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Positivismo jurídico e filosofia da praxis: um diálogo possível entre Hans Kelsen e Karl Marx

Positivismo jurídico e filosofia da praxis: um diálogo possível entre Hans Kelsen e Karl Marx

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Uma análise crítica da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen em contraposição à concepção de direito presente em A Ideologia Alemã, de Karl Marx, permite vislumbrar uma possibilidade de diálogo entre ideias aparentemente antagônicas e inconciliáveis.

O positivismo jurídico, na sua concepção normativa, isto é, a visão que reduz o objeto da ciência jurídica apenas ao estudo das normas jurídicas, rejeita quaisquer enfoques que levem em conta conceitos de justiça, que estariam no âmbito da filosofia do direito. O mesmo se dá em relação às indagações sobre valores, interesses ou outras causas que estejam na origem da produção ou aplicação do direito, pois tais questões devem ser tratadas pela sociologia do direito.

Assim como o positivismo de Comte, o positivismo jurídico sustenta a necessidade da neutralidade axiológica da ciência. Para o positivismo, a ciência social deve ser neutra, objetiva, isenta de juízos de valor, ideologias ou visões de mundo.  Para o positivismo jurídico, a teoria pura do Direito deve ser objetiva, exata, livre de ideologias, de valores, da política. A própria justiça seria um problema colocado fora da órbita da ciência do direito.

O positivismo jurídico presente na obra de Kelsen (1881-1973), reconhecidamente o mais importante teórico desta corrente jusfilosófica[1], principalmente dois de seus livros, a “Teoria Pura do Direito” e a “Teoria Geral do Direito e do Estado”, encontra-se uma defesa extremamente elaborada e requintada da tese de que é possível o estabelecimento de uma ciência jurídica nos moldes das ciências naturais, marcada pela neutralidade axiológica, que afaste do processo de investigação toda e qualquer influência de valores acerca do objeto de conhecimento.

Mais do que isto, quando sustenta a neutralidade axiológica como atributo essencial de uma teoria do direito que almeja alcançar um status de cientificidade, Kelsen aponta a norma jurídica como seu único objeto de estudos, fazendo um corte epistemológico no ambiente das chamadas ciências sociais e delimitando um campo de conhecimento próprio, embora não exclusivo, para a ciência jurídica que almeja lapidar.

Para alcançar tal propósito, considera indispensável que a ciência jurídica exiba algumas das características das ciências naturais: A separação entre sujeito e objeto, de tal modo que os valores de um não contaminassem o outro, a precisa delimitação do objeto, e um mecanismo que assegurasse a repetição de resultados encontrados, tal como nas ciências naturais, eram objetivos que se impunham. É o que se vê logo no prefácio à primeira edição da “Teoria Pura do Direito”, de 1934:

Há mais de duas décadas que empreendi desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos de ciência natural, uma teoria jurídica consciente da sua especificidade porque consciente da legalidade específica do seu objeto. Logo, desde o começo foi meu intento elevar a Jurisprudência, que – aberta ou veladamente – se esgotava quase por completo em raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do espírito. Importava explicar, não as suas tendências endereçadas à formação do Direito, e aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de toda a ciência: objetividade e exatidão. [2]

Para Kelsen a pureza da ciência jurídica significa que ela deve se ocupar de conhecer apenas o seu próprio objeto, o direito positivo, e excluir de seu conhecimento tudo o que não pertença ao seu objeto:

Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isso dizer que ela pretende libertar a Ciência Jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Este é o seu princípio metodológico fundamental. [3]

No prefácio à segunda edição, datado de abril de 1960, embora confesse que o texto original tenha sofrido alterações, naturais após o decurso de mais de um quarto de século, Kelsen rebate as críticas dirigidas à sua obra e insiste na objetividade da ciência do direito, que deve se limitar ao estudo do direito positivo:

Agora, como antes, uma ciência jurídica objetiva que se limita a descrever o seu objeto esbarra com a pertinaz oposição de todos aqueles que, desprezando os limites entre ciência e política, prescrevem ao Direito, em nome daquela, um determinado conteúdo, quer dizer, crêem poder definir um Direito justo e, consequentemente, um critério de valor para o Direito positivo. É especialmente a renascida metafísica do Direto Natural que, com esta pretensão, sai a opor-se ao positivismo jurídico. O problema da Justiça, enquanto problema valorativo, situa-se fora de uma teoria do Direito que se limita à análise do Direito positivo como sendo a realidade jurídica. [...] [4]

Na Teoria Pura do Direito Kelsen delimita com precisão o seu objeto de estudo, o Direito positivo, isto é, o Direito posto pelo órgão estatal detentor de competência e poder para impor um ordenamento jurídico e obrigar à sua obediência de forma coercitiva.  O objeto da Ciência Jurídica restringe-se, portanto, à norma jurídica.

A norma jurídica vista como um esquema de interpretação dos atos jurídicos, o que significa interpretar o fato pelo seu significado objetivo, isto é, pelo seu sentido jurídico específico, tal como definido pela prescrição normativa, e não pelo significado mesmo do fato. A norma atua, portanto, no campo do dever-ser, onde se fixam as condutas desejadas, e não no terreno do ser, onde se estabelecem os fatos concretos.

Na verdade, a norma é um dever-ser e o ato de vontade de que ela constitui o sentido é um ser, donde se constata que até mesmo o fato que é regulado pela norma jurídica, situando-se no mundo do ser, fica excluído do campo de interesse da Ciência Jurídica, integrando o seu objeto apenas na condição de dever-ser, como uma conduta prescrita pela norma jurídica, como ordenada, proibida ou permitida.

É fácil perceber que o Positivismo Jurídico não estimula qualquer preocupação com o conhecimento empírico, ou outras maneiras de examinar o fenômeno jurídico.  Ao contrário, promove uma verdadeira inversão de mundos, ao propor a norma jurídica, o dever-ser, como objeto da Ciência Jurídica, indo além até mesmo da proposta de Durkheim, que defende a idéia de que os fatos, o ser, é que devem ser tratados como coisas, como condição para a realização da ciência social. [5]

Kelsen rejeita, como objeto de interesse da ciência jurídica, até mesmo o ato de vontade e de poder que dá origem a um ordenamento jurídico e o impõe coercitivamente a todos, ato situado no mundo subjetivo, no plano do que chama de ser, tratando de inserir este ato no mundo objetivo, no âmbito do dever-ser, e afirmando a existência de uma norma fundamental pressuposta sobre a qual, ou abaixo da qual, se estabelece o ordenamento jurídico.

O ato criador da Constituição, por seu turno, tem sentido normativo, não só subjetiva como objetivamente, desde que se pressuponha que nos devemos conduzir como o autor da Constituição preceitua. [...] Um tal pressuposto, fundante da validade objetiva, será designado aqui por norma fundamental (Grundnorm). Portanto, não é do ser fático de um ato de vontade dirigido à conduta de outrem, mas é ainda e apenas de uma norma de dever-ser que deflui a validade – sem sentido objetivo – da norma segundo a qual esse outrem se deve conduzir em harmonia com o sentido subjetivo do ato de vontade. [6]

Ao propor a existência de uma norma fundamental pressuposta, Kelsen faz um esforço para delimitar o objeto de estudo da Ciência Jurídica ao campo do Direito Positivo, estabelecendo o ordenamento jurídico como um sistema fechado, com respostas para todos os questionamentos que digam respeito à Ciência Jurídica.

Com isto, estaria preservada a sua proposta de uma ciência pura do Direito, que se limite ao estudo do ordenamento jurídico, tomado como um sistema hermeticamente fechado sobre si mesmo. Ou, nas palavras de Kelsen:

Na afirmação evidente de que o objeto da ciência jurídica é o Direito, está contida a afirmação – menos evidente – de que são as normas jurídicas o objeto da ciência jurídica, e a conduta humana só o é na medida em que é determinada nas normas jurídicas como pressuposto ou conseqüência, ou – por outras palavras – na medida em que constitui conteúdo de normas jurídicas. Pelo que respeita a questão de saber se as relações inter-humanas são objeto da ciência jurídica, importa dizer que elas também só são objeto de um conhecimento jurídico enquanto relações jurídicas, isto é, como relações que são constituídas através de normas jurídicas. [7]

A adoção deste paradigma epistemológico como fundamento do método dogmático de ensino do Direito, explicaria a utilização dos códigos e das leis como fontes quase que exclusivas do Direito, acrescentando-se apenas a jurisprudência dos tribunais e os comentários dos doutrinadores como possibilidades de abordagem do Direito.

Em sentido diametralmente oposto à “Teoria Pura do Direito” e ao Positivismo Jurídico, a “Filosofia da Práxis” indica outro caminho para a compreensão do fenômeno jurídico, apontando que é precisamente no mundo real, na materialidade da existência histórica do homem, onde nascem todas as formas de elaboração intelectual que procuram explicar ou enquadrar a vida real a partir das construções teóricas.

A chamada “Filosofia da Práxis” sustenta que é a base material da sociedade que determina em última instância os desenvolvimentos teóricos, as ideologias, as concepções de vida e o próprio ordenamento jurídico. A compreensão dessas manifestações não pode se dar, portanto, a partir delas mesmas, sendo necessário buscar nas manifestações concretas da existência humana os determinantes e condicionantes da organização social e de suas representações, inclusive o Direito.

E é justamente a base material da sociedade, marcada pela divisão social do trabalho, que separa o trabalho manual do intelectual, característica do modo de produção capitalista, que possibilita a elaboração de toda forma de manifestações intelectuais dissociadas da realidade e que têm a pretensão de moldar essa realidade, como se verifica com as chamadas “teorias puras”.

Segundo Marx, desde o momento em que o Homem deixou o estado de natureza e passou a diferenciar-se dos outros animais, ao passar a produzir os seus próprios meios de subsistência, isto é, ao se tornar capaz de produzir e reproduzir a sua própria existência teve lugar a divisão social do trabalho. A divisão do trabalho possui, portanto, um papel de destaque na compreensão do processo de desenvolvimento histórico da humanidade. [8]

A divisão do trabalho aumenta as possibilidades de produção da sociedade em razão de uma melhor e mais hábil aplicação das forças humanas, tomadas em seu conjunto, isto é, a sociedade como um todo passa a ser capaz de executar um complexo conjunto de funções que não seria possível ao homem isolado desempenhar, limitando, em conseqüência, o desenvolvimento das forças produtivas.

A divisão do trabalho que atribui a cada operário dentro de uma fábrica uma pequena parcela do trabalho necessário à produção da mercadoria e a utilização das máquinas condicionam a produção e são os fundamentos das grandes manufaturas. Estão, portanto, na base do mecanismo de funcionamento do sistema de produção capitalista. Sem divisão do trabalho, não há mercadoria, não há mercado.  A ampliação do mercado significa uma maior divisão do trabalho. Ou, como dizem Marx e Engels:

Reconhece-se da maneira mais patente o grau de desenvolvimento alcançado pelas forças produtivas de uma nação pelo grau de desenvolvimento alcançado pela divisão do trabalho. Na medida em que esta divisão do trabalho não é mera extensão quantitativa das forças produtivas já conhecidas anteriormente (o aproveitamento de terras incultas, por exemplo), qualquer força produtiva nova traz como conseqüência um novo aperfeiçoamento da divisão do trabalho. [9]

Por outro lado, o aprofundamento da divisão do trabalho restringe as possibilidades de desenvolvimento do homem tomado individualmente, e impossibilita o domínio de um conjunto de habilidades ou conhecimentos que lhe permitiriam apropriar-se dos meios de produção e do resultado de seu trabalho – a mercadoria. A divisão do trabalho aliada à utilização de máquinas reduz a atividade humana a um movimento mecânico, restando a cada homem uma quantidade muito pequena de operações.  O contrário, isto é, a inexistência de uma divisão do trabalho em grau elevado de desenvolvimento, implicaria na concentração de todas as habilidades necessárias à produção da vida em cada indivíduo e inibiria a formação e o desenvolvimento do mercado.

Ao operário que trabalha na linha de montagem de uma grande fábrica resta apenas o trabalho manual.  Ele não se beneficia da expansão da troca, isto é, do mercado, porque não domina nem compreende todas as etapas do processo produção e o seu resultado final - a mercadoria, conseqüência da divisão do trabalho que mutila o homem e o impede de desenvolver plenamente suas potencialidades. A atividade humana fica reduzida a um movimento mecânico, restando a cada operário um pequeno número de operações no interior das manufaturas do início da revolução industrial ou das grandes linhas de produção das modernas fábricas que marcaram o progresso tecnológico do Século XX.

A divisão do trabalho é, portanto, responsável pela dupla alienação do trabalhador: a primeira se verifica pelo estranhamento do homem em relação ao modo de produção capitalista, do qual conhece uma pequena etapa; a segunda se dá pelo afastamento do homem do produto final de seu trabalho, a mercadoria.

Em sua obra “Manuscritos Econômico-Filosóficos”, Marx trata, pela primeira vez, da alienação, ou do estranhamento, como preferem alguns teóricos, como processo econômico que tira do homem o fruto de sua produção e o torna estranho a si mesmo e ao ambiente em que vive:

O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas (Sachenwelt) aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens (Menschenwelt). O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral. [10]

Em “A Ideologia Alemã”, Marx e Engels apontam o fato de que a substantivação das relações sociais, que é inevitável dentro da divisão do trabalho, estabelece uma diferença entre a vida pessoal de cada individuo e a vida submetida a um determinado ramo de trabalho. A “vida profissional”, assim como a “vida política”, se torna a expressão alienada e exteriorizada da atividade humana enquanto atividade genérica real ou atividade do homem enquanto ser genérico. [11]

Alienado de seu meio, o homem se torna mais propenso a aceitar as ideologias que lhe são apresentadas como verdades absolutas, admitindo como natural que o Direito emane de um poder soberano supostamente acima dos conflitos e interesses das classes sociais e que a lei, como manifestação deste poder soberano é a única e verdadeira fonte do Direito.

Todavia, a divisão do trabalho realmente atinge seu ponto de culminância com a divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual. Em um dado momento, o último passa a ser função privilegiada de certo segmento da classe dominante ou a serviço da dominação, que se dedica a pensar e a elaborar a ideologia dominante. A tarefa exclusiva de pensar ganha prestígio, enquanto que as tarefas meramente manuais ou mesmo técnicas são menosprezadas e relegadas aos membros das classes trabalhadoras.

Tem lugar então uma verdadeira reificação da consciência. A partir dela não mais é preciso recorrer à realidade, ao mundo sensível, para encontrar a verdade. Uma determinada ideologia passa a ser tomada como verdade absoluta e incontestável, sendo infrutífera toda tentativa de colocá-la em confronto com a verdade que emana do mundo real, da prática dos seres humanos reais. É essa transformação da consciência em ser que torna possível a elaboração das teorias “puras”, totalmente despregadas do mundo real onde as coisas reais acontecem. Conforme Marx e Engels:

A divisão do trabalho só se torna efetivamente divisão do trabalho a partir do momento em que se opera uma divisão entre o trabalho material e o trabalho intelectual. A partir desse momento, a consciência pode de fato imaginar que é algo mais do que a consciência da prática existente, que ela representa algo, sem representar algo real. A partir desse momento, a consciência está em condições de se emancipar do mundo e de passar à formação da teoria “pura”, teologia, filosofia, moral, etc.[...]. [12]

A divisão do trabalho leva à separação entre o interesse particular e o interesse comum. Enquanto o interesse individual leva ao conflito, o interesse comum se manifesta no Estado que, dissociado dos reais interesses particulares e coletivos, surge como solução apaziguadora que expressa a idéia de comunidade. Mas é uma comunidade ilusória, pois o Estado, por baixo das aparências ideológicas que o revestem, vincula-se à classe dominante, que através dele exerce sua dominação.

A fim de evitar que as contradições de classe levem à dissolução da sociedade, esta deve se condensar no Estado e se apresentar enquanto Estado, dando a ilusão de que é um interesse comum que está acima das contradições de classe e que consegue encobrir a dominação de uma classe sobre as outras. A força multiplicada decorrente da cooperação entre os homens gera um poder social que adquire a forma do Estado e aparece a estes homens não como poder deles próprios, porém como poder alienado, à margem dos homens e fora do alcance do seu controle.

Assim como o Estado é o Estado da classe dominante, as idéias da classe dominante são as idéias dominantes em cada época. A classe que exerce o poder material dominante na sociedade é, ao mesmo tempo, seu poder espiritual dominante. Todavia, o liame entre as idéias dominantes e a classe dominante pouco a pouco se torna imperceptível. As idéias dominantes assumem a aparência de que têm validade para toda a sociedade, inclusive para as classes subordinadas, assumindo um caráter universalizante e abstrato, desvendado por Marx e Engels, do modo seguinte:

[...] os pensamentos dominantes serão cada vez mais abstratos, ou seja, assumirão cada vez mais a forma de universalidade. Com efeito, cada nova classe que toma o lugar daquela que dominava antes dela é obrigada, mesmo que seja apenas para atingir seus fins, a representar o seu interesse como sendo o interesse comum de todos os membros da sociedade ou, para exprimir as coisas no plano das idéias: essa classe é obrigada a dar aos seus pensamentos a forma de universalidade e representá-los como sendo os únicos razoáveis, os únicos universalmente válidos. [13]

Com isto cria-se a ilusão de que a história de cada época não seria o resultado dos interesses materiais da classe dominante, mas de idéias abstratas comuns a todos os integrantes da sociedade, como as idéias de honra e lealdade (na sociedade aristocrática) ou as de liberdade e igualdade (na sociedade burguesa). Tais pensamentos dominantes representam os interesses da classe dominante num dado momento histórico e que tomam a aparência de universalidade, de abstração, ganham forma e materialidade no Estado e no Direito, onde assumem a representação da vontade livre da sociedade:

Com a emancipação da propriedade privada em relação à comunidade, o Estado adquiriu uma existência particular ao lado da sociedade civil e fora dela; mas este Estado não é outra coisa senão a forma de organização que os burgueses dão a si mesmos por necessidade, para garantir reciprocamente sua propriedade e os seus interesses, tanto externa quanto internamente. [14]

Na mesma linha de raciocínio, enquanto o Estado se torna o meio que a classe dominante utiliza para fazer prevalecer seus interesses comuns, o Direito, enquanto expressão acabada desses interesses torna-se simplesmente o que está contido na Lei previamente elaborada pelos mecanismos de Estado:

Sendo o Estado, portanto, a forma pela qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de uma época, conclui-se que todas as instituições comuns passam pela mediação do Estado e recebem uma forma política. Daí a ilusão de que a lei repousa na vontade, e, mais ainda, em uma vontade livre, destacada da sua base concreta. Da mesma maneira, o Direito por sua vez reduz-se à lei. [15]

Competindo à Lei representar o bem comum, o interesse da sociedade civil que a elabora, isto é, o interesse da classe dominante, não resta espaço nenhum para a aplicação do Direito, que não seja a simples e mera interpretação do que diz a Lei. Em outras palavras, o objeto de estudo da Ciência Pura do Direito, como quer Kelsen, reduz-se ao simples texto da lei, sem nenhuma preocupação com a realidade.

Essa ilusão jurídica, que reduz o Direito à simples vontade, leva fatalmente, com o ulterior desenvolvimento das relações de propriedade, a que alguém possa ter um título jurídico de uma coisa sem possuir realmente essa coisa.[...] Essa mesma ilusão dos juristas explica que, para eles e para todos os códigos jurídicos, é meramente casual que, por exemplo, os indivíduos entrem em relações entre si, por contrato, e que, a seus olhos, relações desse gênero passem como sendo daquelas que podem subscrever ou não, segundo sua vontade, e cujo conteúdo repousa inteiramente na vontade arbitrária e individual das partes contratantes. Cada vez que o desenvolvimento da indústria e do comércio criou novas formas de troca (por exemplo, companhias de seguros e outras), o Direito foi regularmente obrigado a integrá-las nos modos de aquisição da propriedade.[16]

Isto talvez explique porque a cada novidade introduzida nos códigos, em atendimento às mudanças no mundo real dos negócios ou do mercado, modificam-se os livros didáticos, alteram-se os programas das disciplinas das Escolas de Direito, são oferecidas novas versões para obras dos juristas e as decisões judiciais ganham nova fundamentação.

Alterações ou análises que não têm como ponto de partida a realidade social que se alterou em decorrência do desenvolvimento das formas de produção ou das relações por elas engendradas, mas que se limitam ao exame da norma jurídica positivada, procurando enquadrar a ação humana à lei e não o contrário.

Agora, é preciso fazer Justiça a Kelsen, em que pese o fato de que para ele Justiça era algo que não se inseria no âmbito da sua Ciência Pura do Direito.  É preciso lembrar que nem mesmo ele excluía a importância das demais ciências sociais para a formação de um jurista, embora observando que estas áreas do conhecimento não integravam a Ciência Pura do Direito. Diz ele:

A eliminação de um problema da esfera da Teoria Pura do Direito não implica, é claro, negar legitimidade desse problema ou da ciência que dele trata. O Direito pode ser objeto de diversas ciências; a Teoria Pura do Direito nunca pretendeu ser a única ciência do Direito possível ou legítima. A sociologia do Direito e a história do Direito são outras. Elas, juntamente com a análise estrutural do Direito, são necessárias para uma compreensão completa do fenômeno complexo do Direito. [17]

Portanto, se tomada isoladamente a obra de Kelsen versando sobre o que se costuma chamar de Positivismo Jurídico, em especial, sua obra-prima “Teoria Pura do Direito”, poderia se chegar à conclusão de que existe um conflito insuperável entre a visão professada pelo Filosófo de Viena e a sustentada por Marx, principalmente na “Ideologia Alemã”.  Entretanto, um olhar mais preocupado em promover a síntese das duas posições certamente poderá vislumbrar elementos de harmonia que colocam as posições de ambos os filósofos em sintonia.

Ao sustentar a importância de outras ciências para o estudo do fenômeno jurídico, como vimos acima, Kelsen acaba admitindo que o Direito, embora possa ser estudado isoladamente por uma determinada ciência, como a Ciência Jurídica, cujo campo ele almeja delimitar, somente poderá ser entendido de modo mais completo se forem tomados em conta os mais diversos fatores condicionantes ou determinantes da produção, interpretação, aplicação e extinção da norma jurídica.

Ora, esta posição é perfeitamente compatível com o método do materialismo histórico-dialético, desenvolvido por Marx e Engels e que sustenta que é no mundo material e histórico que se deve buscar a explicação para o fenômeno do direito, o que, obviamente, não exclui o próprio estudo da norma jurídica e das formas pelas quais se dão a sua criação, aplicação e morte, seguramente, não apenas pela vontade de legisladores, juizes e advogados.

Assim, o ensino do Direito seguramente deve passar pelo adequado conhecimento da ciência jurídica, das normas, da doutrina e da jurisprudência dos tribunais. Mas isto só não basta. É fundamental que o aluno tenha contato com as outras ciências que certamente fornecerão as ferramentas necessárias, ainda que não suficientes, para que o futuro bacharel desenvolva uma visão crítica do Direito e da estrutura estatal e social com a qual terá de lidar na sua faina diária pela realização da verdadeira Justiça.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. Trad.

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, (1999, p. 15).

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003, 6a. ed., 427p.

_____________. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1998, 3ª. ed., 2ª. tir., 637p.

_____________. “O que é Justiça?” Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001, 3ª. ed., 404p.

MARX, Karl. “Manuscritos Econômico-Filosóficos”. Trad. Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2004, 1ª. ed., 175p.

MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. “A Ideologia Alemã”. Trad. Luis Cláudio de Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 2ª. ed., 3ª. tir., 2002, p. 36.

[1] Bobbio, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. 1955, p.141.

[2] Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito, (2003, p. XI).

[3] Ibidem, p. 1.

[4] Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito, Op. cit., p. XVIII.

[5] Durkheim, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, (1999, p. 15).

[6] Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito, Op. cit., p. 9.

[7] Ibidem, p. 79.

[8] Marx, Karl e Engels, Friedrich. A Ideologia Alemã. (1998), p. 10/11.

[9] Marx, Karl e Engels, Friedrich. A Ideologia Alemã. Op. cit., p. 11/12.

[10] Marx, Karl.  Manuscritos Econômico-Filosóficos. (2004), p. 80.

[11] Marx, Karl e Engels, Friedrich. A Ideologia Alemã, Op. cit.

[12] Marx, Karl e Engels, Friedrich. A Ideologia Alemã. Op. cit., p. 26).

[13] Marx, Karl e Engels, Friedrich. A Ideologia Alemã. Op. cit., p. 50.

[14] Ibidem, p. 74.

[15] Ibidem, p. 74.

[16] Marx, Karl e Engels, Friedrich. A Ideologia Alemã. Op. cit., p. 76-77.

[17] Kelsen, Hans. O que é Justiça? (2001), p. 291.


Autor

  • Lauro Teixeira Cotrim

    Bacharel em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de São Carlos (1990). Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília (2010). Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (2007). Professor de Direito Administrativo da UNICEP (2008-2010). Advogado. Procurador Federal (1992-2013).

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