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Dos princípio da boa-fé objetiva e da função social nos contratos para terceiros

Dos princípio da boa-fé objetiva e da função social nos contratos para terceiros

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Estudo dirigido a analisar a extensão dos efeitos dos princípios da boa-fé objetiva e da função social nos contrato para terceiros.

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 1

2. OS NOVOS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS............................................................. 1

2.1. PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PRIVA.................................................................... 1

2.2. PRINCÍPIO DO EQUILÍBRIO CONTRATUAL...................................................... 2

2.3. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA...................................................................... 5

2.4. PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO.......................................... 6

3. EFEITOS DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E DA BOA-FÉ OBJETIVA      17

CONCLUSÃO................................................................................................................. 47

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................... 49

1. Introdução

                        Desde que as pessoas começaram a se relacionar, o contrato se vê presente como instrumento capaz de propiciar a segurança e a estabilidade na manifestação de suas vontades.

                        Na concepção clássica do contrato era preponderante a idéia da autonomia das vontades, onde o que estava estabelecido nos contratos era lei entre as partes, o que consagrava a obrigatoriedade das convenções.

                        Neste diapasão, a vontade humana era a única forma de restingir ou limitar as obrigações já contraídas. O contrato era um instrumento jurídico para a transferência de todo tipo de riqueza, pautado nos princípios da autonomia da vontade, na obrigatoriedade e da relatividade de seus efeitos, o que refletia a realidade sócio-econômica do liberalismo.[1]

           

                        Pelo princípio da obrigatoriedade do contrato (pacta sunt seranda), não é possivel que uma das partes mude as disposições contratuais de forma unilateral, nem o juiz pode intervir neste conteúdo, fazendo-se desta maneira, lei entre as partes.

                        Todavia, a eficácia dos contratos, pelo princípio da relatividade, é ordinariamente limitada às partes contratantes. Ele só ata seus participantes, não podendo extender seus efeitos a terceiros.

                        Foi principalmente a partir da Revolução Industrial, que se deu impulso a consolidação do regime capitalista. O mercado de capitais e o mercado de trabalho funcionavam livremente. 

Para proporcionar a contratação em massa, os contratos foram padronizados, desvinculando-se de qualquer laço pessoal, onde uma vontade e condições de forma unilateral, dando estímulo à dominação de uma classe sobre outra.

Esse modelo liberalista “configura, de facto, um instrumento funcionalizado para operar do modo de produção capitalista, e nesse sentido, realiza institucionalmente o interesse da classe capitalista” [2]

Porém, esse modelo revelou a desiguladedade social que ocasionava, passando a escravizar a parte social ou economicamente mais fraca. Ao invés de garantir a livre manifestação das vontades das partes, e a isonomia entre os contratantes, o contrato ocasionava a imposição da vontade do mais forte economicamente.

“Uma ingerência cada vez mais presente, por parte do Estado, na estruturação desse conteúdo contratual, tendo em vista a salvaguarda de interesses sociais mais significativos que a mera intenção e simples pretensão dos contratantes, constituiu-se, também, em forte razão para a crescente onda de descrédito que pretendeu tomar conta do destino do contrato enquanto tradicional e clássico instituto de direito privado.”[3]

                        E foi diante deste quadro, de descrédito do instituto do contrato, que ocorreu a travessia do Estado Liberal para o Estado Social, onde se passou a exigir uma intervenção estatal, onde o Estado seria o organizador econômico, através do dirigismo contratual.

                        O dirigismo contratual, para Maria Helena Diniz, consiste em medidas restritivas imposta pelo Estado para asseverar a supremacia do interesse público sobre o interesse privado dos contratantes. Ao estabelecer medidas de proteção aos mais fracos economicamente, o Estado limita a autonomia da vontade das partes e a obrigatoriedade dos contratos, e fixa novos princípios norteadores, para propiciar a validade e eficácia dos contratos.

                        Sívio Venosa observa que “nesse cenário, o Novo Código procura inserir o contrato como mais um elemento de eficácia social, trazendo a idéia básica de que o contrato deve ser cumprido não unicamente em prol do credor mas como benefício da sociedade. De fato, qualquer obrigação descumprida representa uma moléstia social e não prejudica unicamente o credor ou contratante isolado, mas toda uma comunidade.”[4]

                        Desta forma, nota-se um enfraquecimento do princípio da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda), com a intervenção do Estado na esfera dos particulares, e também dá lugar aos novos princípios e valores consagrados em nossa Constituição, e posteriormente em nosso Código Civil.

                        “Reflexo da passagem do chamado Estado Liberal para o welfare state, o contrato ganha dimensão nova que determina sua recompreensão sob o influxo de novos princípios que lhe dão conteúdo”[5].  Dentro deste corolário, ocorreu a evolução social do contrato com o intuito de prevenir abusos, pautada nos novos princípios a serem analisados adiante.

2. OS NOVOS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS

                        “Ora mais publicizado, ora mais socializado, ora mais poroso à intervenção estatal, ora mais limitado quanto aos seu conteudo específico, ora mais funcionalizado, não importa. Todas essas faces são as faces do contrato, qua se transmuda e evolui sempre, com a própria transmudação e evolução da pessoa humana e das relações que estabelece com as demais.” [6]

                        Como já exposto, que com a passagem do Estado Liberal para o Estado Social, os contratos também sofreram modificações,  revelando outros princípios atinentes a eles.

                        Os princípios da autonomia da vontade e da obrigatoriedade dos contratos e da relatividade de seus efeitos foram mitigados, para combater a desigualdade social e reconhecer a projeção externa dos efeitos dos contratos sobre terceiros. Esses princípios ainda subsistem, mas de forma limitada, com contornos mais restritos.

2. 1. O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PRIVADA

                        O clássico princípio da autonomia entre as partes – que antes era a plena liberdade de contratar, do que contratar e de com quem contratar – se adaptou a uma nova dinâmica social e deu lugar ao princípio da autonomia privada. [7]

                        Antes, as partes tinham poder de estabelecer o que satisfazia seus interesses, nas relações jurídicas. Pelo entendimento de Fernando Noronha, este instituto era compreendido como “o poder das partes determinar livremente tudo no negócio jurídico, que seria lei entre elas (voluntas facit lejem).”[8]

                        No entanto, com o escopo de dar consistência e validade às tentativas de aplicação da justiça social e diminuir as desigualdades sociais, os contratos foram baseados nos valores da dignidade da pessoa humana e nas garantias individuais à luz de uma nova concepção jurídico-social.

                        Em face desse panorama, estabeleceu-se o que hoje chama-se de o princípio da autonomia privada. Por este princípio se entende o impulso da iniciativa da parte que deseja contratar, prestigiado os valores do solidarismo, da intervenção legislativa, ora judicial.

                        O contrato não se assenta apenas na vontade dos sujeitos, mas também no nosso ordenamento jurídico, e especialmente nos princípios elencados em nossa Constituição e se opera, como já visto, com a restrição da liberdade em favor da coletividade.

                        O que se procura é, como anota Cláudio Luiz Bueno Godoy, “garantir às partes um poder normativo, um poder de criar certa normativa, mas, sempre, nos moldes dos valores que a Constituição e, na sua esteira, as normas infraconstitucionais impõem para êxito do programa axiológico do ordenamento. (...) Em outras palavras, exigências de índole social e promocional dos valores básicos do ordenamento se justapõem aos interesses privados dos indivíduos, porém sem desnaturá-los ou sem que, como regra, eles sejam institucionalizados, assumindo o Estado como seus esses interesses, assumindo mesmo sua titularidade.”[9].

2. 2. O PRINCÍPIO DO EQUILÍBRIO CONTRATUAL

                        Por quanto perdurou a concepção do modelo clássico de contrato, nas relações onde existia desigualdade entre os contratantes, ou injustiça nas contratações, o juiz nada podia intervir, já que esse modelo tinha como fonte motriz, a liberdade contratual, a partir da qual se pautavam da mesma forma, as partes, para satisfação de seus interesses.

                        A prática de celebração dos contratos era indispensável para uma vida em sociedade, e a livre concorrência do fornecimento de produtos e serviços era insuficiente para a proteção dos consumidores, tal como nos contratos de fornecimento de energia elétrica, água e gás; o de prestação de serviços telefônicos, de transporte, os de seguros e bancários.

                        Todavia, em decorrência da falta de eqüidade dessas e de outras relações jurídicas que se tornaram evidentes, passou-se a exigir do Estado que se corrigisse este desequilibro, principalmente, na esfera contratual, por meio do dirigismo contratual.

                        O contrato, por este quadro, passa a ser visto como um instrumento de cooperação entre as partes se assenta no princípio da igualdade e a justiça igualitária se afirma no tratamento desigual às pessoas desiguais.

                        A respeito do Código de Defesa do Consumidor, o princípio do equilíbrio contratual, de direta inspiração constitucional, foi explicitamente consagrado no art. 51, §1º, II onde foram presumidas exageradas as cláusulas que restringisse os direitos e obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo que ameaçasse o equilíbrio contratual.

                        O justo contratual representa também uma forma de igualdade substancial na formação e no desenvolver do contrato, que não deve se sujeitar de modificações que alterem o equilíbrio. Assim, o Estado, por meio de mecanismos legais, intervem nas relações contratuais privadas a fim de corrigir as causas de desequilíbrio contratual.

           

2. 3. O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA

                        No Brasil, o princípio da boa fé, não se manifestou primeiramente no Cógigo Civil de 2002. Ele já havia sido introduzido pelo Código Comercial de 1850, em seu art. 131 : “Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre os seguintes bases: 1. a inteligência simples e adequada, que for mais conforme à ba fé, e ao verdadeiro espírito do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras.”

                        Segundo Teresa Negreiros, este princípio elencado no Código Comercial de 1850, nunca teve eficácia, pois se restringia a função de interpretação e integração do contrato, e não seu papel criador de direito. [10]

                        O princípio em comento reapareceu no nosso Código Civil de 1916, e posteriormente no Código de Defesa do Consumidor em 1990, mas neste último, consagrado com acepção de boa fé objetiva.

                        Há uma diferenciação no conceito de boa fé objetiva e boa fé subjetiva. A boa fé subjetiva reflete o estado psicológico do sujeito, traduzindo um estado de ignorância desculpável da antijuridicidade de determinada situação jurídica.[11]

                        Por outro lado, a boa é objetiva é uma regra de conduta, um dever jurídico, que obriga a realizar certa conduta ao invés de outra, nesse sentido, Fernando Noronha afirma ser “a expectativa de que parte, com quem se contratou, agiu e agirá com correção e lealdade”.[12]

                        Contudo, como afirma Venosa, “em qualquer situação não deve ser desprezada a boa fé subjetiva, dependendo seu exame sempre da sensibilidade do juiz.”[13]

                        Logo, foi no Código Civil de 2002, que o princípio da boa fé objetiva se encontrou no auge, pois deixou de ser usada apenas no seu aspecto subjetivo, e passou a ser utilizada no aspecto objetivo, como fonte de deveres.

                        Foram atribuídas ao princípio da boa fé objetiva três funções: a de fonte de deveres autônomos, a de norma de limitações de direitos subjetivos, e a de critério de interpretação.

                        André Soares Hentz explica que de toda relação contratual nascem deveres de prestação que são divididos em principais, deveres secundários e deveres laterais. Os deveres principais seriam aqueles que definem o tipo da relação contratual, seu núcleo. Os deveres secundários seriam aqueles acessórios da prestação principal, que se destinam a preparar o cumprimento dos deveres, e aqueles sustitutivos ou complementares da obrigação principal.

                        Os deveres laterais são os que derivam da lei, da disposição contratual e da incidência da bo-fé objetiva. Ou melhor, a imposição de uma conduta honesta, leal, e de colaboração que vise a satisfação dos interesses de ambos contratantes, é o papel integrativo do princípio da boa-fé objetiva.

                        No art. 422 do Código Civil de 2002 está estabelecido o princípio da boa-fé objetiva como fonte de deveres autônomos : “Os contratantes são obrigados a quardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

                        A segunda função do princípio em tela é a de norma limitadora ao exercício de direitos subjetivos. O art. 187do Código Civil de 2002, prevê que: “também como ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, exede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa-fé e pelos bons custumes”.

                        O antigo ditado “tudo o que não está proibido está permitido”, que tinha aplicação no direito privado, cai por terra, quando a boa-fé objetiva apresenta limites a ele.

                        “A boa fé objetiva como limitadora de direitos incide, por exemplo, quando uma das partes cumpre quase integralmente sua pretação, deixando de realizar apenas pequena parte do avençado, que se mostra insignificante em relação a todo o conteúdo do contrato. Em casos como tais, a outra parte não poderá rescindir o contrao ou opor exeção de contrato não cumprido, eis que houve o que se convencionou chamar de ‘adimplemento substancial do contrato’”. [14]

           

                        Por fim, a função da boa-fé objetiva como creitério de interpretação está elencada no nosso Código Civil de 2002, em seu art. 113: “ os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé objetiva e os usos do lugar de sua celebração.”

                        Isso significa que o contrato deve ser interpretado de forma a preservar a confiança, a justa expectativa dos contratantes. As declarações de vontade, no contrato devem ser interpretadas de acordo com o que seria razoavelmente esperado de um contratante leal.

2. 4. PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO

           

                        A crescente industrialização e a não intervenção do Estado na esfera particular, logo após a Revolução Francesa e a Revolução Industrial, acarretaram na concentração de capital nas mãos de poucos, e assim em uma grande desigualdade social.

Essa concepção tradicional do contrato, que tem na vontade uma fonte criadora de direitos e obrigações, bem como a visão do Estado ausente, mero expectador do conteúdo estipulado pela vontade dos contratantes, era um reflexo deste quadro capitalista.

Para romper com esta realidade, foi necessário um novo modelo de Estado, disposto a intervir na esfera particular, a fim de tutelar suas relações.

Ora, se este Estado, voltado a programas solidaristas e à valorização da dignidade humana, este cenário também atua no âmbito contratual, pressupondo desta forma uma funcionalização dos contratos.

                        Nos ensinamentos de Orlando Gomes, “o fenômeno da contratação passa por uma crise que causou a modificação da função do contrato: deixou de ser mero instrumento do poder de autodeterminação privada, para se tornar um instrumento que deve realizar também interesses da coletividade. Numa palavra: o contrato passa a ter função social.”[15]

                        Nesse sentido, o princípio da função social emergiu como meio de se atingir o solidarismo, uma dignidade social, e, portanto representa um mecanismo interventivo, capaz de amenizar as desigualdades sociais.

                        A propósito, na medida em que esse mecanismo é utilizado como limite nas relações contratuais, ele fornece as partes contratantes, não só poder, mas também inclui deveres a elas, estes que devem ser cumpridos para a realização de um exercício do direito de forma harmoniosa e igualitária.

            É diante deste panorama, destes deveres e valores empregados nas relações contratuais que o contrato deve ser funcionalizado.

            Sobre o assunto, Miguel Reale diz que “se o contrato é produto da autonomia da vontade, não quer dizer que essa vontade deva ser incontrolada: a medida de seu querer nasce de uma ambivalência, de uma correlação essencial entre o valor do indivíduo e o valor da coletividade. O contrato é um elo que de um lado, põe o valor do indivíduo que cria; mas de outro lado, estabelece a sociedade como o lugar onde o contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e de medida.”[16]

Em nosso ordenamento jurídico, os princípios da dignidade humana e do solidarismo estão amplamente espalhados por toda nossa Constituição da República, e de forma explicita no art. 170 da CF logo no caput traz a baila a justiça social e a dignidade da pessoa humana, princípios fundamentais da ordem econômica.

Porém, a idéia de um Estado social que tem como pedra de toque os princípios como sodilarismo, a justiça social e a função social, não é dissociável da idéia de um Estado que tem como objetivo também a proteção do indivíduo, o seu bem estar. Na verdade estas perspectivas se complementam, já que o Estado, através de medidas que regem os comportamentos, os dirigem a certos objetivos.

            Neste contexto que o Código Civil de 2002, consagra o princípio da função social do contrato, e o ilustre Miguel Reale, que presidiu a comissão coordenadora, quis enfatizar este é um princípio cardeal no qual se assentam as novas previsões.

            Pelo art. 421, e outros espalhados pelo Código, a perspectiva de um contrato individualista é retirado do sistema normativo, para dar lugar ao contrato empregado de valor da coletividade.

            Aliás, é na supremacia do interesse público sobre o privado - onde o interesse público seria o interesse do indivíduo como partícipe da sociedade - que vão se assentar as novas disposições contratuais.

Ainda na precisa observação de Miguel Reale “é natural que se atribua ao contrato uma função social, a fim de que ele seja concluído em benefício dos contratantes sem conflito com o interesse público. O que se exige é apenas que o acordo de vontades não se verifique em detrimento da coletividade, mas represente um dos seus meios primordiais de afirmação e desenvolvimento.”[17]

“A socialização do contrato, isto é, o caráter predominantemente societário que veio a adquirir, fez com que transcendesse à mera vontade das partes, para tornar-se meio de expressão da própria sociedade. Um canal de comunicação entre a empresa e o consumidor (contratos de consumo), entre o Estado e o cidadão (contratos administrativos), entre o patrão e o empregado (contratos de trabalho). Em suma, Um instrumento de convívio social e de preservação dos interesses da coletividade.” [18]

 Em trechos do voto da Ministra Nancy Andrigui, ea dita a importância deste instituto nos casos concretos: “Somente a prática demonstrará quais os limites em que o magistrado transitara em sua aplicação. Por isso é importante, em cada caso, relembrar o que levou o legislador a introduzir esta inovação no nosso sistema jurídico e, especificamente, para cada caso concreto, verificar se há harmonia no sistema, se há uma situação de fragilidade de uma das partes e se, dado a tudo isso, a aplicação do princípio de justifica.”[19]

                        Para Cláudio Godoy, o contrato tem função social projetada primeiramente entre as partes contratantes, de maneira a assegurar contratos mais equilibrados,“atua quando sempre presente estejam os interesses metaindividuais, mas também, interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana.” E em segundo lugar, se estende ao corpo social, a terceiros: “É o que se poderia dizer uma eficácia social do contrato, corolário de sua inserção no tecido social, no mundo das relações, a função que aí ocupa” [20]

                        Assim, ele diferencia o conteúdo genérico do contrato em “inter partes” e em “ultra partes” ou melhor, a eficácia social.

                        Por seu turno, Miguel Reale também observa que a função social do contrato surte efeitos a terceiros, não se propagando apenas entre os contratantes.

                        Já Everaldo Cambler, prevê que a função social do contrato intervem não apenas na relação contratual das partes, protegendo os contratantes e garantindo a maior equilíbrio no contrato – aspecto intrínseco. Mas também, no aspecto extrínseco, atuando para amenizar os efeitos negativos que o contrato traz a sociedade.[21]

                        Vale relembrar que partes são centros de interesses compostos pelos sujeitos que integram o vínculo contratual. e terceiros são pessoas estranhas a essa relação jurídica que, no entanto, podem vir a sofrer as conseqüências do contrato ou auferir suas vantagens.

                        Resta óbvio assim, que a função social do contrato deve ser compreendida em relação aos efeitos que são refletidos na sociedade, de forma que moderniza e mitiga o princípio da relatividade dos efeitos do contrato consagrado em nosso sistema contratual.

3. EFEITOS DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E DA BOA-FÉ OBJETIVA

O Ministro Humberto Martins,em seu voto do Recurso Especial n. 468.062, afirma que “o princípio contratual da eficácia relativa dos contratos hoje vem sendo mitigado pela doutrina brasileira, com base em novas construções teóricas e francesas, ao exemplo da doutrina do terceiro cúmplice e da eficácia contratual em relação a terceiros. Com isso, cria-se uma esfera de proteção de terceiros em face de negócios jurídicos que lhe são aparentemente alheios”.

                        Pelo princípio tradicional da relatividade dos efeitos do contrato, entende-se que “seus efeitos se produzem exclusivamente entre as partes, não aproveitando nem prejudicando terceiros.”[22]

                        Somente em regime de exceção poderia se atingir bens de terceiros, criando direitos e impondo deveres a eles, como, por exemplo, as estipulações em favor de terceiro, a promessa de fato de terceiro e o contrato com pessoa a declarar. O contrato, como tido antes, é res inter alios acta tertio nec nocet nec prodest.

Todavia, com a funcionalização do contrato, o princípio da relatividade foi flexibilizado em função de outros interesses, não necessariamente limitados às partes contratantes.

Verifica-se estipulação (ou contrato) em favor de terceiro quando “uma das partes se obriga a atribuir vantagem patrimonial gratuita a pessoa estranha à formação do vínculo contratual”[23] Ou seja, gera direitos a terceiro alheio à relação contratual, que pode inclusive exigir a prestação principal. O contrato de seguro é sua feição mais usual. Está prevista nos arts.436 a 438 do nosso código civil.

                        A promessa de fato de terceiro se configura naquele caso da pessoa que se compromete com outra a obter uma prestação de fato de um terceiro, onde há uma relação jurídica entre duas pessoas capazes e aptas a criar direitos e obrigações, as quais ajustam um negócio jurídico tendo por objeto a prestação de um fato a ser cumprido por outra pessoa, não participante dele. Encontra-se contemplada nos arts.439 e 440, do código civil.

                        O contrato com pessoa a declarar trata-se de um contrato no qual se introduz uma cláusula especial pro amico eligendo, pela qual é dada à parte a faculdade de escolher terceiro para assumir a sua posição na relação contratual, como se o contrato tivesse sido realizado com esta última, com efeito ex tunc, portanto, como se desde o início tivesse contratado. Está disciplinado nos art. 467 a 471, do Código Civil de 2002.

Porém, para algum doutrinadores, este último instituto não provoca desvios no princípio da relatividade dos contratos, uma vez que produz efeitos apenas aos contratantes, e se terceiro só pode atuar no pólo contratante com sua anuência, assim sendo, já assume aposição contratual que deveria suceder.

                        Além dessas previsões feitas pelo Código Civil, no sentido de que existem contratos que criam direitos e deveres a terceiros, o referido diploma legal estabelece repercussões, ainda que indiretamente, que tocam terceiros: a teoria da oponibilidade.

                        O princípio da oponibilidade significa que como o contrato é existente no meio socioeconômico, terceiro não pode simplesmente ignorar a existência do contrato alheio, para praticar atos que frustrem seu objeto, assim o contrato pode ser oposto aos terceiros pelas partes, e terceiros podem opor seus contratos às partes. Esta teoria é destinada a assegurar a produção dos efeitos normais do contrato, nada além de seus efeitos, garantindo também maior segurança social.

                        Cláudio Godoy cita como exemplo as hipóteses em que fornecedores desrespeitam a avença de exclusividade de fornecimento de derivados de petróleo, celebrada entre os postos de combustíveis e as distribuidoras, concluindo pela possibilidade destas agirem diretamente contra o terceiro ofensor. Antônio Junqueira de Azevedo em seu parecer que censurou esta conduta os denomina de “atravessadores”.

                        Outro exemplo é o famoso caso do cantor Zeca Pagodinho. O cantor realizou contrato de cessão de direito  de uso de imagem com exclusividade com a Schincariol por um prazo de 12 meses a fim de promover um produto da marca.

                        Porém, ainda quando o contrato vigorava, o cantor participou de campanha publicitária de marca de outra cerveja, lesando assim o que haviam convencionado.

                        A Schincariol, em vista da violação de seus direitos, ingressou com ação contra o cantor, com o intuiito de ser indenizada pela quebra do contrato e reparação pelo dano moral. As pretensões foram acolhidas pelo judiciário.

                        Entretanto, pelo que se pode observar, a Shincariol poderia demandar também contra a outra empresa de cerveja concorrente, pelo dano que causou ao contratar com o mesmo cantor. Existe no Código Civil um dispositivo que o legislador emprega aos terceiros que aliciam pessoas obrigadas em outros contratos sanções no art. 608 Aquele que aliciar pessoas obrigadas em contrato escrito a prestar serviço a outrem pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste desfeito, houvesse de caber durante 2 (dois) anos”.

                        Como leciona Cláudio Godoy “ é bem de ver que mesmo contratos sem uma eficácia social que poderis se dizer típica podem também interferir na esfera jurídica de terceiro. Isso, quer permitindo que terceiro possa valer-se de contrato alheio para defesa de seus interesses, quer fazendo com que os contratantes possam alegar, a terceiro um contrato que os una.”[24]

                        Destes casos se verifica a aplicação inclusive do princío da boa-fé objetiva para terceiros. A necessidade de preservar a ordem econômica e a fidelidade às convenções demanda que terceiros se abstenham de violar contratos em andamento.

                        “O princípio da função social condiciona o exercício da liberdade contratual e torna o contrato, como situação jurídica merecedora de tutela, oponível erga omnes. Isto é, todos têm o dever de se abster da prática de atos (inclusive a celebração de contratos) que saibam prejudiciais ou comprometedores da satisfação de créditos alheios. A oponibilidade dos contratos traduz-se, portanto, nesta obrigação de não fazer imposta àquele que conhece o conteúdo de um contrato, embora dele não seja parte. Isto não implica tornar as obrigações contratuais exigíveis em face de terceiros (é o que a relatividade impede), mas impõe a terceiros o respeito por tais situações jurídicas, validamente constituídas e dignas de tutela do ordenamento (é o que a oponibilidade se exige).” [25]

                        Um contrato pode afetar um grupo de pessoas e toda uma cidade, ou até um país, com reflexos negativos na sociedade, o que se busca regulamentar, por exemplo, na esfera do Direito Econômico, para permitir a livre-concorrência. Sob este princípio, o contrato importa também para a sociedade, não apenas para as partes contratantes, e servirá como limite da atuação destas.

                        Os contratos também podem ter eficácia protetiva de terceiros, o que nos remete ao princípio ora já analisado da boa fé objetiva, que se pressupõe no alargamento dos efeitos deste princípio para além das partes contratantes.

                        Os indivíduos não contratantes, alheios ao contrato não podem exigir a prestação da obrigação principal, mas são abrangidas pela eficácia protetiva do contrato, por serem ligadas de alguma forma a um dos contratantes, e à prestação.

                        É um círculo mais limitado de terceiros, que são próximos, por algum motivo, de um dos contratantes que levam aquele a confiar na segurança dessas pessoas e na sua própria. É o que observa Mota Pinto, dando o exemplo do caso dos familiares do inquilino em relação ao locador.

                        De tudo quanto foi exposto, é de rigor concluir que o novo Código Civil, positivando uma tendência de que a boa-fé deve estar presente em todos os âmbitos e fases, inclusive reflexos, quando da celebração de um contrato.

CONCLUSAO

                        O princípio que sempre norteou as relações contratuais foi a autonomia da vontade a obrigatoriedade do contrato e a relatividade dos efeitos do contrato. Em outras palavras, as partes podiam contratar com quem quisesse, e o que quisesse.

                        Na concepção clássica do contrato, não havia limites para contratar e o contrato estabelecia lei entre as partes, devendo ser cumprido a qqualquer custo.

                        Esse modelo, tornou-se preponderante após a Revolução Industrial, onde existia intenso liberalismo.

                        Ocorre que com a Revolução Industrial, surgiu grandes empresas, verdadeiros poderios econômicos, e houve a massificação dos contratos, surgindo os contratos pré-estabelecidos e de adesão onde suas cláusulas não podiam ser discutidas.

                        Neste panorama, a disparidade entre as classes sociais aumentou, dando espaço à dominação dos mais fortes economicamente sobre os mais fracos.

                        Em razão disto, uma nova ordem de proteção dos direitos humanos emergiu, passando de uma proteção doambito individual, para uma proteção da sociedade.

                        Logo, o Estado Social, através de suas intervenções na vida dos particulares, com respaldo no solidarismo, tenta garantir o bem da sociedade, objetivando proteger a dignidade da pessoa humana como partícipe de uma coletividade.

                        Na esfera contratual, o Estado atuou através do dirigismo contratual. Decorreram deste novo modelo contratual, teorias que preconizavam a proteção do contratante mais frágil em relação ao outro, bem como de terceiros em relação ao contrato celebrado.

                        Na verdade, o que se pretendeu foi a limitação do clássico princípio da autonomia privada, em detrimento de se garantir direitos sociais, equidade nas relações.

                        Toda essa nova filosofia se concretizou com o novo Código Civil, que positivou os tão aclamados princíios da boa-fé objetiva e da função social do contrato.

                        O princípio da boa-fé objetiva é uma regra de conduta, que impõe ao contratante agir com lealdade, e que corrija eventuais vícios do contrato, inclusive perante terceiros.

                        Já em relação ao princípio da função social do contrato, é instiuído um contrato pela perspectiva social, ou seja, pelo solidarismo, onde devem ser levados em conta o princípio da dignidade humana e da justiça social.

                        Apresenta este princípio, uma observância dos interesses da coletividade, onde os contratantes não tem total liberdade de contratar como outrora, representando assim, uma flexibilização do principio da autonomia das vontades.

                        Desta mesma forma, este princípio passou a atingir terceiros, por consequência gerando a mitigação do princípio da relatividade dos efeitos do s contratos, onde os efeitos contratuais ataria apenas as partes contratantes, não tendo reflexos  em terceiros.

                        Para além da esfera dos contratantes, o contrato assume uma eficácia social, neste novo paradigma jurídico. Esta eficácia social tem repercussões entre as partes e fora dela.

                        O ato das vontades dos contratantes recebe tutela jurídica, desde que atenda aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, e do solidarismo social, e recebe limites pela apliação da função social do contrato.

                        Oferece também, este princípio, a função de promoção de valores básicos do ordenamento. Desta forma, a proteção do Estado não se limita às partes contratantes. Além da a proteção das pessoas envolvidas, para que seus interesses não sejam “engolidos” , diante da inferioridade social, é exigindo dos contratantes um comportamento transparente, digno, em vista da dignidade da pessoa humana.

                        Além desta função, o princípio atua no sentido de criar relações equilibradas socialmente, sem que gere efeitos negativos à toda coletividade, traduzindo-se em segurança de aplicação dos direitos sociais, e em um ideal de justiça social.

BIBLIOGRAFIA

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VENOSA, Sílvio de Salvo, Teoria Geral das Obrigações e dos Contratos. Atlas, 3ª ed. 2003.


[1] HENTZ, André Soares, ética nas relações contratuais à luz do Código Civil de 2002, Juarez de Oliveira, 2007, p. 57.

[2]ROPO, Enzo, O contrato, tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes, Coimbra: Almedina, 1988 p. 36.

[3] HIROKONAKA, Gisela   Maria Fernanda Novaes. Contrato: estrutara milenar de fundação do direito privado. Revista do advogado, São Paulo, ano XXII, n. 68, 2002, p.77

[4] VENOSA, Sílvio de Salvo, Teoria Geral das Obrigações e dos Contratos. Atlas, 3ª ed. 2003, p. 368.

[5] GODOY, Claudio Luiz Bueno, Função Social do Contrato, Editora Saraiva, 2004, p.4

[6] HIROKONAKA, Gisela   Maria Fernanda Novaes. Contrato: estrutara milenar de fundação do direito privado, p.79

[7] Função social do contrato,  Cit p. 15.

[8] NORONHA, Fernando, O direito dos contratos e seus princípios fundamentais (autonomia privada, boa fé , e justiça contratual), SãoPaulo, Saraiva, 1994, p.114.

[9] Função Social do Contrato, cit. p.22.

[10] NEGREIROS, Teresa, Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa fé, Rio de Janeiro, Renovar, 1998, p.76.

[11] HENTZ André Soares, Ética nas relações contratuais à luz do Código Civil de 2002, cit. p. 102

[12] NORONHA, Fernado, O direito dos contratos e seus princípios fundamentais...cit., p. 132.

[13] VENOSA, Sílvio de Salvo, Teoria Geral das Obrigações e dos Contratos, cit., p.380.

[14] HENTZ André Soares, Ética nas relações contratuais à luz do Código Civil de 2002, cit. p. 111.

[15] GOMES, Orlando, A função do contrato, in Novos temas de direito civil, Rio de Janeiro, Forense, 1983, p. 109.

[16] REALE, Miguel, O projeto de código civil: situação atual e seus problemas fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1986, p.10.

[17] REALE, Miguel, O projeto de código civil: situação atual e seus problemas fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1986, p.11.

[18] Aguiar Júnior, Ruy Rosado de. Projeto do Código Civil: as obrigações e os contratos, p.19).

[19] Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 691.738-SC. 3ª Turma. Relatora Ministra Nancy Andrigui. Brasília. Dj 26.9.2005, p.372.

[20] Função social do contrato,  Cit p. 132.

[21] CAMBLER, Everaldo ugusto, Introdução, in: Alvim, Aruuda. Comentários ao código civil brasileiro, Rio de Janeiro, Forense, 2003, vl. 3, p. 11.

[22] GOMES, Orlando, Contratos, Forense,26ª ed, Rio de Janeiro, 2007, p. 31

[23] idem, p.197

[24] Função social do contrato,  Cit p. 141.

[25]NEGREIROS Teresa, cit., p. 265.



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