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Cartão de crédito e ICMS: nada a ver

Cartão de crédito e ICMS: nada a ver

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A irreverência do título tem o intuito de provocar a classe contributiva, a ler decisão o STJ – com transito em julgado – que afastou a pretensão do fisco em excluir uma microempresa do Simples.

A irreverência do título tem o intuito de provocar a classe contributiva, a ler decisão o STJ – com transito em julgado – que afastou a pretensão do fisco em excluir uma microempresa do Simples, se utilizando apenas dos dados obtidos em operação de cruzamento de informações obtidas do Cartão de Crédito, tal qual adotado pelas Fazendas dos Estados de São Paulo (operação Cartão Vermelho) e Santa Catarina (operação de Concorrência Legal).

Nas operações, os fiscos estaduais cruzam os dados obtidos por meio das administradoras de cartões de crédito e débito, com as declaradas e fornecidas pelos contribuintes. Nos casos em que foram constatadas divergências, o contribuinte sofre forte autuação fiscal por sonegação de ICMS.

Contribuintes vêm questionando judicialmente este tipo de operação que, invariavelmente, tem provocado o advento de milhares de ações fiscais com passivo insuportável. A tese que tem obtido ressonância no judiciário, tem sido no sentido de que só pode haver a quebra de sigilo fiscal com autorização judicial expressa e após a instauração de processo administrativo. O STJ entendeu que os dados obtidos, tão só em razão da análise das informações prestadas pelos Cartões de Crédito, são impróprias para apontar eventual falta de pagamento de ICMS, tendo em vista a sua imprestabilidade a configurar qualquer ilícito, principalmente fiscal.

Segundo o Ministro Relator Herman Benjamin, a operação fiscal inverteu a lógica do levantamento do sigilo das operações financeiras. Isso porque o Fisco buscou os indícios de irregularidades antes mesmo de abrir os processos administrativos. "É patente a ilegalidade do processo administrativo e da consequente exclusão do Simples. Isso porque não se pode transformar a exceção em regra, com evidente inversão do ônus da prova: o contribuinte é tratado constantemente como investigado ou culpado, e não como inocente. O processo, inclusive administrativo, deve investigar fatos, e não os procurar, como se estivesse pescando", diz na decisão monocrática. (EDCL no Agravo em Recurso especial nr. 285.894-SP).

Para reforçar seu entendimento, o Ministro relator do STJ colaciona precedente do STF, que sufragou entendimento de que fisco não pode, por ser inconstitucional e ilegal, quebrar o sigilo fiscal sem autorização judicial. O caso foi analisado em 2010, pelo Pleno, que declarou inconstitucional o artigo 5º Lei Complementar nº 105 do Estado de São Paulo, que autorizava a administração tributária a solicitar informações bancárias.

Portanto, a decisão do STJ encampou entendimento já adotado pelo STF, o que reforça a convicção de imprestabilidade de fiscalização, calcada exclusivamente em informações do cartão de crédito, não apenas por preceder a própria ação fiscalizadora, mas, principalmente, por quebrar o sigilo fiscal e bancário do contribuinte, sem prévia e indispensável decisão do judiciário, contrariando norma pétrea expressa no art. 5º, inciso X da vigente Carta Constitucional.

Não há como ignorar que o sigilo fiscal/bancário, se constitui num desdobramento da proteção à intimidade prevista no inciso X do art. 5º da Carta Magna, em perfeita sintonia com o voto do Min. Carlos Velloso, expresso no julgamento do RE 219.780, que faz residir no dispositivo supra o sigilo bancário, que se tem como espécie de direito à privacidade (STF, RE 219.780, DJ 10/09/1999).

Por outro norte, o inciso XII da CF é uma inovação da Constituição, o que desencadeou algumas dúvidas interpretativas. Em verdade, ele não trata expressamente do sigilo bancário mas, ao utilizar o termo "sigilo de dados", sem dúvida, abarca a proteção às informações bancárias.

Isto porque as informações bancárias não deixam de ser dados, mas o dispositivo da CF é amplo, protegendo outros dados além dos bancários e aí se inclui o fiscal, evidentemente. É está a posição de Antonio Manoel Gonçalez, ao sustentar que o vocábulo 'dados', "certamente, refere-se a informações pessoais em poder dos bancos, entidades financeiras etc., que são indevassáveis. Trata-se de garantia constitucional aos cidadãos e os bancos deverão obedecer ao estatuído na Carta de Princípios".(http://jus.com.br/artigos/6088/fundamento-constitucional-do-sigilo-bancario#ixzz3YA8Fybyf).

Nesta esteira de entendimento, o STJ reconheceu que o procedimento denunciado neste parecer é, sobre todos os aspectos, ilegal e inconstitucional, portanto, não é apto a sustentar o advento de crédito fiscal lançado de ofício. Provas obtidas de forma não prevista em lei, não são aptas a sustentar qualquer procedimento de fiscalização. Um ilícito com feição de crime, não se presta a justificar a fiscalização e advento de outro ilícito, mesmo que fiscal.

A ilegalidade desse procedimento tem maior relevância, quando se observa que o fisco, invariavelmente, se utiliza dessas informações não apenas para lavrar auto de infração exigindo impostos, juros e multa, como também deflagra representações fiscais para fins penais encaminhadas ao MP, estribada em prova obtida de forma ilegal.Neste contexto, urge que o contribuinte de ICMS se mantenha vigilante, para reclamar em tempo e modo próprios os seus direitos, resistindo e se contrapondo a volúpia fiscal, que atinge direta e frontalmente norma constitucional expressa, que merece ser preservada.

Em verdade, há meios e formas de procedimentos judiciais, que permitem o jurisdicionado reclamar prestação justa e adequada, a evitar desfalque patrimonial por obra e causa da ação fiscalizadora que, na ânsia de arrecadar acaba por malferir texto constitucional. Seja através de mandado de segurança ou ação ordinária declaratória de anulação de débito, precedidas muitas vezes de defesas administrativas perante o Tribunal que lhe é próprio, pode e deve a classe contributiva, se insurgir contra os pleitos fiscais, lavrados com base em provas obtidas em total desprezo às normas do ordenamento constitucional consolidado.

Esta resistência se constitui no exercício pleno da cidadania que passa, necessariamente, pela defesa do estado de direito. Aplicável a máxima de que o poder tributante tudo pode, desde que o exercício fiscalizatório se dê dentro da lei. Transbordar dela, é o mesmo que flertar perigosamente com a ilegalidade e o relativismo jurídico nefasto, que pode levar à insegurança jurídica e visível desassossego social. É o mesmo que permitir que o Estado faça dos atos de fiscalização múltiplas expressões de arbitrariedade, utilizando-se de meios não autorizados pela constituição – acesso de dados sem autorização da justiça, com evidente quebra do sigilo fiscal/bancário – para atingir seus fins, acabando por se transformar em artífices de injustiça no exercício de fiscalizar. Portanto, a administração ordinária da Justiça, ainda nos dias de hoje, é e continua sendo o norte a ser seguido. É o porto seguro, que a sociedade tem à disposição, para evitar a expropriação sem causa.



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