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As fundamentações jurídico-teóricas acerca da finalidade da pena

As fundamentações jurídico-teóricas acerca da finalidade da pena

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Aborda proposições que visam responder “por que” e “para que” punir, traçando um paralelo com o contexto sócio-político em que tais teorias se desenvolveram.

SUMÁRIO:

1 Breves considerações sobre a pena e o direito penal. 2 Teorias sobre a finalidade da pena. 2.1 Teorias absolutas. 2.2 Teorias relativas. 2.2.1 Teoria da prevenção geral. 2.2.1.1 Prevenção geral negativa. 2.2.1.2 Prevenção geral positiva. 2.2.2 Prevenção especial. 2.2.2.1 Prevenção especial positiva. 2.2.2.2 Prevenção especial negativa. 2.2.3 Teorias mistas. 2.2.4 Teorias abolicionistas e Garantismo penal. 3 Finalidade da pena no Brasil. Considerações finais. Referências.

1 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A PENA E O DIREITO PENAL

Da necessidade fundamental de sobrevivência das sociedades humanas decorre o Direito, instrumento-mor de garantia da segurança das condições inerentes à vida humana.

Sanções são estabelecidas, portanto, contra os fatos sociais que atentem contra os bens resguardados pela tutela das normas de convivência, sendo a pena a sua mais severa classe (DAMÁSIO DE JESUS, 2010), recurso punitivo do Direito Penal, a faceta mais intensa do Estado, contra as condutas mais reprováveis, como ensina Cezar Roberto Bitencourt:

Quando as infrações aos direitos e interesses do indivíduo assumem determinadas proporções, e os demais meios de controle social mostram-se insuficientes ou ineficazes para harmonizar o convívio social, surge o Direito Penal com sua natureza peculiar de meio de controle social formalizado, procurando resolver conflitos e suturando eventuais rupturas produzidas pela desinteligência dos homens. (BITENCOURT, 2014, p. 35)

A etimologia do termo procede do latim poena com derivação do grego poiné, “significando dor, castigo, punição, expiação, penitência, sofrimento, trabalho, fadiga, submissão, vingança e recompensa” (OLIVEIRA, 2003, p. 24).

Co-originários o homem e o crime, porquanto “desde que há homem, há crime; e desde que há crime, há castigo” (FONTENELE E SILVA, 2004, p. 42); assim, o castigo:

(...) é como que uma sombra sinistra que segue o homem em seu caminho pela história. Ele é seu lado sombrio e sinistro, mas que lhe é inafastável. Sinistra sombra, o castigo não é, todavia, estranho ao homem. Pelo contrário, é dele parte constitutiva e, num certo sentido, o constituiu enquanto homem. A história do homem é, em grande parte, a história do castigo. (FONTENELE E SILVA, 2004, p. 42)

Sobre o sanguinário desenvolvimento do instituto, Ferrajoli leciona:

 A história das penas é, sem dúvida, mais horrenda e infamante para a humanidade do que a própria história dos delitos: porque mais cruéis e talvez mais numerosas do que as violências produzidas pelos delitos têm sido as produzidas pelas penas e porque, enquanto o delito costuma ser uma violência ocasional e às vezes impulsiva e necessária, a violência imposta por meio da pena é sempre programada, consciente, organizada por muitos contra um. (FERRAJOLI, 2002, p. 310)

As primeiras respostas penais tinham inafastável caráter religioso, aclarando Mirabete que:

(...) todos os fenômenos naturais maléficos eram tidos como resultantes das forças divinas (“totem”) encolerizadas pela prática de fatos que exigiam reparação. Para aplacar a ira dos deuses, criaram-se séries de proibições (religiosas, sociais e políticas), conhecidas por “tabu”, que, não obedecidas, acarretavam castigo. A infração totêmica ou a desobediência tabu levou a coletividade à punição do infrator para desagravar a entidade, gerando-se assim o que, modernamente, denominados “crime” e “pena”. (...) A pena, em sua origem remota, nada mais significava senão a vingança, revide à agressão sofrida, desproporcionada com a ofensa e aplicada sem preocupação de justiça. (MIRABETE; FABBRINI, 2013, p. 15)

De acordo com Manoel Pedro Pimentel, tabu é palavra de origem polinésia para conceituar concomitantemente o sagrado e o proibido, o impuro, o terrível, relacionando-se às “primeiras regras de proibições e, consequentemente, os primeiros castigos (penas)”, que se vinculam às “relações totêmicas” (PIMENTEL apud MIRABETE, 2013, p. 229).

A resposta penal é tradicionalmente dividida pela doutrina em: vingança privada, vingança divina, vingança pública e período humanitário.

Adverte, no entanto, Bitencourt, sobre o difuso desenvolvimento da pena: “As diversas fases da evolução da vingança penal deixam claro que não se trata de uma progressão sistemática, com princípios, períodos e épocas caracterizadores de cada um de seus estágios” (BITENCOURT, 2014, p. 72).

Abordadas serão a seguir as proposições que tangem à discussão teórica da finalidade da sanção penal, não se olvidando da importância da evolução do instituto, de seus contornos iniciais ao surgimento dos estabelecimentos penitenciários, mas que, todavia, não se trata, especificamente, do escopo do presente artigo.

2 TEORIAS SOBRE A FINALIDADE DA PENA

 

O Direito Penal é indissociável de seu momento histórico, contexto sociocultural, ideológico e político. Atualmente, sua concepção associa-se aos efeitos que pretende produzir, sobre o indivíduo condenado e sociedade. A pena, de acordo com Francisco Munõz Conde, é condição para convivência na sociedade, justificando-se, para Bitencourt, pela sua necessidade. Grave, porém, imprescindível.

A pena é corolário de um conceito de Estado, estando intimamente ligado o seu conceito à forma deste e seu modelo socioeconômico. Assim, é meio estatal para proteger eventuais lesões a determinados bens jurídicos numa específica organização social. Bitencourt explica que “a uma determinada teoria de Estado corresponde uma teoria da pena, e com base na função e finalidade que seja atribuída a esta, é possível deduzir um específico conceito dogmático de culpabilidade” (2014, p. 130).  Estado, pena e culpabilidade formam, portanto, conceitos dinâmicos e inter-relacionados.

A resposta ao “por que punir?” envolve, portanto, a própria organização político-social. Isso porque não se restringe somente a uma discussão jusfilosófica sobre a finalidade da pena, mas da própria legitimação do poderio estatal. Em que se baseia a permissão do Estado de privar a liberdade de seus concidadãos? A função do direito penal depende da legitimação do Estado, enquanto a sua efetividade concerne no demonstrar de sua eficiência enquanto controle social.

É fundamental o estudo das teorias da pena, vez que tratam do arcabouço argumentativo de justificação da imposição penal e, por conseguinte, seus contornos práticos, aspectos que correspondem às modernas concepções de pena. Convém salientar que a finalidade da pena difere de sua função e de seu conceito. Este, para Santiago Mir Puig, traduz-se em “castigo”, um “mal” que se impõe “por causa da prática de um delito”, e enquanto a finalidade relaciona-se com os efeitos sociais buscados normativamente, a função diz respeito aos efeitos sociais produzidos (BITENCOURT, 2014).

Tradicionalmente, as teorias justificadoras da pena se dividem em absolutas, relativas e mistas, convindo alertar, no mais, que esta divisão é doutrinária, não linear, já que a finalidade da pena desenvolve-se de maneira difusa e, como acima suscitado, é tributária de seu contexto social, histórico, político, cultural e filosófico.

De maneira geral, ensina com mestria Ferrajoli:

 A diferença entre justificações absolutas ou retributivistas e justificações relativas ou utilitaristas encontra-se expressa de forma límpida em um conhecido trecho de Sêneca: as justificações do primeiro tipo são quia peccatum, ou seja, dizem respeito ao passado; aquelas do segundo, ao contrário, são ne peccetur, ou seja, referem-se ao futuro. Enquanto para as primeiras a legitimidade externa da pena é apriorística, no sentido de que não é condicionada por finalidades extrapunitivas, para as segundas, diferentemente, referida legitimidade é condicionada pela sua adequação ou não ao fim perseguido, externo ao próprio direito, e, portanto, exigindo um balanceamento concreto entre os valores do fim que justifica o “quando” da pena e o custo do meio do qual se deve justificar o “como”. (FERRAJOLI, 2002, p. 205)

2.1 Teorias absolutas

As teorias absolutas, ou retributivas, são melhor entendidas ao considerar o tipo de Estado que lhe origina. No Estado absolutista, soberano e Estado, moral, Direito e religião, se identificavam entre si. Assim, o poder soberano era concessão divina, concentrando o rei o Estado, a lei e a justiça. Nesse sentido, a pena era tida como castigo expiatório do mal, pecado cometido contra o soberano e, logo, contra o próprio Deus. Essa formação estatal, todavia, caracteriza-se também por seu caráter de transição entre baixa Idade Média e a sociedade liberal. A expansão burguesa exigiu a implementação de meios de proteção do capital, e, com o mercantilismo inicia-se o debilitamento do Estado absoluto: revisão da vinculação Estado-soberano e surgimento do Estado burguês pautado na teoria contratualista. Nesta concepção, impróprio se faz o fundamento da pena na identidade entre Deus e soberano, religião e Estado, passando a ser concebida como retribuição à perturbação jurídico-social, necessária para restauração da ordem. Busto Ramirez e Hormazábal Malarée explanam esse processo de laicização: “À expiação sucede a retribuição, a razão Divina é substituída pela razão de Estado, a lei divina pela lei dos homens” (apud BITENCOURT, 2014, p. 134).

As teorias absolutas têm enfoque no passado e apregoam a retribuição moral. A pena tem por fim não outro senão a realização de um ideal de justiça, limitando-se à compensação do mal. Escreve Ferrajoli que são teorias absolutas as doutrinas “que concebem a pena como um fim em si própria, ou seja, como “castigo”, “reação”, “reparação” ou, ainda, “retribuição” do crime, justificada por seu, intrínseco valor axiológico, vale dizer, não um meio, e tampouco um custo, mas, sim, um dever ser metajurídico que possui em si seu próprio fundamento” (2002, p. 204).

A retribuição da pena é caracterizada por ser um fim em si mesmo. Não coincidentemente, tal expressão remete ao filósofo alemão Immanuel Kant, a quem a pena trata de um imperativo categórico, ação objetivamente necessária em si mesma, natural conseqüência do delito: ao mal do crime impõe-se o mal da pena. Para a perspectiva kantiana, assevera Mirabete, “o castigo é imposto por uma exigência ética, não se tendo que vislumbrar qualquer conotação ideológica nas sanções penais” (2013, p. 230). A imposição da pena, aqui, é justificada não como meio para o alcance de fins futuros, mas por uma axiologia inerente, ou seja, por conta de um suposto débito de valor, pago com a punição.

A punição, na reflexão kantiana, é aplicada devido à infração à lei somente, não devendo nunca ser meio para alcance de fim diverso, pois isso seria travestir o homem em coisificação, inadmissível, pois este existe como um fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade (KANT, 1959). Para Kant, ainda, o ius talionis reflete um adequado modo de expressão da qualidade e quantidade da pena – apreciado sempre, adverte, por um tribunal, e não um particular. Consiste a grande valia da teoria retribucionista de Kant na limitação da pena diante da consideração da dignidade humana e na liberdade do homem, sendo inadmissível, hoje, quaisquer teorias desvinculadas da garantia individual expressa pelo princípio da culpabilidade.

Georg Hegel, por sua vez, sustentava a pena como a razão do direito, que anula o crime, a razão do delito, emprestando-se à sanção reparação ética, mas de natureza jurídica (MIRABETE; FABBRINI, 2013). Na visão hegeliana, a ordem jurídica simboliza a vontade geral, que, negada pelo delinquente, impõe o seu restabelecimento mediante a pena. Esta é, portanto, a negação da negação do Direito. Faz-se necessária a advertência de que a pena, aqui, não é vista como um mal aplicado devido a um mal interior. Irracional seria advogar por um prejuízo pela simples existência de um prejuízo prévio: é, na verdade, condição para que se trate o delinquente como racional e livre, honrando-lhe com algo justo em si e concedendo-lhe o Direito; de modo diverso, mediante princípios preventivos, os quais ameaçam o homem tal qual um animal (BITENCOURT, 2014).

A visão de Francesco Carrara (e outros representantes da Escola Clássica) aproxima-se de Hegel: o delito ofende a sociedade e lhe inflige insegurança, sendo fim primário da pena o restabelecimento da ordem externa. Insiste nas teorias retribuitivas visando à garantia da imposição da pena vinculada à reprovação da culpabilidade ante a prática delituosa.

Deste modo, sem sucesso, procurava-se não confundir a natureza da retribuição com castigo, atribuindo-lhe um caráter ora divino, ora moral, ora jurídico (MIRABETE; FABBRINI, 2013). Admoesta Bitencourt, com propriedade, acerca do equívoco teórico retributivo de:

confundir a questão relacionada com o fim geral justificador da pena (legitimação externa), isto é, porque castigar, que não pode ser outro senão um fim utilitário de prevenção de crimes no futuro, com a questão relacionada com a distribuição da pena (legitimação interna), ou seja, quando castigar, que, olhando para o fato passado, admite uma resposta retributiva, como garantia de que a condição necessária da pena é o cometimento de um crime (BITENCOURT, 2014, p. 141).

Ferrajoli adverte, nessa toada, que ao atribuir o fim de reparar o mal do delito à sanção penal, tais teorias deixam de responder por que está justificado castigar, omissão essa que permite, como efeito adverso, a legitimação de sistemas autoritários de direito penal máximo.

O fim da pena é, portanto, tão somente, realizar a Justiça mediante a compensação da culpa – pautada no questionável livre-arbítrio, capacidade racional humana de distinção entre justo e injusto – revelando um panorama liberal, individualista e idealista, no reconhecimento do Estado enquanto guardião da justiça terrena e responsável em proteger a liberdade individual, e, sobretudo, seu caráter ético-filosófico, que transcende as fronteiras terrenas e pretende aproximar-se do divino (BITENCOURT, 2014).

Critica Roxin, de maneira concisa: “La teoría de la expiación no nos puede servir, porque deja sin aclarar los prespuestos de la punibildiad, porque no están comprobados sus fundamentos y porque, como conocimiento de fe irracional y además impugnable, nos es vinculante” (1976, p. 14-15)[1].

Pode-se levantar ainda as seguintes questões: por que razão seria injusto uma pena com vistas à ressocialização, desconectada de qualquer retribuição?; e quem poderia dizer quando uma pena seria realmente justa?

Não obstante as críticas, as teorias absolutas apresentam um conteúdo talional, que, de certa forma, lhe imprimem um caráter de justiça, uma vez que a proposta de equivalência entre pena e delito enseja a ideia de proporcionalidade, avanço significativo comparado às exacerbadas sanções capitais e aflitivas que figuravam nas antigas civilizações (BARREIROS, 2008), além de fornecer um conteúdo de culpabilidade.

2.2 Teorias relativas

Tais quais as teorias absolutas, as teorias relativas concebem a pena como mal necessário, todavia, não num ideal de justiça, mas sim para a inibição de práticas delituosas futuras. Enquanto o castigo é imposto ao autor do delito, segundo as primeiras, porque delinquiu, aqui o é para que não volte a delinquir. Do passado a justificação passa para o futuro.

Assim, as chamadas doutrinas utilitaristas “justificam a pena como meio para a realização do fim utilitário da prevenção de futuros delitos” (FERRAJOLI, 2002, p. 204). Essas teorias atribuem finalidade preventiva à pena, finalidade essa que pode ser subcategorizada em duas perspectivas, geral e especial, e, cada uma destas pode ser, ainda, como explana Ferrajoli, sustentadas sob a visão das:

doutrinas de prevenção positiva e doutrinas de prevenção negativa, dependendo do fato da prevenção – especial ou geral – realizar-se positivamente, por meio da correção do delinquente ou da integração disciplinar de todos os cidadãos, ou, negativamente, por meio da neutralização daquele ou da intimidação destes. (FERRAJOLI, 2002, p. 204)

Segundo Mirabete, a prevenção geral visa intimidar todos os componentes da sociedade, enquanto a prevenção particular tem por escopo impedir a prática de novos crimes pelo delinquente, intimidando-o e/ou corrigindo-o. (MIRABETE; FABBRINI, 2013).

2.2.1 Teoria da prevenção geral

A prevenção geral tem por destinatária a sociedade, dando-se em versão negativa, ao assumir a função de dissuasão dos possíveis delinqüentes mediante a ameaça da pena ou castigo eficaz, ou positiva, ao reforçar a fidelidade dos cidadãos à ordem social.

2.2.1.1 Prevenção geral negativa

 

Em caráter negativo, visa à prevenção geral à intimidação, na qual, segundo Hassemer:

(...) existe a esperança de que os concidadãos com inclinações para a prática de crimes possam ser persuadidos, através da resposta sancionatória à violação do Direito alheio, previamente anunciada, a comportarem-se em conformidade com o Direito; esperança, enfim, de que o Direito Penal ofereça sua contribuição para o aprimoramento da sociedade (HASSEMER apud GRECO, 2008, p. 490)

 

Entre seus defensores, figuram Bentham, Beccaria, Filangieri, Schopenhauer e Feuerbach. Este, expoente desta doutrina, formula a “teoria da coação psicológica”, segundo a qual o Direito Penal é hábil a solucionar o problema da criminalidade mediante cominação penal, por um lado, ao advertir os membros da sociedade sobre os injustos que ensejam sua reação, e aplicação da pena, por outro lado, ao demonstrar-se eficaz em cumprir a ameaça que preceitua. A pena, assim, coage psicologicamente os cidadãos com a incriminação de condutas e a execução penal, atuando não física, mas psiquicamente, pautando-se na racionalidade calculista do homem, que o leva a concluir pela inconveniência da prática delituosa. Tal racionalidade, porém, revela-se questionável: se válida fosse, bastaria a aplicação da pena de morte para extinção dos crimes.

Elucidativo é enxergar que tais teorias desenvolvem-se no período iluminista, na transição do Estado absoluto para o Estado liberal, influenciadas, pois, pelas idéias de livre-arbítrio e pelo Direito Natural, pressupostos antropológicos que concebem o homem como ser racional capaz de deliberar calculadamente sobre as vantagens e desvantagens do delito. Como bem coloca Michel Foucault, o direito de punir desloca-se da vingança do soberano à defesa da sociedade, e do corpo para a alma, passando a lei a ser a grande plataforma de garantia processual e de aplicação de sanção (1987, p. 105).

Desconsidera tal teoria, no entanto, o importante aspecto psicológico da confiança na impunidade por parte do delinquente, não sendo a ameaça da imposição da pena, razão suficiente para impedimento do ato delitivo. Embora aceitável a influência da ameaça sobre o homem médio em circunstâncias de normalidade, a experiência comprova sua falha nas delinquencias profissionais, habituais e impulsivas ocasionais. Roxin reprocha: “cada delito já é, pelo só fato de existir, uma prova contra a eficácia da prevenção geral” (apud BITENCOURT, 2014, p. 145).

Guillermo Sauer censura, ainda, a exigência que tal teoria enseja aos operadores do direito em cominar e aplicar penas elevadas que, inclusive, superam a medida de culpabilidade do autor (apud BITENCOURT, 2014, p. 145).

Segundo Greco, as críticas que Hassemer levanta referem-se à violação da dignidade humana ao converter o delinquente em instrumento de intimidação de outros. Outrossim, questiona os efeitos dela esperados, uma vez que a verificação de sua eficácia escora-se em categorias empíricas imprecisas como “inequívoco conhecimento por parte de todos os cidadãos das penas cominadas e das condenações (pois do contrário o Direito Penal não atingiria o alvo que ele se propõe)” e “a motivação dos cidadãos obedientes à lei a assim se comportarem precisamente em decorrência da cominação e aplicação de penas (pois do contrário o Direito Penal como instrumento de prevenção seria supérfluo)” (2008).

Da mesma forma que ocorre com as teorias retributivas, permanece o entrave da impossibilidade de determinar o âmbito do punível, isto é, dos comportamentos legitimamente intimidáveis. Roxin e Ferrajoli acompanham, ao afirmarem a incapacidade da prevenção geral em fundamentar o poder intimidatório e estabelecer limites para esta atividade. Apesar disso, não é de todo dubitável o caráter de intimidação penal, razão pela qual a proporcionalidade entre cominação dura e efeito intimidatório deve ser uma preocupação sob pena de autenticação de um Direito Penal do terror. Bitencourt, consoante a tais críticas, objurga:

O fim de intimidação é mesmo criticável pelo fato de possibilitar a imposição de penas excessivas e resultados autoritários, especialmente porque até hoje não foi possível demonstrar a eficácia empírica do endurecimento das penas em prol da função de prevenção geral de delitos. Seu método simples e unitário de motivação através de práticas dissuasórias não é capaz de garantir o necessário equilíbrio entre merecimento e necessidade de pena. E, infelizmente, na atualidade, utiliza-se em demasia a agravação desproporcional de penas em nome de uma discutível prevenção geral. (BITENCOURT, 2014, p. 147)

Apesar das críticas, destaca-se sua capacidade de assegurar a fundamentação teórica-racional dos princípios da legalidade (a prevenção dos delitos pelo Direito Penal é melhor alcançada enquanto expressa em lei as hipóteses típicas), da materialidade (a possibilidade de prevenção restringe-se a comportamentos exteriores, excluindo intenções subjetivas) e da culpabilidade e responsabilidade individual (enquanto puníveis apenas as condutas conscientes, voluntárias e culpáveis).

2.2.1.2 Prevenção geral positiva

Como contraponto ao argumento da prevenção geral negativa de manutenção da ordem e respeito às normas mediante coação, em seu caráter positivo, a prevenção geral visa a internalização da moralidade e dos valores sociais vigentes, como aponta Queiroz:

para os defensores da prevenção integradora ou positiva, a pena presta-se não à prevenção negativa de delitos, demovendo aqueles que já tenham incorrido na prática de delito; seu propósito vai além disso: infundir, na consciência geral, a necessidade de respeito a determinados valores, exercitando a fidelidade ao direito; promovendo, em última análise, a integração social (apud GRECO, 2008, p. 490)

Em suas primeiras idealizações, a prevenção geral positiva baseia-se numa concepção comunitarista de Estado que, inspirando-se em Hegel, pressupõe uma certa consciência jurídica comum que deve ser reforçada ante a prática de um delito, que corresponde a um distanciamento subjetivo da comunidade e eticamente reprovável uma vez que afronta o ordenamento.

Hans Welzel é considerado o precursor de tal teoria, ao conceber a garantia da vigência dos valores orientadores da ação jurídica como a função ético-social do Direito Penal, relegando à prevenção negativa a sua função de proteger bens jurídicos. Nesse viés, a pena retribui a culpabilidade – ensejada pelo desvalor ético-social de sua infidelidade ao Direito – tendo por consequência o reforço da fidelidade ao direito por parte dos cidadãos. Welzel, todavia, salienta-se, defendia uma concepção retributiva de pena, sendo a retribuição justa apenas o pressuposto da prevenção geral positiva, que, na verdade, é seu efeito.

A prevenção geral positiva, e sua concepção de pena como promoção de comportamentos socialmente valiosos, foi duramente criticada em suas primeiras versões, uma vez que baseou os cruéis regimes nazifascistas.

Propugna-se, aqui, três efeitos inter-relacionados: aprendizagem via motivação sociopedagógica dos membros da sociedade, a reafirmação da confiança no Direito Penal e a pacificação social quando da solução do conflito que o delito gerou (ROXIN apud BITENCOURT, 2014). A partir dessas ideias, duas vertentes desenvolvem-se.

A primeira, chamada prevenção geral positiva fundamentadora, leva a função de reafirmação da fidelidade ao Direito para o centro do sistema penal, tendo seu apogeu na teoria de Günther Jakobs, segundo a qual a pena serve para destacar ao infrator que, apesar de sua infração, a norma persiste vigente, cumprindo sua função de estabilização social e orientação da conduta dos cidadãos (excluindo quaisquer pretensões de proteger valores de ações e bens jurídicos).

Muñoz Conde critica tal posicionamento, classificando-o de neorretribucionista, apontando que a solução do conflito realiza apenas em sua manifestação, deixando suas causas produtoras inalteradas, além de legitimar a reprodução de um inquestionável sistema social (apud BITENCOURT, 2014). Criticável, também, sua pretensão de impor coativamente determinados padrões éticos ao indivíduo e a eliminação dos limites do poder punitivo, legitimando uma política criminal democraticamente deficitária.

A segunda, denominada prevenção geral positiva limitadora, em contrapartida, sustenta que a prevenção geral deve se expressar no sentido de limitar o ius puniendi, como uma afirmação razoável do direito. O Direito Penal, visto apenas como uma dentre as várias formas de controle social, caracteriza-se pela sua formalização, no sentido de que “o exercício punitivo do Estado vê-se limitado pelos princípios e garantias reconhecidos democraticamente pela sociedade sobre a qual opera” (BITENCOURT, 2014, p. 160). Assim sendo, sem embargo de sua base relativista, voltando sua finalidade a fins futuros, acolhe o princípio da culpabilidade como fundamento da imposição de pena pelo fato passado.

Em outras palavras, a sanção formal submete-se a pressupostos e limitações não aplicáveis às outras formas de controle social, devendo subordinar-se aos limites do Direito Penal do fato e da proporcionalidade, somente podendo ser imposta mediante procedimento cercado de garantias jurídicas. Na perspectiva de Hassemer, adepto desta vertente da teoria da prevenção geral positiva, a ressocialização e a retribuição pelo fato traduzem-se em instrumentos para consecução do fim da pena, que encontra limite intransponível nos direitos do condenado.

2.2.2 Prevenção especial

A prevenção especial não busca intimidar o grupo social ou retribuir o fato praticado, mas visa o indivíduo, objetivando a sua não reincidência. Categoriza Rogério Greco:

Pela prevenção especial negativa existe uma neutralização daquele que praticou a infração penal, neutralização que ocorre com a sua segregação no cárcere. (...) Pela prevenção especial positiva, segundo Roxin “a missão da pena consiste unicamente em fazer com que o autor desista de cometer futuros delitos” (GRECO, 2008, p. 490)

As funções acima aduzidas, ressalte-se, não são contrapostas, admitindo-se, pois, a sua concorrência consoante a corrigibilidade de quem delinque.

2.2.2.1 Prevenção especial positiva

A idéia de prevenção especial positiva é a antípoda da teoria retributiva, deslocando-se a finalidade do fato passado para um objetivo vindouro: a volta do delinquente à comunidade, readaptado. São as chamadas ideologias Re: ressocialização, readaptação, reeducação, reinserção.

Na verdade, a ideia de reforma do indivíduo já podia ser percebida desde seus primórdios eclesiásticos e, com o estabelecimento das penas privativas de liberdade, como proposta à questão do que se fazer com a ociosidade do recluso.

Von Liszt, sustentando a necessidade da pena mediante critérios preventivos especiais, defende a sua aplicação visando à reeducação do delinquente, a intimidação dos que não necessitam de ressocializar-se e a neutralização dos incorrigíveis. Sinteticamente, seu pensamento pode ser traduzido em intimidação, correção e inocuização, ou mais precisamente: corrigir os corrigíveis, intimidar os intimidáveis e inocuizar os incorrigíveis.

De acordo com Bitencourt, as ideias de Von Liszt são decorrência da crise do Estado liberal, que, afetado por fatores como o desenvolvimento industrial e científico, crescimento demográfico e êxodo rural intenso, dá margem ao estabelecimento da produção capitalista. A irresignação ante a exploração industrial representava um perigo à ordem estabelecida. A pena, nesse contexto, afasta-se da necessidade de restauração da ordem jurídica ou intimidação dos cidadãos, passando a ser concebida para a defesa da sociedade, porquanto o delito, mais que violação jurídica, representa um dano social, e o delinquente um perigo social, um anormal. O Estado, antes guardião e agora intervencionista, passa a exercer o controle social baseado em argumentos científicos que supostamente permitiriam a identificação de homens bons e maus, normais e anormais. Para estes, invocar-se-ia a defesa social em razão de sua periculosidade, prescrevendo-lhes medidas ressocializadoras ou inocuizadoras. O termo medida é utilizado pelos partidários da prevenção especial justamente pela concepção do delinquente como sujeito perigoso e anormal, enquanto pena implicaria na capacidade racional do indivíduo a partir de um conceito geral de igualdade, o que não seria o caso.

Critica, Bitencourt, que a pena fundamentada estritamente em critérios preventivo-especiais:

Termina por infringir importantes princípios garantistas, especialmente a necessidade de proporcionalidade entre delito e a pena, e deriva num Direito Penal de autor difícil de sustentar. Com efeito, os pressupostos sobre os quais se apóiam as medidas de ressocialização são imprecisos, as técnicas de prognóstico são mutáveis e inseguras, sem que até hoje se haja demonstrado a eficácia empírica do fim reeducacional. (BITENCOURT, 2014, p. 154)

Acrescenta o autor, ainda, a ineficácia da teoria tratada diante do delinquente que, apesar da gravidade do delito por ele praticado, não necessite de ser intimidado, reeducado ou inocuizado, devido à improbabilidade de reincidência, levando à impunidade do autor.

Sustentável, contudo, se faz tal teoria como sentido do cumprimento da pena (e não como um fim em si). Enquanto a imposição da execução, nesse diapasão, cumpriria os objetivos da prevenção geral, em seu cumprimento a pena privativa de liberdade buscaria a ressocialização. A perspectiva terapêutica, salienta-se, encontra-se em crise ante sua ineficácia, conforme será posteriormente abordado, estando a preocupação da prevenção especial, hoje, voltada para a minimização dos efeitos dessocializadores da prisão do que propriamente a ressocialização do condenado. Assim, a doutrina dominante não considera a prevenção especial como legitimadora da pena, mas delimitadora de sua execução.

2.2.2.2 Prevenção especial negativa

Pela ótica da prevenção especial negativa, a sociedade deve se defender dos delinqüentes, isolando-os perpetua ou indeterminadamente. Essa neutralização passou por diversas estruturas, sendo influenciada pelo desenvolvimento industrial e das cidades, que gerou crescimento da violência e, portanto, uma obsessão defensista de proteger a sociedade dos marginais, parte doente do corpo social.

Pautar a pena na inutilização do criminoso é uma afronta direta à dignidade da pessoa humana, incorrendo na descartabilidade do homem (a despeito de que, quando necessária, temporal e circunstancialmente, sua neutralização seja oportuna).

A neutralização, admoesta-se, inócua seria, por efeito da realidade carcerária: crimes são cometidos de dentro dos presídios. É fato que, hoje, há uma efetiva comunicação ilegal dos presos com o exterior, comprovando que, mesmo reclusos, não representam de forma alguma uma ameaça neutralizada, comandando o tráfico, extorsões e seqüestros de dentro da cadeia.

2.2.3 Teorias mistas

São chamadas teorias mistas, ou unificadoras, as doutrinas que sustentam a dupla finalidade da pena, numa amálgama das teorias retributivas e preventivas. Decorrem da percepção da incapacidade das soluções monistas para os intrincados acontecimentos de que se encarregam o Direito Penal.

De acordo com Mirabete, “passou-se a entender que a pena, por sua natureza, é retributiva, tem seu aspecto moral, mas sua finalidade é não só prevenção, mas também um misto de educação e correção” (2013, p. 231). Acentua Everardo Cunha, nesse sentido, que “a retribuição, sem a prevenção, é vingança; a prevenção, sem a retribuição, é desonra”, sendo assim, prevenção e retribuição são duas faces da mesma moeda (apud MIRABETE; FABBRINI, 2013).

A fundamentação da pena não deve extrapolar o próprio delito, afastando-se, desta forma, o equívoco das teorias preventivas em priorizar a justificação externa da pena (por que se pune) sem antes justificá-la internamente (quando se pune). A prevenção geral negativa e positiva, respectivamente, são incapazes de explicar o porquê de a prática delituosa ser condição para a pena e oferecer uma justificação válida baseada em valores que limitem o poder punitivo. A crítica quanto à ausência de explicação satisfatória para a legitimidade do quando punir cabe, também, ao argumento preventivo-especial (uma vez que é baseado não no fato delituoso passado, mas no que pode o delinquente vir a fazer se não tratado a tempo).

Mur Puig distingue duas posições nessa teoria: conservadora, baseada na retribuição justa e, complementariamente, fins preventivos; e progressista, baseada na defesa da sociedade e proteção de bens jurídicos, sendo a retribuição apenas condição de limitação máxima às exigências da prevenção, impedindo a sua maximização para além do fato.

Inicialmente, todavia, tais teorias se limitaram a justapor as teorizações preventivas e retribucionistas, retribuindo, pois, suas insuficiências. Roxin critica duramente a simples adição dessas concepções distintas de pena, que não só caem em incongruência lógica como aumentam o âmbito aplicativo da pena, convertendo-a em reação apta a qualquer utilização. Propõe o doutrinador a sua teoria unificadora dialética.

Diferencia os fins da pena e do Direito Penal: se este visa à proteção subsidiária dos bens jurídicos e a preservação da ordem social partindo daí, mediante tal propósito somente poder-se-ia determinar quais condutas o Estado poderia sancionar, não estando previamente definidos quais efeitos deve surtir a pena para cumprimento dessa missão. Nesse diapasão, a finalidade da pena somente pode ser preventiva, perseguindo o fim de prevenir delitos, pois assim protege-se a liberdade individual e o sistema social. Assim, a pena deve ter em vista a ressocialização quando possível (inadmitindo reeducação forçada) e projetar seus efeitos sobre a sociedade ao demonstrar a eficácia das normas mediante a imposição da pena, motivando o respeito à lei e a não infração, numa combinação de prevenção geral negativa e positiva. Roxin rechaça a ideia de retribuição, argumentando que “las instituciones jurídicas no tienen "esencia" alguna independiente de sus fines, sino que esa "esencia" se determina mediante el fin que con ellos quiere alcanzarse”[2] (1997, p. 98-99).

O princípio da culpabilidade adquire função secundária, perdendo seu vínculo retributivo e passando a servir de limite máximo da pena aplicada (ainda que os fins preventivos aconselhem sua ultrapassagem): isto porque a sensação de justiça exige que ninguém possa ser castigado além do que merece, e merecida faz-se somente a pena em conformidade com a culpabilidade. Por outro lado, sob a ideia de prevenção, nada impede a fixação de limites inferiores à culpabilidade, ou seja, “a pena adequada à culpabilidade nunca poderá ser aumentada, mas pode ser reduzida de acordo com fins preventivos” (BITENCOURT, 2014, p. 158). Em contrapartida, este esvaziamento do conteúdo material da culpabilidade é criticável, segundo Bitencourt, uma vez que o cumprimento da prevenção geral lhe é dependente de uma pena justa, e esta se dá na medida em que a necessidade e possibilidade de prevenção deduzem-se da culpabilidade enquanto fundamento da pena.

Mur Puig bem delineia uma percepção unificadora contemporânea: “a retribuição, a prevenção geral e a prevenção especial são distintos aspectos de um mesmo fenômeno complexo que é a pena” (BITENCOURT, 2014, p. 155).

2.2.4 Teorias abolicionistas e Garantismo penal

Partindo da ótica de como se opera a pena na realidade, e da histórica e reiterada incapacidade de se promover quaisquer finalidades propostas, algumas correntes advogam que é incabível qualquer teoria que pretenda uma justificação da pena, uma vez que, por sua própria natureza, seria uma negação do direito, tal qual a guerra. Assim, a legitimação do poder punitivo, é contrária a um Estado democrático.

Uma pena legítima, pois, só é admissível em conformidade à assunção da sua irracionalidade inerente, destinando-se tão somente à minimização dos efeitos que dela decorram.

As correntes abolicionistas defendem a ilegitimidade irreversível da pena, assim como de qualquer constrição social. Dessa forma, a pena institucionalizada é injustificável numa democracia, devendo conferir sua tutela ao controle social informal. Muitos críticos consideram essas teorias utópicas, sustentando que negar institucionalização da coerção é uma involução, o que conduziria à lei do mais forte e à ilimitação da intervenção privada. Seus méritos, no entanto, recaem no refinamento teórico e no recaimento do ônus da legitimidade ao justificacionismo.

Mesmo com o objetivo final de abolir a instituição carcerária, assume Alessandro Baratta que:

as faces de aproximação a este objetivo são múltiplas e diferenciadas… constituem-se pela extensão do sistema de medidas alternativas, por uma ampliação das formas de suspensão condicional e da liberdade condicional, pela introdução de formas de execução de pena privativa da liberdade em regime de semiliberdade, pela experiência animada e pela extensão do regime de permissões, enfim, por uma revalorização do trabalho carcerário em todos os sentidos. (apud SILVA, 1991, p. 17)

O Garantismo penal propõe a minimização do Direito Penal e a maximização dos Direitos Humanos. A pena, dessa forma, é legítima na medida em que opera na defesa da sociedade e do indivíduo, assegurando sua dignidade e desenvolvendo-se com aproximação da realidade.

3 FINALIDADE DA PENA NO BRASIL

Os primeiros ordenamentos brasileiros, do período colonial ao fim do século XIX, acompanham um retributivismo penal de maneira geral. Até o início do período republicano, a pena de morte ainda vigorava e a pena não era dotada de caráter preventivo.

No Brasil, a pena assume caráter correcional, como disposto no primeiro capítulo, com o Código Penal de 1890. Mas, é com o Código Penal de 1940, fortemente influenciado pela escola positivista e pelo Código Rocco italiano, que a finalidade preventiva especial se destaca. A execução da pena visava à reabilitação do condenado, quando possível, impondo-o os padrões sociais vigentes sem quaisquer considerações acerca de sua individualidade. A acentuação da prevenção especial coativa é perceptível: persistia a prisão enquanto o recluso não se adaptasse aos objetivos reeducativos.

Após o término da segunda guerra mundial, o mundo presenciou uma considerável reação humanista e humanitária que acaba por redirecionar o direito penal e desenvolver novas teorias como a da Nova Defesa Social. A discussão acerca dos problemas carcerários reacende no Brasil em meados dos anos 70, culminando na reforma penal de 1984 que supre a inexistência de posicionamento legislativo expresso acerca das finalidades da pena – malgrado, segundo Luiz Flávio Gomes, tradição doutrinária de filiação às teorias mistas. Deste modo, o artigo 59 do Código Penal aponta:

O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime (...) (BRASIL, 1940) (grifo nosso)

O Direito brasileiro acolhe, portanto, a teoria unificadora da pena, acatando a ideologia da defesa social e tendo por escopo recuperar o criminoso, reintegrando-o à comunidade, mas passando a considerá-lo não um mero objeto de execução, mas sujeito; e diferente não poderia ser, uma vez que o condenado é também parte integrante da sociedade e, antes ainda disso, pessoa, portanto, sujeito de direitos inalienáveis que se fundamentam na ordem constitucional brasileira e no Estado Democrático de Direito. Normatiza a Lei de Execução Penal (LEP) de forma clara:

Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.

Art. 10. A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade. (BRASIL, 1984) (grifo nosso)

É nesse sentido que a LEP traz em seu conteúdo uma série de direitos com o escopo de orientar a reinserção social, como proteção à saúde, educação, dignidade, respeito, incolumidade física, bem como fomenta o envolvimento social e a participação do recluso em atividades laborais e culturais.

A Constituição Federal de 1988, por sua vez, não explicita a finalidade da pena, mas traz diversos mecanismos que a regula e orienta uma série de mecanismos de contenção da reação penal como a proibição de penas degradantes e a previsão de pena individualizada. Sua base principiológica permite-nos deduzir, portanto, que no Estado democrático brasileiro, a finalidade da pena encontra limites intransponíveis na dignidade da pessoa humana – inclusive (e talvez, sobretudo) no tocante à ressocialização, uma vez que a sua tradicional imposição coativa traduzir-se-ia em violação constitucional. Assim, o pluralismo ideológico que a Constituição Federal garante afasta

A pena privativa de liberdade tornou-se a pena, por excelência, utilizada nos Estados modernos para o alcance desses objetivos. Raul Cervini esclarece que:

A prisão, como sanção penal de imposição generalizada não é uma instituição antiga e que as razões históricas para manter uma pessoa reclusa foram, a princípio, o desejo de que mediante a privação da liberdade retribuísse à sociedade o mal causado por sua conduta inadequada; mais tarde, obriga-la a frear seus impulsos anti-sociais e mais recentemente o propósito teórico de reabilitá-la” (apud GRECO, 2008, p. 493).

Embora as citadas previsões normativas e sistematizações doutrinárias, a violência e a criminalidade continuam a ser problemas sociais, restringindo os avanços à teoria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A sobrevivência da sociedade é dependente de regulação, constituindo a pena o controle social que resguarda a coexistência dos homens contra as condutas mais reprováveis. A forma com que se opera ao longo da história encontra diferentes meios, justificativas e finalidades – a resposta penal passa por suplícios corporais metafisicamente fundamentados e vai abandonando seu caráter de vendeta e agressividade ilimitada, adquirindo, gradativamente, contornos mais institucionais e sentido mais humanista, com o surgimento das prisões e seu progressivo aprimoramento teórico e operacional.

As teorizações sobre sua finalidade, por sua vez, são tradicionalmente categorizadas em doutrinas retributivas, utilitárias e mistas, que concebem a pena com o objetivo de, respectivamente, compensar a conduta delitiva, prevenir futuros delitos ou ambas. Conforma citado, há, ainda, teorias abolicionistas, que propõem a ausência de finalidade para a pena, tratando-se esta de exercício de um poder político.

Embasam a finalidade da pena no Brasil a reprovação do crime e, como primado, a ressocialização do condenado. Não obstante os esforços doutrinários e legislativos, a práxis não acompanha a teoria, revelando um abissal distanciamento entre a programação normativa e sua operacionalidade – a realidade carcerária não apenas é incapaz de alcançar a finalidade ressocializadora da pena como contribui em grande parte para que não o seja.

REFERÊNCIAS

 

BARREIROS, Yvana Savedra de Andrade. A ilegitimidade da pena privativa de liberdade à luz dos fins teóricos da pena no sistema jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1798, 3 jun. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/11332>. Acesso em: 16 abr. 2015.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral I – 20. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2014.

BRASIL. Lei de Execução Penal. Lei 7.210 de 11 de julho de 1984.

BRASIL. Código Penal. Decreto-lei n° 2.848 de 7 de dezembro de 1940.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução: Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. – 10ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008.

KANT, Immanuel. Crítica à Razão Prática. Digitalização da edição em papel da Edições e Publicações Brasil Editora S.A., São Paulo, 1959.

MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Manual de direito penal, volume 1 : parte geral, arts. 1° a 120 do CP. 29ª ed. – São Paulo : Atlas, 2013.

JESUS, Damásio E. de. Direito penal, volume I: parte geral – 31. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2010.

OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão: um paradoxo social – 3. Ed – Florianópolis: Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 2003.

RODRIGUES, Anabela Miranda. A posição jurídica do recluso na excecução da pena privativa de liberdade: seu fundamento e âmbito. São Paulo : IBCCrim, 1999.

ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General – Tomo I. Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Madri (Espanha), Editorial Civitas, 1997.

ROXIN, Claus. Problemas básicos del derecho penal. Madrid: Reus S.A., 1976.

SILVA, Evandro Lins e. Capítulo I: De Beccaria a Filippo gramática. Sistema penal para o terceiro milênio : atos do colóquio Marc Ancel / Organização: João Marcello de Araujo Júnior. Rio de Janeiro : Revan, 1991. Disponível em: http://www.fragoso.com.br/eng/arq_pdf/artigoshomenagem/arquivo6.pdf. Acesso em: 29/04/2015

SILVA, Thiago Mota Fontenele e. Da Genealogia do Castigo. 2004. 80 f. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2004.


[1] “A teoria da expiação não nos pode servir, porque deixa obscuros os pressupostos da punibilidade, porque não estão comprovados os seus fundamentos e porque, como conhecimento de fé irracional e ademais impugnável, não é vinculante” (tradução do autor)

[2] “As instituições jurídicas não têm “essência” alguma independente de seus fins, pelo contrário, essa “essência” se determina mediante o fim que com elas se quer alcançar”. (tradução do autor)



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