina, - que se tornava necessária a atuação dos órgãos de supervisão internacionais. Em relatórios anuais mais recentes, a Comissão relacionou a proteção dos direitos humanos com a própria organização política (interna) do Estado e o exercício efetivo da democracia, e em varias ocasiões instou os Estados-membros da OEA a incorporar aos textos de suas Constituições certos direitos e a harmonizar suas legislações respectivas com os preceitos contidos nos tratados de direitos humanos. Em decorrência das recomendações gerais formuladas em seus relatórios ou dirigidas a determinados Governos, logrou a Comissão que se modificassem ou derrogassem leis violatórias dos direitos humanos, e que se estabelecessem ou aperfeiçoassem recursos e procedimentos de direito interno para a plena vigência dos direitos humanos.

Cabe, pois, naturalmente aos tribunais internos interpretar e aplicar as leis dos países respectivos, exercendo os órgãos internacionais especificamente a função de supervisão, nos termos e parâmetros dos mandatos que lhes foram atribuídos pelos tratados e instrumentos de direitos humanos respectivos. Mas cabe, ademais, aos tribunais internos, e outros órgãos dos Estados, assegurar a implementação a nível nacional das normas internacionais de proteção, o que realça a importância de seu papel em um sistema integrado como o da proteção dos direitos humanos, no qual as obrigações convencionais abrigam um interesse comum superior de todos os Estados Partes, o da proteção do ser humano. Os órgãos de supervisão internacionais, por sua vez, controlam a compatibilidade da interpretação e aplicação do direito interno com as obrigações convencionais, para determinação dos elementos factuais a serem avaliados para o propósito da aplicação das disposições pertinentes dos tratados de direitos humanos.

É possível que os órgãos de supervisão venham a ocupar-se, no exame dos casos concretos, e.g., de erros de fato ou de direito cometidos pelos tribunais internos, na medida em que tais erros pareçam ter resultado em violação de um dos direitos assegurados pelos tratados de direitos humanos. Na mesma linha, podem os órgãos de supervisão, na consideração dos casos concretos, vir a examinar a legislação nacional, não in abstracto, mas na medida em que sua aplicação pareça constituir uma violação de um dos direitos assegurados pelos tratados de direitos humanos. Com efeito, graças à atuação - desde seus primórdios - dos órgãos de supervisão próprios aos sistemas europeu e interamericano de direitos humanos, em numerosos casos tem-se logrado pôr fim a práticas administrativas violatórias dos direitos humanos e alterar medidas legislativas para salvaguardar os direitos humanos.

 

IV. Compatibilização e Prevenção de Conflitos entre as Jurisdições Internacional e Nacional em Matéria de Direitos Humanos.

Vê-se, do acima exposto, que os tratados de direitos humanos impõem deveres que implicam a interação entre suas normas e as de direito interno. Ao consagrarem normas que acarretam esta interação, como as atinentes à compatibilização entre seus dispositivos e os de direito interno (por vezes com referência expressa e preceitos constitucionais e leis internas), os tratados de direitos humanos atenderam à necessidade de prevenir ou evitar conflitos entre as jurisdições internacional e nacional e de harmonizar a legislação nacional com as obrigações convencionais. Daí a total improcedência da invocação da soberania estatal no tocante à interpretação e aplicação dos tratados de direitos humanos vigentes. A propósito, em seu discurso na plenária de abertura da II Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, junho de 1993), o Secretário-Geral das Nações Unidas (B. Boutros-Ghali) sugeriu que, "par leur nature, les droits de l'homme abolissent la distinction traditionnelle entre l'ordre interne et l'ordre international. Ils sont créateurs d'une perméabilité juridique nouvelle. Il s'agit donc de ne les considérer, ni sous l'angle de la souveraineté absolue, ni sous celui de l'ingérence politique. Mais, au contraire, il faut comprendre que les droits de l'homme impliquent la collaboration et la coordenation des États et des organisations internationales".

A par das vias supracitadas de compatibilização dos dispositivos convencionais e dos de direito interno, também se voltam a este mesmo propósito as cláusulas de derrogação e de limitações ou restrições ao exercício de certos direitos (a serem restritivamente interpretadas), para atender às necessidades dos Estados diante de situações factuais de emergência imprevisíveis e propiciar o fiel desempenho pelos Estados de seus deveres públicos em prol do bem comum; as reservas autorizadas ou permitidas pelos próprios tratados (também a serem restritivamente interpretadas, além de necessariamente compatíveis com o objeto e propósito dos referidos tratados); a consagração do requisito do prévio esgotamento dos recursos de direito interno nos instrumentos de proteção internacional dos direitos humanos, a evidenciar o caráter subsidiário dos procedimentos internacionais e a função primordial e responsabilidade primária dos órgãos internos dos Estados como parte integrante do sistema de proteção internacional dos direitos humanos; e as cláusulas facultativas (e.g., de reconhecimento da competência de órgãos de supervisão internacionais para examinar petições ou reclamações individuais e inter-estatais, e de reconhecimento da jurisdição compulsória de órgãos judiciais de proteção dos direitos humanos), como alternativas abertas aos Estados pelos próprios tratados de direitos humanos para a aceitação normal das obrigações convencionais, de modo a possibilitar-lhes medir o grau de comprometimento que se vêem em condições de assumir, e desse modo viabilizar as ratificações ou adesões do maior número possível de Estados.

Não há que confundir as categorias acima (cláusulas de compatibilização, derrogações e limitações ou restrições permissíveis, reservas permissíveis, prévio esgotamento dos recursos internos, e cláusulas facultativas), todas distintas mas contribuindo cada uma a seu modo para prevenir ou evitar conflitos entre as jurisdições internacional e nacional, e para remover obstáculos à evolução da proteção internacional dos direitos humanos. Nunca é demais deixar esclarecido que as eventuais limitações ou restrições permissíveis ao exercício dos direitos consagrados, ademais de deverem ser interpretadas restritivamente e em favor destes últimos, devem necessariamente cumprir certos requisitos, a saber: ser previstas em lei, ser justificadas pelo Estado, limitar-se a situações em que sejam absolutamente necessárias e ao propósito para o qual foram prescritas, ser aplicadas no interesse geral da coletividade (ordre public) coadunando-se com as exigências de uma "sociedade democrática", respeitar o princípio da proporcionalidade, não ser aplicadas de modo arbitrário ou discriminatório, sujeitar-se a controle por órgãos independentes (com a previsão de recursos para os casos de abusos), e ser compatíveis com o objeto e propósito dos tratados de direitos humanos.

É de se esperar que nos próximos anos se intensifiquem os esforços no sentido de verificar e assegurar o fiel cumprimento desses requisitos pelos Estados, a começar pela ampla divulgação das iniciativas e providências por estes tomadas; neste propósito, há que considerar, e.g., a obtenção de informações mais detalhadas por parte de Estados que impuseram derrogações, limitações e estados ou medidas de emergência, assim como a designação pelos órgãos de supervisão internacionais de relatores especiais ou órgãos subsidiários de investigação em relação a estados ou medidas de emergência pública prolongados. Já há indicações jurisprudenciais concretas em nosso continente para o tratamento da matéria. Assim, no Parecer sobre o Habeas Corpus sob Suspensão de Garantias (1987), a Corte Interamericana de Direitos Humanos sustentou que os recursos de amparo e habeas corpus (a que se referem, respectivamente, os artigos 25(1) e 7(6) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos) constituem "garantias judiciais indispensáveis" à proteção dos direitos humanos e não podem ser suspensas (sob o artigo 27(2) da Convenção); por conseguinte, acrescentou a Corte, os ordenamentos constitucionais e legais dos Estados Partes que autorizarem, explícita ou implicitamente, a suspensão daqueles recursos (ou equiparáveis) em situações de emergência hão de ser considerados "incompatíveis" com as obrigações internacionais impostas pela Convenção Americana.

Pouco após, em outro Parecer (do mesmo ano), sobre Garantias Judiciais em Estados de Emergência, a Corte, ao recordar o direito a um recurso efetivo consagrado na Convenção (artigo 25(1)), para a proteção dos direitos reconhecidos por esta, pela Constituição ou pela lei, advertiu prontamente que não basta que os recursos estejam formalmente previstos pelo direito interno, porquanto requer-se sejam eles ademais eficazes. O artigo 8 da Convenção, agregou a Corte, reconhece o due process of law que se aplica essencialmente a "todas as garantias judiciais" referidas na Convenção, "mesmo sob o regime de suspensão regulado pelo artigo 27 da mesma". Enfim, outras garantias, derivadas da "forma democrática de governo" (a que se refere o artigo 29(c) da Convenção), implicam não apenas uma determinada organização política, mas a necessidade de que as medidas tomadas por um governo em situação de emergência contem com garantias judiciais e estejam sujeitas a um controle de legalidade, de modo que "se preserve o Estado de Direito".

Uma atitude da doutrina tem consistido em tentar medir o alcance dos tratados de direitos humanos por seus efeitos jurídicos no direito interno dos Estados Partes. A este respeito, cabe recordar o artigo 2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, segundo o qual se o exercício dos direitos mencionados no artigo 1 da Convenção não estiver já garantido por disposições legislativas ou de outro caráter, os Estados Partes se comprometem a adotar, de acordo com seus processos constitucionais e com as disposições da Convenção Americana, as medidas legislativas ou de outro caráter que forem necessárias para tornar efetivos aqueles direitos. À época da adoção da Convenção Americana (novembro de 1969), a Delegação dos Estados Unidos à Conferência de San José da Costa Rica argumentou (relatório de abril de 1970) que o principal efeito do artigo 2 era o de permitir aos Estados Partes tratar as disposições substantivas da Parte I da Convenção (artigos I a 32) como sendo "non-self-executing"; esta seria a intenção dos Estados Unidos, porquanto, no entender de sua Delegação, o artigo 2 era "suficientemente flexível" para permitir a cada país "implementar da melhor maneira" a Convenção "de acordo com sua prática interna".

A conseqüência desta posição era negar que a Convenção pudesse beneficiar diretamente os indivíduos, sem a legislação interna adicional prevista no artigo 2, - o que prontamente revela a improcedência desta tese. Se o artigo 2 fosse interpretado como o pretendia a Delegação norteamericana, frustraria as tentativas de invocar a Convenção Americana perante os tribunais nacionais para garantir determinados direitos (e.g., em conflito com a legislação interna ou nesta não existentes), negando aplicabilidade direta a toda a Parte I da Convenção, e privaria esta última de qualquer impacto significativo na administração da justiça quotidiana dos Estados Partes. A Convenção se tornaria virtualmente letra morta. Não surpreendentemente, a própria Corte Interamericana de Direitos Humanos, em Parecer de 1986, assinalou (em relação ao artigo 14(1) da Convenção) que o fato de que um artigo faça referência à lei "não é suficiente" para que perca autoaplicabilidade (exceto se a própria vigência do direito estiver inteiramente condicionada à lei evocada). Assim, no entendimento da Corte, o fato de poderem os Estados Partes determinar as condições do exercício de um direito (no caso, do direito de retificação ou resposta), "não impede a exigibilidade conforme ao Direito Internacional" das obrigações contraídas sob o artigo 1(1) da Convenção; concluiu, desse modo, a Corte que o artigo 14 (1) da Convenção é autoaplicável (self-executing), consagrando "um direito de retificação ou resposta internacionalmente exigível".

A obrigação do artigo 2 (supra) soma-se ao dever geral do artigo 1 da Convenção. Não se pode condicionar a totalidade dos direitos internacionalmente consagrados às providências legislativas internas dos Estados Partes; trata-se de uma obrigação adicional e complementar à obrigação geral do artigo 1 da Convenção. O propósito do artigo 2 é antes o de superar obstáculos e tomar as medidas cabíveis para assegurar a aplicação de todas as normas (inclusive as programáticas) da Convenção e garantir assim a proteção dos direitos nela consignados em quaisquer circunstâncias. Se a Convenção não pudesse aplicar-se imediata e diretamente às pessoas protegidas, estaria privada de todo efeito significativo e estaria paralisado todo o sistema de salvaguarda dos direitos humanos. Ademais, a Convenção contém normas que podem ser aplicadas pelos tribunais nacionais sem medidas legislativas adicionais. Os preceitos sobre não-discriminação, consagrados em tantos tratados de direitos humanos, prestam-se à autoaplicação. Segundo um estudo recente, com exceção de seis cláusulas da Parte I da Convenção Americana que expressamente reclamam a existência de uma lei ou de medidas complementares, todos os demais preceitos da Parte I da Convenção são autoaplicáveis (self-executing), em razão da própria natureza das obrigações que incorporam e de sua "exigibilidade direta e imediata"; se deixarem de ser aplicados pelos tribunais nacionais ou outros órgãos internos dos Estados, configurar-se-á em conseqüência a responsabilidade internacional destes últimos por violação de suas obrigações convencionais.

Pode-se mesmo admitir uma presunção em favor da auto-aplicabilidade das normas substantivas dos tratados de direitos humanos, exceto se contiverem uma estipulação expressa de execução por meio de leis subseqüentes que condicionem inteiramente o cumprimento das obrigações em apreço; assim como a questão da hierarquia das normas (e da determinação de qual delas deve prevalecer) tem sido tradicionalmente reservada ao direito constitucional (daí advindo as consideráveis variações neste particular de país a país), a determinação do caráter autoaplicável (self-executing) de uma norma internacional constitui, como se tem bem assinalado, por sua vez, "uma questão regida pelo Direito Internacional, já que se trata nada menos que do cumprimento ou da violação de uma norma de Direito Internacional". O sentido e o alcance do artigo 2 da Convenção Americana encontram-se hoje suficientemente esclarecidos. Talvez a sua inserção na Convenção não tivesse sido das mais felizes, em razão das incertezas que prontamente advirem. A despeito destas, o recente Protocolo Adicional à Convenção Americana em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1988) curiosamente reedita sua formulação, ao dispor que se o exercício dos direitos nele consagrados "ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes, comprometem-se a adotar, de acordo com seus processos constitucionais" e com as disposições do próprio Protocolo, "as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos esses direitos" (artigo 2). Mas hoje, distintamente, já se dispõe de elementos, doutrinários e jurisprudenciais (supra), para assegurar um entendimento e uma aplicação apropriados desta disposição do Protocolo de San Salvador e evitar as incertezas que pareceram circundar o equivalente artigo 2 da Convenção Americana em seus primórdios.

 

V. A Obrigação Internacional dos Estados de Provimento de Recursos de Direito Interno Eficazes.

Assim como é possível medir a relevância das normas internacionais de proteção no âmbito do direito interno dos Estados pelo impacto neste último dos tratados e instrumentos de direitos humanos (cf.supra), do mesmo modo os meios de reparação de direito interno se fazem presentes no próprio processo legal internacional no dever do Estado de fornecer recursos internos eficazes e no dever correspondente do indivíduo reclamante de utilizá-los como condição de admissibilidade da petição internacional. Com efeito, uma nova visão desta conjunção de deveres complementares quanto aos meios de reparação internos contribui para uma reavaliação da questão mais ampla da interação entre o direito internacional e o direito interno no âmbito da proteção dos direitos humanos.

Neste âmbito de proteção, a visão clássica do requisito formal do esgotamento - pelos indivíduos reclamantes - dos recursos de direito interno para a instituição de procedimento contencioso internacional perde terreno para uma nova concepção voltada ao elemento da reparação propriamente dita. Apercebe-se então que a regra do esgotamento, na proteção dos direitos humanos, só pode ser considerada adequadamente em conexão com a obrigação correspondente dos Estados de prover recursos internos eficazes; a ênfase passa a recair na tendência de aprimoramento dos instrumentos e mecanismos nacionais de proteção judicial. Esta mudança de ênfase atribui maior responsabilidade aos tribunais internos (judiciais e administrativos), convocando-os a exercer atualmente um papel mais ativo - se não criativo - do que no passado na implementação das normas internacionais de proteção. Se, por um lado, isto pode a curto prazo revelar ou expor suas insuficiências ou deficiências no exercício desta função "ampliada" de administração da justiça, por outro lado isto pode, a médio e longo prazos, acarretar conseqüências positivas. Uma primeira é, como já assinalado, o aprimoramento da administração interna da justiça; uma segunda é uma maior aproximação entre os Estados, já não pela predominância clássica dos contatos entre os poderes executivos com seu apego quase instintivo ao dogma da soberania exclusiva, mas também pelos contatos internacionais dos poderes judiciários, beneficiando-se assim do conhecimento mútuo das realidades jurídicas internas dos Estados; e uma terceira é a atuação coordenada dos tribunais internos sob os tratados de direitos humanos, em matérias por estes regidas, a despeito das variações nos distintos ordenamentos jurídicos internos, propiciando um certo grau de uniformidade na aplicação das normas dos referidos tratados.

Dada a estrutura descentralizada do ordenamento jurídico internacional, não é de surpreender que, ao menos no âmbito da proteção internacional dos direitos humanos, as atenções se voltem crescentemente à função reservada aos tribunais nacionais na implementação das normas internacionais. A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, por exemplo, impõe aos Estados Partes o dever de "garantir a independência dos tribunais" e de propiciar o estabelecimento e aperfeiçoamento de "instituições nacionais apropriadas" de promoção e proteção dos direitos humanos nela garantidos (artigo 26). Ademais, os tratados de direitos humanos regulamentam hoje uma área que, no passado, era tida como tradicionalmente reservada ao direito constitucional, a dos direitos fundamentais dos cidadãos vis-à-vis o poder público. Com a "internacionalização" da proteção dos direitos humanos, viram-se os Estados na obrigação adicional de equipar-se devidamente para dar efeito aos tratados, particularmente os de direitos humanos que requerem medidas a nível nacional para sua implementação (e.g., o dever de prover recursos internos eficazes). Tais medidas (legislativas ou administrativas) são de fundamental importância, porquanto, segundo o princípio consagrado da responsabilidade internacional, nenhum Estado pode invocar dificuldades ou deficiências de direito interno como desculpa para evadir suas obrigações internacionais.

O dever de provimento pelos Estados Partes de recursos internos eficazes, imposto pelos tratados de direitos humanos, constitui o necessário fundamento no direito interno do dever correspondente dos indivíduos reclamantes de fazer uso de tais recursos antes de levar o caso aos órgãos internacionais. Com efeito, é precisamente porque os tratados de direitos humanos impõem aos Estados Partes o dever de assegurar às supostas vítimas recursos eficazes perante as instâncias nacionais contra violações de seus direitos reconhecidos (nos tratados ou no direito interno) (e.g., Pacto de Direitos Civis e Políticos, artigo 2(3)(a); Convenção das Nações Unidas contra a Tortura, artigo 14; Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, artigo VI; Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 25(1); Convenção Européia de Direitos Humanos, artigo 13; Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, artigo 7), que, reversamente, requerem de todo reclamante o prévio esgotamento dos recursos de direito interno como condição de admissibilidade de suas petições a nível internacional (e.g., [primeiro] Protocolo Facultativo Relativo ao Pacto de Direitos Civis e Políticos, artigo 5(2)(b); Convenção das Nações Unidas contra a Tortura, artigo 22(5)(b); Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, artigo XIV(7)(a); Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 46(1)(a); Convenção Européia de Direitos Humanos, artigos 26 e 27(3); Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, artigo 56(5) e (6)).

 

VI. A Função dos Órgãos e Procedimentos do Direito Público Interno.

Há tratados de direitos humanos que vão mais além, prevendo inclusive o compromisso dos Estados Partes de "desenvolver as possibilidades de recurso judicial" (e.g., Pacto de Direitos Civis e Políticos, artigo 2(3) (b); Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 25(2) (b)). Os tratados supracitados confiam assim a proteção dos direitos humanos também aos órgãos e procedimentos do direito público interno e à legislação constitucional e ordinária. A Convenção das Nações Unidas contra a Tortura, por exemplo, determina que os Estados Partes assegurarão às vítimas (ou seus dependentes), o direito à reparação e a uma indenização "justa e adequada", incluídos os meios necessários para a "mais completa reabilitação possível" (artigo 14). Também a Convenção Interamericana contra a Tortura prevê a adoção de medidas efetivas de direito interno (artigos 6-7 e 9) para prevenir e punir a tortura. A seu turno, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial consagra um elenco significativo de medidas exigidas dos Estados Partes, a engajarem não só os tribunais nacionais como também os demais órgãos do poder público; a Convenção prevê, e.g., a revisão de políticas governamentais (artigo II (1) (c)), a adoção de medidas legislativas, judiciais, administrativas ou outras (artigo II (1) (d) e (2) e artigos IV e IX) e de medidas educativas (artigo VIII), para a realização de seu objeto e propósito. A adoção de tais medidas, legislativas, judiciais, administrativas ou outras, é igualmente prevista pela Convenção sobre a Eliminação e a Punição do Crime do Apartheid (artigos 4 e 7).

Outros exemplos podem ser destacados. A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, e.g., encontra-se permeada de inúmeros compromissos de adoção de medidas diversas pelos Estados Partes (artigos 3-8, 10-13, 14(2), 16 e 18) para a realização de seu objeto e propósito. Pelo artigo 2(a), os Estados Partes se comprometem inclusive a consagrar em suas Constituições nacionais ou em outra legislação apropriada o princípio da igualdade do homem e da mulher e assegurar por lei outros meios apropriados à "realização prática" desse princípio; comprometem-se a adotar todas as medidas adequadas (legislativas e outras), inclusive as sanções cabíveis, e a modificação ou derrogação de leis, regulamentos, usos e práticas, para por fim à discriminação contra a mulher (artigo 2(b), (f) e (g)); comprometem-se, ademais, a assegurar, por meio dos tribunais nacionais e outras instituições públicas, a proteção jurídica efetiva da mulher (contra todo ato de discriminação) em base de igualdade com o homem. Ao final de um elenco longo e circunstanciado de medidas a serem tomadas pelos Estados Partes a nível do direito interno, o artigo 24, como que para evitar qualquer omissão nesse sentido, dispõe em suma sobre o compromisso dos Estados Partes de "adotar todas as medidas necessárias em âmbito nacional para alcançar a plena realização" dos direitos reconhecidos na Convenção. Igual compromisso é assumido pelos Estados Partes na Convenção sobre os Direitos da Criança (artigos 4, 19, 33 e 39).

Os Estados Partes em tratados de direitos humanos encontram-se, em suma, obrigados a organizar o seu ordenamento jurídico interno de modo que as supostas vítimas de violações dos direitos neles consagrados disponham de um recurso eficaz perante as instâncias nacionais. Esta obrigação adicional opera como uma salvaguarda contra eventuais denegações de justiça, ou atrasos indevidos ou outras irregularidades processuais na administração da justiça. Com isto ao menos ficam impedidos os governos dos Estados Partes de obstruir ações ante os tribunais nacionais (no processo de esgotamento de recursos de direito interno) para obter reparação de danos resultantes de violações dos direitos consagrados nos tratados de direitos humanos. A operação dos deveres complementares de utilização dos recursos de direito interno (pelos reclamantes) e de provimento de tais recursos eficazes (pelos Estados demandados) contribui assim para uma melhor apreciação da interação entre o direito internacional e o direito interno no contexto da proteção dos direitos humanos.

 

VII. As Normas Internacionais de Proteção Diretamente 
Aplicáveis no Direito Interno
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O impacto dos tratados de direitos humanos nos ordenamentos jurídicos internos dos Estados Partes (supra) tem atraído bastante atenção nos últimos anos, e tem se notabilizado mormente em numerosos casos que acarretaram, e.g., alterações nas respectivas legislações nacionais com o propósito de harmonizá-las com os referidos tratados. Reversamente, a influência do direito interno dos Estados Partes nos sistemas dos tratados de direitos humanos tem atraído consideravelmente menos atenção. O fato de que não raro os tribunais internos são chamados a interpretar disposições dos tratados de direitos humanos no exame de casos concretos contribui em parte para explicar o impacto desses tratados no direito interno dos Estados Partes. Ao enfocar os efeitos desses tratados no direito interno dos Estados Partes, a atitude da doutrina clássica tem consistido em classificar estes últimos, de modo geral, em dois grupos, a saber: os que possibilitam dar efeito direto a disposições dos referidos tratados, tidas como self-executing ou de aplicabilidade direta, e os países cujo direito constitucional determina que, mesmo ratificados, tais tratados não se tornam ipso facto direito interno, para o que se requer legislação especial.

É esta uma determinação que tem cabido ao direito constitucional; no entanto, cuidou o direito internacional de elaborar o conceito das normas diretamente aplicáveis (self-executing) propriamente ditas, com relação a disposições de tratados passíveis de ser invocadas por um particular ante um tribunal ou juiz ("incorporação" automática), sem necessidade de um ato jurídico complementar ("transformação") para sua exigibilidade e implementação. Para que uma norma convencional possa ser autoaplicável, passou-se a considerar necessária a conjugação de duas condições, a saber, primeiro, que a norma conceda ao indivíduo um direito claramente definido e exigível ante um juiz, e segundo, que seja ela suficientemente específica para poder ser aplicada judicialmente em um caso concreto, operando per se sem necessidade de um ato legislativo ou medidas administrativas subseqüentes. A norma diretamente aplicável, em suma, consagra um direito individual, passível de pronta aplicação ou execução pelos tribunais ou juízes nacionais.

Não obstante as variações verificáveis de país a país quanto à questão mais ampla do status preciso dos tratados de direitos humanos no direito interno, por ser deixada ao critério do direito constitucional de cada Estado Parte, a aplicação das disposições convencionais - e de modo especial as consideradas self-executing - pelos tribunais internos revela ao menos o alcance da influência exercida ao longo dos anos pelos tratados de direitos humanos nos Estados Partes. No plano normativo e em perspectiva histórica, é sempre lembrada a consagração, nas Constituições modernas, de direitos anteriormente proclamados em tratados e instrumentos internacionais de direitos humanos, particularmente a partir da Declaração Universal de 1948. Muito significativamente, os resultados concretos obtidos nas últimas décadas sob os tratados e instrumentos de direitos humanos demonstram que não há, como a rigor nunca houve, qualquer impossibilidade lógica ou jurídica de que indivíduos, seres humanos, sejam beneficiários diretos de instrumentos internacionais. A polêmica clássica entre dualistas e monistas, em seu inelutável hermetismo, parece ter-se erigido em falsas premissas, ao se ter em mente os sistemas contemporâneos de proteção dos direitos humanos.

A par da função "internacional" atribuída aos tribunais internos, as próprias características do processo legiferante que hoje conhecemos contribuem para desvencilhar-nos das amarras da polêmica irreconciliável entre monistas e dualistas. Para a liberação, nesse sentido, do espírito jurídico contemporâneo, têm ademais contribuído decisivamente o reconhecimento da competência ou capacidade de agir dos órgãos de supervisão internacionais e sobretudo do direito de petição individual ou da capacidade processual internacional dos indivíduos sob os tratados e instrumentos de direitos humanos, os quais têm tornado a controvérsia clássica entre dualistas e monistas ociosa, supérflua, dispensável, e sem resultados práticos ao menos no tocante à operação de tais tratados e instrumentos de proteção. Há que ter em mente que, em uma dimensão mais ampla, os reconhecimentos do direito de petição individual e da competência dos órgãos de supervisão internacionais têm-se dado em meio à conscientização da identidade de propósito primordial do direito internacional e do direito público interno contemporâneos quanto às necessidades de proteção do ser humano.

Mesmo nos Estados que efetivamente "incorporaram" os tratados de direitos humanos no ordenamento jurídico interno persiste uma certa diversidade quanto ao status ou posição exata desses tratados na hierarquia legal interna, - o que era de se esperar, por se tratar de soluções de direito interno. Sabe-se, por exemplo, que, no início dos anos noventa, dos 22 Estados ratificantes da Convenção Européia de Direitos Humanos 14 já haviam assegurado a esta o status de direito interno. Nem por isso se pode deduzir que nos 14 Estados que incorporaram a Convenção ao ordenamento jurídico interno os direitos humanos são necessariamente melhor protegidos como conseqüência direta daquela providência: a "incorporação" - embora meritória - não reflete automaticamente a realidade da observância dos direitos humanos em um país e o grau da proteção jurídica a eles estendida, sendo medidas mais significativas e de maior alcance prático a aceitação do direito de petição individual e da jurisdição compulsória dos órgãos judiciais de proteção internacional. Assim, o fato de que no início desta década todos os 22 Estados Partes na Convenção Européia haviam aceito o direito de petição individual sob a Convenção (artigo 25) e todos os Estados Partes (com a única exceção da Turquia) haviam aceito a jurisdição compulsória da Corte Européia de Direitos Humanos (artigo 46 da Convenção) - independentemente do status da Convenção no direito interno de cada país - revela a seriedade e maturidade dos Estados Partes e explica em grande parte o êxito daquele sistema regional de proteção dos direitos humanos.

Os tratados de direitos humanos beneficiam diretamente os indivíduos e grupos protegidos. Cobrem relações (dos indivíduos frente ao poder público) cuja regulamentação era outrora o apanágio do direito constitucional. E diversas das Constituições modernas, a seu turno, remetem expressamente aos direitos consagrados nos tratados de direitos humanos (cf. supra), a um tempo revelando nova postura ante a questão clássica da hierarquia normativa dos tratados internacionais vigentes assim como concedendo um tratamento especial ou diferenciado também no plano do direito interno aos direitos e garantias individuais internacionalmente consagrados (cf. supra). Regendo a mesma gama de relações, dos indivíduos ante o Estado, o direito internacional e o direito interno apontam aqui na mesma direção, coincidindo no propósito básico e último de ambos da proteção do ser humano.

 

VIII. A Primazia da Norma Mais Favorável às Vítimas.

Não mais há pretensão de primazia de um ou outro, como na polêmica clássica e superada entre monistas e dualistas. No presente domínio de proteção, a primazia é da norma mais favorável às vítimas, seja ela norma de direito internacional ou de direito interno. Este e aquele aqui interagem em benefício dos seres protegidos. É a solução expressamente consagrada em diversos tratados de direitos humanos, da maior relevância por suas implicações práticas. Merecedora da maior atenção, tem curiosamente passado quase despercebida na doutrina contemporânea. Concentremo-nos, pois, no que dispõem os tratados de direitos humanos a respeito.

No plano global, o Pacto de Direitos Civis e Políticos proíbe expressamente qualquer restrição ou derrogação aos direitos humanos reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado Parte, em virtude de outras convenções, ou de leis, regulamentos ou costumes, "sob pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau" (artigo 5(2)). Tanto a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (artigo 5) quanto a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas (artigo 5), prevêem igualmente que nenhuma de suas disposições prejudicará os outros direitos e vantagens concedidos respectivamente aos refugiados e apátridas, independentemente delas. A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher adverte que nada do disposto nela prejudicará "qualquer disposição que seja mais propícia à obtenção da igualdade entre homens e mulheres e que esteja contida: a) na legislação de um Estado Parte; ou b) em qualquer outra convenção, tratado ou acordo internacional vigente nesse Estado" (artigo 23). Na mesma linha de pensamento, a Convenção sobre os Direitos da Criança também adverte que nada do estipulado nela afetará "disposições que sejam mais convenientes para a realização dos direitos da criança e que podem constar: a) das leis de um Estado Parte; b) das normas de direito internacional vigentes para esse Estado" (artigo 41).

No plano regional, a mesma ressalva se encontra na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que proíbe a interpretação de qualquer de suas disposições no sentido de limitar o gozo e exercício de quaisquer direitos que "possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados Partes ou de acordo com outra convenção em que seja Parte um dos referidos Estados" (artigo 29(b)); proíbe, ademais, a interpretação de qualquer de suas disposições no sentido de excluir ou limitar "o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza" (artigo 29(d)). Da mesma forma, o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador) determina que "não se poderá restringir ou limitar qualquer dos direitos reconhecidos ou vigentes em um Estado em virtude de sua legislação interna ou de convenções internacionais, sob pretexto de que este Protocolo não os reconhece ou os reconhece em menor grau" (artigo 4).

No continente americano assim como no continente europeu a solução é a mesma. Estipula a Convenção Européia de Direitos Humanos que nenhuma de suas disposições será interpretada no sentido de limitar ou prejudicar os direitos humanos reconhecidos de acordo com as leis de qualquer Estado Parte ou com qualquer outra convenção em que este for Parte (artigo 60). A Convenção Européia para Prevenção da Tortura e Tratamento ou Punição Desumano ou Degradante esclarece que não prejudicará ela "os dispositivos do direito interno ou de qualquer acordo internacional que forneçam maior proteção às pessoas privadas de sua liberdade" (artigo 17(1)). A Carta Social Européia, a seu turno, determina igualmente que suas disposições não prejudicarão as de direito interno nem as de tratados que "sejam mais favoráveis às pessoas protegidas" (artigo 32).

O critério da primazia da norma mais favorável às pessoas protegidas, consagrado expressamente em tantos tratados de direitos humanos, contribui em primeiro lugar para reduzir ou minimizar consideravelmente as pretensas possibilidades de "conflitos" entre instrumentos legais em seus aspectos normativos. Contribui, em segundo lugar, para obter maior coordenação entre tais instrumentos, em dimensão tanto vertical (tratados e instrumentos de direito interno) quanto horizontal (dois ou mais tratados). No tocante a esta última, o critério da primazia da disposição mais favorável às vítimas já em fins da década de cinqüenta era aplicado pela Comissão Européia de Direitos Humanos (petição nº 235/56, de 1958-1959), e recebeu reconhecimento judicial da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Parecer de 1985 sobre a Associação Obrigatória de Jornalistas. Contribui, em terceiro lugar, como ressaltamos em nosso curso ministrado na Academia de Direito Internacional da Haia em 1987, para demonstrar que a tendência e o propósito da coexistência de distintos instrumentos jurídicos - garantindo os mesmos direitos - são no sentido de ampliar e fortalecer a proteção. O que importa em última análise é o grau de eficácia da proteção, e por conseguinte há de impor-se a norma que no caso concreto melhor proteja, seja ela de direito internacional ou de direito interno.

 

IX. Conclusões.

Nas últimas décadas, a operação regular dos tratados e instrumentos internacionais de direitos humanos tem demonstrado sobejamente que podem beneficiar diretamente os indivíduos. Na verdade, é este o seu propósito último; ao criarem obrigações para os Estados vis-à-vis os seres humanos sob sua jurisdição, as normas dos tratados de direitos humanos aplicam-se não só na ação conjunta (exercício de garantia coletiva) dos Estados Partes na realização do propósito comum de proteção, mas também e sobretudo no âmbito do ordenamento interno de cada um deles, nas relações entre o poder público e os indivíduos. Diversas Constituições contemporâneas, referindo-se expressamente aos tratados de direitos humanos, concedem um tratamento especial ou diferenciado também no plano do direito interno aos direitos humanos internacionalmente consagrados. Os tratados de direitos humanos indicam vias de compatibilização dos dispositivos convencionais e dos de direito interno de modo a prevenir conflitos entre as jurisdições internacional e nacional no presente domínio de proteção; impõem aos Estados Partes o dever de provimento de recursos de direito interno eficazes, e por vezes o compromisso de desenvolvimento das "possibilidades de recurso judicial"; prevêem a adoção pelos Estados Partes de medidas legislativas, judiciais, administrativas ou outras, para a realização de seu objeto e propósito. Em suma, contam com o concurso dos órgãos e procedimentos do direito público interno. Há, assim, uma interpenetração entre as jurisdições internacional e nacional no âmbito de proteção do ser humano.

O cumprimento das obrigações internacionais de proteção requer o concurso dos órgãos internos dos Estados, e estes são chamados a aplicar as normas internacionais. É este o traço distintivo e talvez o mais marcante dos tratados de direitos humanos, dotados de especificidade própria e a requererem uma interpretação própria guiada pelos valores comuns superiores que abrigam, diferentemente dos tratados clássicos que se limitam a regulamentar os interesses recíprocos entre as Partes. Com a interação entre o direito internacional e o direito interno no presente contexto, os grandes beneficiários são as pessoas protegidas. Em um sistema integrado como o da proteção dos direitos humanos, os atos internos dos Estados estão sujeitos à supervisão dos órgãos internacionais de proteção quando, no exame dos casos concretos, se trata de verificar a sua conformidade com as obrigações internacionais dos Estados em matéria de direitos humanos. As normas internacionais que consagram e definem claramente um direito individual, passível de vindicação ante um tribunal ou juiz nacional, são diretamente aplicáveis. Além disso, os próprios tratados de direitos humanos significativamente consagram o critério da primazia da norma mais favorável às vítimas, seja ela norma de direito internacional ou de direito interno.

Afastada, no presente domínio, a compartimentalização, teórica e estática da doutrina clássica, entre o direito internacional e o direito interno, em nossos dias, com a interação dinâmica entre um e outro neste âmbito de proteção, é o próprio Direito que se enriquece - e se justifica, - na medida em que cumpre a sua missão última de fazer justiça. No presente contexto, o direito internacional e o direito interno interagem e se auxiliam mutuamente no processo de expansão e fortalecimento do direito de proteção do ser humano. Nestes anos derradeiros a conduzir-nos ao final do século, é alentador constatar que o direito internacional e o direito interno caminham juntos e apontam na mesma direção, coincidindo no propósito básico e último de ambos da proteção do ser humano.


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