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Antropologia jurídica: gênese, autonomia e importância

Antropologia jurídica: gênese, autonomia e importância

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O presente trabalho tem por escopo utilizar o poema “Casa-Grande & Senzala”, de Manuel Bandeira, não como epígrafe, mas como ponto de partida para o estudo da antropologia social com ênfase na antropologia jurídica.

            O nascimento da Antropologia ocorreu em meio à expansão colonial européia do século XIX. Temos, portanto, a ligação da antropologia social e, conseqüentemente, da antropologia jurídica com o imperialismo europeu, que emerge, segundo Hannah Arendt, do colonialismo motivado pela dimensão expansionista, o que difere-se das políticas de formação de impérios aos moldes de Roma.

            Assim, o imperialismo é caracterizado por aquilo que se denomina “bulimia territorial”, mas não somente, pois, segundo Eric Hobsbawm, o imperialismo, que se inicia em 1880, condensa-se em um novo tipo de império, fundamentado na divisão do mundo entre países “avançados” e “atrasados”.

            Nesse contexto social, caracterizado pela política de massas, o Estado nacional europeu precisava fundamentar sua legitimidade, demandando esforços para angariar o apoio popular à expansão imperialista. Assim, a idéia de superioridade racial, já bastante difundida na sociedade européia em face das demais sociedades, torna-se a mais eficaz ferramenta de legitimação da expansão imperial. À época, a idéia de superioridade de raças já podia ser encontrada na obra, acerca da hierarquia das raças, Essai sur l'inégalité des races humaines, de Gobineau, à qual faz alusão o poema.

            No entanto, a ideologia da superioridade necessitava de argumentos para atestar seu convencimento e, assim, a Antropologia, recém-nascida, torna-se um instrumento de grande valia no tocante ao exercício da dominação nos contextos coloniais.

            Cabe ressaltar que, entre o conhecimento antropológico e a administração colonial, fora estabelecida uma “afinidade eletiva” de tal modo que a administração colonial apoiaria o desenvolvimento da antropologia e os antropólogos forneceriam, em última análise, conhecimentos que se prestariam à validação da dominação política.

            O Evolucionismo, primeira grande corrente da Antropologia no século XIX, tinha um caráter etnocêntrico, permitindo a utilização da suposta ciência como instrumento de dominação. Segundo Norbert Rouland, a escola evolucionista parte das seguintes premissas: as sociedades humanas formam um conjunto coerente e unitário subordinado às leis gerais e globais de transformação; todos os grupos humanos passam por estágios idênticos e sucessivos no desenvolvimento de suas organizações econômicas, sociais e jurídicas; há uma concepção linear do tempo que aponta para a idéia de teleologia histórica.

            A antropologia com enfoque jurídico também se manifesta inicialmente nesse contexto imperialista, cujos maiores expoentes formularam suas teses sob o influxo da dominação colonial. Dentre os “pais fundadores” da antropologia jurídica, temos: Lewis Morgan, que postulou a lei geral de desenvolvimento, na qual as sociedades evoluem passando pela selvageria até a barbárie para, por fim, atingir a civilização; e, ainda, Henry Sumner Maine, que estabeleceu a lei geral de evolução, caracterizada pela transmissão do status, fundado na cosmologia social, para o contrato.

            Tendo por base a análise da gênese da disciplina, Orlando Villas Bôas Filho, em seu texto intitulado “A constituição do campo de análise e pesquisa da antropologia jurídica”, estabelece o objeto, modo e finalidade do campo de análise e pesquisa da antropologia jurídica do século XIX: consiste no estudo das “sociedades primitivas” fundamentado no pressuposto etnocêntrico da superioridade da sociedade européia em relação às demais, tendo um caráter meramente instrumental e constituindo-se num saber voltado à gestão de populações, expressão que Robert Weaver Shirley denomina de “dimensão pragmática” da antropologia.

            O evolucionismo, escola que representou a Antropologia no século XIX, foi muito criticado pelas escolas posteriores e, sob essa ótica, a Antropologia foi questionada como ciência em relação ao seu objeto, modo e finalidade. Dentre as correntes avessas às premissas evolucionistas, temos a difusionista norte-americana, cujo maior representante é Franz Boas, pensador aludido no poema.

            As críticas de Boas em relação ao evolucionismo podem ser resumidas em alguns tópicos:

  • As sociedades são essencialmente diversas. Não são partes de um conjunto coerente e unitário subordinado a leis gerais de desenvolvimento. Rompe-se, assim, a perspectiva linear e teleológica da história. Portanto, não existe lei única para explicar o desenvolvimento das sociedades;
  • Cada grupo cultural possui uma história própria e única, de modo que é mais importante esclarecer os processos que ocorrem concretamente em cada sociedade do que propor leis gerais de desenvolvimento das civilizações;
  • homem não herda senão as potencialidades, cujo desenvolvimento depende de um dado ambiente físico e social, donde decorre a não aceitação da idéia de que a evolução está baseada na passagem por estágios idênticos e sucessivos;
  • Não se pode explicar a complexidade da vida cultural baseando-se apenas num único conjunto de condições ou causas, donde decorre que as explicações raciais são, necessariamente, parciais e redutoras, para não se dizer equivocadas. O elemento raça não é suficiente para explicar as diferenças entre as mais variadas sociedades;
  • Não há raças mais evoluídas que outras, o que quebra a premissa evolucionista da existência de povos com mentalidade infantil e povos com mentalidade madura, o que está na base jurídica de tutela de uma sociedade sobre outra;
  • direcionamento do método antropológico deve estar voltado para a unidade empírica do indivíduo em relação com a cultura que o envolver, daí sua perspectiva culturalista.[1]

            Franz Boas acenava para o estudo da história cultural e foi um dos principais representantes do difusionismo norte-americano, além de ter sido professor de Gilberto Freyre na Universidade de Columbia, Nova York. Conta Freyre, no prefácio de Casa-Grande & Senzala, a profunda impressão que lhe causaram os ensinamentos de Boas, traduzidos no poema de Manuel Bandeira (“Que importa? É lá desgraça?/Essa história de raça,/Raças más, raças boas/- Diz Boas –”).

            Outro crítico da corrente evolucionista foi Claude Lévi-Strauss, que lança as bases do Estruturalismo, desvinculando a Antropologia da bio-política para relacioná-la à ciência da cultura, de modo a recuperar e aprofundar o pensamento de Boas. Ao refutar as leis gerais de desenvolvimento, premissa da escola evolucionista, estabeleceu que as culturas humanas diferem-se de vários modos, tanto na relação entre sociedades distintas quanto no âmbito de uma mesma sociedade; e também apresentou a idéia de que o Homem não exerce a sua natureza numa humanidade abstrata, mas sim em culturas concretas.

            As críticas ao Evolucionismo repercutiram no âmbito jurídico e tornaram-se evidentes quanto à rejeição às leis universais da história, atingindo, no seu conseqüente desenvolvimento no campo jurídico, principalmente Sumner Maine. Ainda, se as sociedades são diferentes uma das outras e, devido a isso, se organizam juridicamente de formas distintas, temos a propositura da diversidade de sistemas jurídicos, que não se resumem, portanto, à maquinaria estatal de força vinculante.

            Não obstante, segundo Shelton Davis, “a Antropologia do Direito é a investigação comparada de definição de regras jurídicas, da expressão de conflitos sociais e dos modos através dos quais tais conflitos são institucionalmente resolvidos. Como tal, a Antropologia do Direito tem como ponto de partida que os procedimentos jurídicos e as leis não são coincidentes com códigos legais escritos, tribunais de justiça formais, uma profissão especializada de advogados e legisladores, polícia e autoridade militar etc.” Ou seja, a Antropologia jurídica atualmente situa-se na problematização do direito, no campo das investigações zetéticas, cujo objeto transcende o direito nas sociedades sem Estado, sendo, por vezes, questionado por supostamente adentrar ao campo da Sociologia jurídica.

“Casa-Grande & Senzala”

“Casa-Grande & senzala”

Grande livro que fala

Desta nossa leseira

Brasileira.

Mas com aquele forte

Cheiro e sabor do Norte

- Dos engenhos de cana

(Massangana!)

Com fuxicos danados

E chamegos safados

De mulecas fulôs

Com sinhôs!

A mania ariana

Do Oliveira Viana

Leva aqui a sua lambada

Bem puxada.

Se nos brasis abunda

Jenipapo na bunda,

Se somos todos uns

Octuruns,

Que importa? É lá desgraça?

Essa história de raça,

Raças más, raças boas

- Diz Boas -

É coisa que passou

Com o franciú Gobineau.

Pois o mal do mestiço

Não está nisso.

Está em causas sociais,

Da higiene e outras tais:

Assim pensa, assim fala

Casa grande e Senzala.

Livro que a ciência alia

A profunda poesia

Que o passado revoca

E nos toca

A alma de brasileiro,

Que o portuga femeeiro

Fez e o mau fado quis

Infeliz

Bibliografia

Franz Boas – Antropologia cultural. Org. Celso Castro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. 109p;

Manuel Bandeira – Estrela da vida inteira;

Marina de Andrade Marconi e Zelia Maria Neves Presotto – Antropologia, uma introdução. Editora Atlas AS. 2001, São Paulo, 5 ª Edição;

Orlando Villas Bôas Filho – A constituição do campo de análise e pesquisa da antropologia jurídica;

Robert Weaver Shirley – Antropologia jurídica;

Shelton H. Davis – Antropologia do Direito (introdução).


[1] Orlando Villas Bôas Filho – A constituição do campo de análise e pesquisa da antropologia jurídica.



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