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Da vedação ao comportamento contraditório e da sua aplicação no âmbito das matérias de ordem pública

Da vedação ao comportamento contraditório e da sua aplicação no âmbito das matérias de ordem pública

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O presente trabalho tem por desiderato conceituar o instituto do "nemo potest venire contra factum proprium", bem como esmiuçar brevemente acerca da sua aplicação quando das chamadas nulidades absolutas.

Prevê o artigo 243 do Código de Processo Civil/73, correspondente ao artigo 276 do NOVO CPC de 2015, em que se manteve a redação original:

Quando a lei prescrever determinada forma sob pena de nulidade, a decretação desta não pode ser requerida pela parte que lhe deu causa. ”

Destarte, não se poderia olvidar que a qualquer das partes, tendo sido responsável pela produção de um defeito/vício dentro do processo, fosse permitido, ainda que em momento oportuno, requerer a decretação de invalidade do ato processual, beneficiando-se dos efeitos que desta lhe resulta.

Opera-se a chamada preclusão lógica, conforme explicita Luiz Guilherme Marinoni: “ (...) a extinção do direito de efetivar certo ato processual também pode derivar da prática de algum ato com ele incompatível. Dessa forma, se a parte renuncia ao direito de recorrer, certamente não poderá manifestar interesse em oferecer recurso, já que praticara anteriormente ato incompatível com a segunda faculdade. A perda do direito de recorrer resulta da prática de ato logicamente inconciliável com aquele” (2008, p.640).

Neste sentido, preza-se pela segurança jurídica no processo, de modo a promover os princípios da boa-fé, da confiança, da lealdade, bem como da solidariedade e cooperação processual.

           Ademais, com base no princípio da proibição do retrocesso, no âmbito do direito constitucional brasileiro, Ingo Sarlet discorre que:

 “(...) O princípio da proteção da confiança, na condição de elemento nuclear do Estado de Direito (além da sua íntima conexão com a própria segurança jurídica) impõe ao poder público – inclusive (mas não exclusivamente) como exigência da boa-fé nas relações com os particulares -  o respeito pela confiança depositada pelos indivíduos em relação a uma certa estabilidade e continuidade da ordem jurídica como um todo e das relações jurídicas especificamente consideradas; (...) “ (2010, p.26).

Sendo assim, os princípios da confiança e da boa-fé processual já se encontram consolidados doutrinária e jurisprudencialmente, gozando de pleno respeito dentro dos Tribunais e do ordenamento jurídico. Poder-se-ia inclusive, equiparar tais princípios aos direitos fundamentais, uma vez que o rol previsto no artigo 5° da Constituição Federal é não taxativo, e assegura, com base no inciso LV, o direito à ampla defesa e ao contraditório.

Apesar de configurar-se entendimento basal a qualquer estudante de direito, importante se faz aqui indicar uma conceituação, ainda que bastante simples, muito efetiva acerca das chamadas nulidades processuais.

Daniel Francisco Mitidiero (2005, p.10), explica que as nulidades podem ser classificadas em absolutas ou relativas, de modo que ambas representam infrações a normas cogentes (de aplicação independente da vontade do destinatário), sendo que com relação as de caráter absoluto, prevaleceriam fins ditados pelo interesse público, enquanto que as de caráter relativo envolveriam interesses particulares.

Com base no entendimento acima esposado, tem-se que as matérias ditas de ordem pública, qual seja aquelas que podem acarretar nulidades absolutas, dada a sua gravidade poderiam, a priori, ser alegadas por qualquer das partes (incluindo-se o magistrado), bem como ser reconhecidas a qualquer tempo e grau de jurisdição.

O rol taxativo do artigo 301 do Código de Processo Civil/73 correspondente ao artigo 337 do NOVO CPC/15, elenca as seguintes hipóteses:

“Art. 301.  Compete-lhe, porém, antes de discutir o mérito, alegar:

I - inexistência ou nulidade da citação;

II - incompetência absoluta;

III- inépcia da petição inicial;

IV - perempção;

V - litispendência;

VI - coisa julgada;

VII - conexão;

VIII - incapacidade da parte, defeito de representação ou falta de autorização;

IX - convenção de arbitragem;

X – carência de ação;

XI - falta de caução ou de outra prestação que a lei exige como preliminar;”

Apesar de o NOVO CPC ter acrescentado novas hipóteses, como por exemplo: a incorreção do valor da causa, ausência de legitimidade ou de interesse processual, bem como a indevida concessão do benefício da gratuidade de justiça, a regra geral se mantém. Para as situações acima elencadas, com base na vertente majoritária dos Tribunais, a parte responsável pela prática do ato viciado teria legitimidade para alega-lo.

A fim de demonstrar o entendimento que prevalece nos Tribunais, segue julgado com base na alegação de vício por incompetência absoluta da matéria:

“(...) Em relação ao art. 243 da Lei Processual Civil ("Quando a lei prescrever determinada forma, sob pena de nulidade, a decretação desta não pode ser requerida pela parte que Ihe deu causa"), trata-se de dispositivo que não tem aplicação quanto às nulidades absolutas, como a competência em razão da matéria, o que afasta a alegação de que teria sido malferido. A esse respeito, segue o escólio de Cândido Rangel Dinamarco: “O mais amplo dos postulados referentes às nulidades absolutas é o dever que tem o juiz de proclamá-las, anulando o ato ou o procedimento, a pedido da parte ou mesmo ex officio, a todo tempo ou em qualquer grau jurisdicional ordinário (CPC, art. 245, parágrafo único). É claro que, devendo pronunciar as nulidades absolutas ex officio, com mais fortes razões há de fazê-lo também quando a parte o requerer – e mesmo quando ela própria haja dado causa à nulidade” (Instituições de Direito Processual Civil. Vol. II. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 593). Nesse sentido, aliás, estabelece o artigo 113 do Código de Processo Civil que a incompetência absoluta "deve ser declarada de ofício e pode ser alegada em qualquer tempo ou grau de jurisdição, independentemente de exceção” (REsp 961407/SP, Rel. Ministro PAULO GALLOTTI, Rel. p/ Acórdão Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 19/08/2008, DJe 06/10/2008)

Dessa forma, haveria vícios dentro do processo, em que dada a sua amplitude e seu revestimento de matéria de ordem pública, ultrapassariam a esfera de interesse particular das partes, a ponto de menoscabar até mesmo os princípios da confiança e da boa-fé processual.

Contudo, cabe-nos uma importante reflexão:

O que permite que se de um tratamento diferenciado às matérias ditas de ordem pública em relação às matérias ditas de interesse particular? 

Ou ainda, qual o motivo de aquelas prevalecerem sobre estas?

Apesar de não se configurar tendência nos tribunais, não resta impossível a tarefa de se encontrar julgados que defendam entendimentos contrários em relação às nulidades absolutas.

É o que se depreende dos julgados abaixo transcritos:

“(...) em matéria de nulidade, nos termos do art. 243 do CPC, ‘a parte que dá causa à nulidade (ainda que absoluta) não poderá jamais requerer sua decretação” (TRF5, Apelação Cível n. 289679 PB 0010139-64.2002.4.05.0000, Relator: Desembargador Federal Ubaldo Ataíde Cavalcante, Data de Julgamento: 13/12/2007, Primeira Turma, Data de Publicação: 28/03/2008).

 

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE REPRESENTAÇÃO PROCESSUAL. A PARTE QUE DEU CAUSA À SUPOSTA NULIDADE NÃO PODE INVOCÁ-LA EM SEU PROVEITO. ART. 243 DO CPC. Alegação da parte executada no sentido de ter outorgado procuração apenas para o fim especial de embargar à execução proposta pela exequente, e não para fins de representação em relação aos atos executórios. Nulidade inexistente, porquanto a parte que a invoca pretende beneficiar-se com sua decretação. Art. 243 do CPC. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO” (TJ-RS - AG: 70053744504 RS, Relator: Voltaire de Lima Moraes, Data de Julgamento: 07/05/2013, Décima Nona Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 10/05/2013).

Eduardo Scarparo defende que não há que se falar em hierarquia entre o interesse público e o privado, não se tratando de interesses antagônicos, mas identificáveis entre si (2013, p.91).

Ademais, assevera Fredie Didier:

“De fato, a proibição de comportamento contraditório não tem por fim a manutenção de coerência por si só, mas afigura-se razoável apenas quando e na medida em que a incoerência, a contradição aos próprios atos, possa violar expectativas despertadas em outrem e assim causar-lhes prejuízo. ” (2012, p.18).

Fredie Didier ainda alega não ser razoável defender a ilicitude derivada apenas de comportamentos contraditórios quando da defesa de interesses de ordem pública. Defende a aplicação da proporcionalidade, analisando-se em concreto a existência ou não deste interesse cogente.

Ou seja, a supremacia do interesse público não deverá ser aplicada aprioristicamente, de forma abstrata, sendo que a permissão ao comportamento contraditório deverá configurar-se exceção, ponderando-se de um lado a declaração de nulidade e de outro a tutela da confiança e da solidariedade processual (2012, p.25).

Faz-se necessário, ainda que brevemente e apesar de não ser o foco do presente trabalho, mencionar que o NOVO CPC, que entrará em vigor a partir de março de 2016, acrescentou o capítulo “Das normas fundamentais do Processo Civil”, incluindo como norma de direito fundamental positivada pelo artigo 6°, o princípio da “primazia da decisão de mérito”:

 “Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”.

Desta forma, o processo que não analisa o mérito, ou seja, a decisão que invalida, é uma decisão ruim, malgrado o tempo, dinheiro e esforços, tanto das partes quanto do magistrado, não se conseguiu resolver o litígio. Por esta razão, mesmo a partir da verificação da existência de um vício dentro do processo, deve-se analisar se este ocasionou efetivamente ou não um prejuízo, sendo a invalidação considerada a ultima ratio.

Como regra geral, mesmo que o processo se encontre eivado de defeitos/vícios insanáveis, se estes não geraram prejuízo, então não há que se falar em nulidade.

CONCLUSÃO

É imperioso pensar que o processo não deve estar adstrito ao formalismo das normas, mas apto a produzir seus efeitos realisticamente.

 Tem-se que o ordenamento jurídico não pode ser aplicado às cegas pelos operadores do direito, sendo que a formação de bons profissionais, bem como a experiência do magistrado são de extrema relevância para o bom trâmite processual. Não basta a lei, mas a sua devida interpretação, não podendo esta se desviar da verdadeira intenção do legislador ao criar a norma. Ademais, o respeito aos princípios e regras de direito é o que tem o poder de direcionar e conduzir o processo eficazmente, tomando-se como base os ideais já consagrados social e juridicamente.

 A vedação ao comportamento contraditório deve ser analisada à luz do caso concreto, na constatação da produção de prejuízo. Ressalta-se ademais, que fazer distinções aprioristicamente, ainda que com relação às matérias de ordem pública, não afasta a violação do dever de segurança jurídica, dever este que deve perpetuar durante todo o feito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXANDRE COELHO, Fábio. Teoria Geral do Processo. Editora: Juarez de Oliveira - 2ª ed. São Paulo, 2007.

DIDIER JÚNIOR, Fredie. Comportamento da parte e interpretação da coisa julgada: O caso do campeonato brasileiro de futebol de 1987. Acesso em: http://www.frediedidier.com.br/artigos/comportamento-da-parte-e-interpretacao-da-coisa-julgada-o-caso-do-campeonato-brasileiro-de-futebol-de-1987/ Salvador-BA, 2012.

_____________________. A invalidação dos atos processuais no processo civil brasileiro. Acesso em:http://www.frediedidier.com.br/artigos/a-invalidacao-dos-atos-processuais-no-processo-civil-brasileiro/ Salvador-BA, 2012.

FRANCISCO MITIDIERO, Daniel. O problema da invalidade dos atos processuais no Direito Processual Civil brasileiro contemporâneo. Revista de Direito Processual Civil. Curitiba: Gênesis, N.35, 2005.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de Conhecimento. Editora: Revista dos Tribunais. 7ª edição. São Paulo, 2008.

MARTINS COSTA, Judith. A ilicitude derivada do exercício contraditório de um direito: o renascer do venire contra factum proprium. Revista n. 376, p. 110 - Forense.Rio de Janeiro: Forense, 2004. 

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais, e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro. Revista eletrônica sobre a reforma do Estado. Salvador-BA. Março/Abril/Maio de 2010.

SCARPARO, Eduardo. As invalidades processuais civis na perspectiva do formalismo-valorativo. Editora: Livraria do Advogado. Porto Alegre, 2013.



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