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O entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre o fenômeno a serendipidade:encontro fortuito de provas

O entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre o fenômeno a serendipidade:encontro fortuito de provas

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O “encontro fortuito de provas” vem sendo aplicado com mais frequência pelo judiciário brasileiro, em razão das operações da Polícia Federal.

O fenômeno denominado de “serendipidade”, “encontro fortuito de provas”, “encontro casual de provas” ou “encontro eventual de provas” se origina da lenda oriental “Os três príncipes de Serendip”.[1] Com mais minúcia, Alberto Consolaro explica que:

O termo serendipidade advém de um conto de fadas persas sobre “Os três príncipes de Serendip”. O nome Serendip refere-se à denominação árabe de um antigo país que também já foi conhecido como Ceilão e atualmente chama-se Sri Lanka ou Terra Resplandecente. O país é uma ilha a leste da Índia, na Ásia. No conto, os três príncipes de Serendip faziam muitas descobertas e todas por “acidente” ou “acaso”, sempre com muita sagacidade, fino senso de observação e uma grande capacidade em fazer deduções.

A origem do termo serendipidade a partir deste conto de fadas pode ter outra interpretação. Os três príncipes foram chamados pelo pai, o rei de Serendip, imediatamente antes da morte, para transferir o poder e dizer que havia um grande tesouro muito próximo da superfície em suas terras. Terminado os ritos funerais, os três príncipes mobilizaram os homens do reino para cavar e revolver a terra.

Anos após anos de trabalho nenhum tesouro foi encontrado, mas a terra ficou tão revolvida que as colheitas foram as maiores de toda a história daquele reino. No lugar do tesouro que procuravam, encontraram as colheitas abundantes e a sabedoria do rei ficou conhecida como serendipidade em sua homenagem.[2]

A partir dessa história, Horace Walpole desenvolve sua tese sobre o que significa a serendipidade, ipsis litteris:

Inventado em 1754 pelo inglês Horace Walpole, o termo serendipidade expressa um [...] estado de espírito, um poder de percepção aberto à experiência, à curiosidade, ao acaso e à imaginação, que ao longo dos séculos esteve na origem de grandes eventos históricos (como a invenção acidental da penicilina por Alexander Fleming ou a descoberta da América por Cristóvão Colombo).[3]

Um exemplo recente é a operação “Lava Jato”, que tinha o objetivo inicial de investigar e desarticular quatro organizações criminosas lideradas por doleiros, que usavam uma rede de postos de combustíveis e de “lava jato” ou “lava rápido” de automóveis para movimentar recursos ilícitos pertencentes a uma das organizações investigadas.[4]

No decorrer das investigações, o Ministério Público Federal (MPF) recolheu elementos que apontavam para a existência de um esquema criminoso de corrupção envolvendo a Petrobras, tornando-se na maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro já vista no Brasil.[5]

Assim, como se observa, no curso de alguma interceptação telefônica ou no cumprimento de um mandado de busca e apreensão, podem surgir informações sobre outros fatos penalmente relevantes, nem sempre relacionados com a situação investigada, e que, como decorrência, envolvem outras pessoas.[6]

Luiz Flávio Gomes e Rogério Sanches Cunha apresentam conclusão interessante sobre a serendipidade, quando houver conexão ou continência, aduzindo que:

[...] se o fato objeto do “encontro fortuito” é conexo ou tem relação de continência (concurso formal) com o fato investigado, é válida a interceptação telefônica como meio probatório, inclusive quanto ao fato extra descoberto. Essa prova deve ser valorada pelo juiz. Exemplo: autorização dada para a investigação de um tráfico de entorpecente; descobre-se fortuitamente um homicídio, em conexão teleológica. De outra parte, se se descobre o envolvimento de outra pessoa no crime investigado (de tal forma a caracterizar a continência do art. 77), também é válido tal meio probatório. Nessas duas hipóteses, em suma, a transcrição final da captação feita vale legitimamente como meio probatório e serve para afetar (“enervar”) o princípio da presunção de inocência.[7]

Inicialmente, tanto o Superior Tribunal de Justiça (STJ), quanto o Supremo Tribunal Federal (STF), estabeleceram a orientação de que, se o fato objeto do encontro casual possui conexão com o fato investigado, é válida a interceptação telefônica como meio de prova.[8] Segundo o entendimento de Júlio Medeiros, ipsis litteris:

Na realidade, é perfeitamente admissível o encontro fortuito ou eventual de provas referentes a crime diverso do investigado desde que haja conexão entre eles e sejam de responsabilidade do mesmo sujeito passivo, assim como ocorreu no caso “sub judice”, aplicando-se no ponto a serendipidade (do inglês serendipity, que significa buscar uma coisa e encontrar outra; descobertas relevantes ao acaso), adotada pelo Supremo Tribunal Federal (HC 84.224/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 13.12.2005) a partir de investigações procedidas na denominada “Operação Anaconda”.[9]

Todavia, salienta-se que já existem alguns julgados mais recentes, admitindo-se a colheita acidental de provas até mesmo sem conexão entre os delitos. Por exemplo, no dia 15 de abril de 2015, o Ministro João Otávio de Noronha abordou o tema na Ação Penal (AP) nº 690 durante a sessão em que o STJ recebeu denúncia contra envolvidos em um esquema de venda de decisões judiciais no Tocantins.[10]

Já que, a investigação inicialmente foi proposta para apurar uso de moeda falsa, contudo a Justiça Federal do estado de Tocantins percebeu que as escutas telefônicas revelavam possível negociação de decisões judiciais pelos desembargadores. Em seguida, a investigação foi remetida ao STJ, por conta do foro privilegiado das autoridades.[11]

Em outra oportunidade, mais precisamente no Habeas Corpus (HC) nº 187.189, de 2013, o Ministro Geraldo Og Nicéas Marques Fernandes asseverou ser legítima a utilização de informações adquiridas em interceptação telefônica para apurar conduta diversa daquela que originou a quebra de sigilo, desde que através dela se tenha descoberto fortuitamente a prática de outros delitos. Caso contrário, “significaria a inversão lógica do próprio sistema”.[12]

O caso em espeque tratava de denúncia formulada pelo MPF a partir de desdobramento da operação “Bola de Fogo”, que tinha a finalidade de apurar a prática de contrabando e descaminho de cigarros na fronteira, mas a denúncia acabou sendo em relação a formação de quadrilha e lavagem de dinheiro.[13] Segundo o Ministro Fernandes:

“Não se pode esperar ou mesmo exigir que a autoridade policial, no momento em que dá início a uma investigação, saiba exatamente o que irá encontrar, definindo, de antemão, quais são os crimes configurados”.[14] E o mesmo emendou que:

“[...], é muito natural que a autoridade policial, diante de indícios concretos da prática de crimes, dê início a uma investigação e, depois de um tempo colhendo dados, descubra algo muito maior do que supunha ocorrer”.[15]

Ainda, no julgamento do HC nº 189.735, de 2010, o Ministro Jorge Mussi destacou que se a autoridade policial tem ciência do cometimento de novos ilícitos dos investigados, é sua obrigação apurá-los, mesmo que não possuam conexão alguma com os crimes cuja suspeita originariamente ensejou a quebra do sigilo telefônico.[16]

No caso acima, a “Operação Turquia” investigou irregularidades na importação de medicamentos, entretanto após meses de monitoramento, concluiu-se que os suspeitos tinham desistido da ação, mas revelaram relações “promíscuas” de servidores públicos com a iniciativa privada.[17]

Assim, desmembrou-se o inquérito para a apuração dessas outras condutas, originando a “Operação Duty Free”, com autorização de escutas sobre novos agentes, supostamente membros de uma quadrilha formada para praticar diversos crimes que não guardariam qualquer relação com os fatos antes investigados na Operação Turquia.[18]

Entretanto, a doutrina pátria ainda diverge sobre a possibilidade de se usar o encontro casual de prova, quando não houver conexão com o delito originalmente investigado. Dessa forma, de acordo com Adalberto José Queiroz Telles de Camargo Aranha Filho, o encontro fortuito não poderá servir como prova em nenhuma hipótese:

[...] a prova obtida pela interceptação deve corresponder ao fundamento apresentado e que serviu de base para a autorização judicial. Fora de tal hipótese, estar-se-ia usando de uma prova ilícita quanto ao modo em que colhida, porque fugiu dos preceitos legais que exigem um pedido com fundamentação certa, contra pessoa determinada, e que, como tal, serviu de base à autorização judicial concedida. Estar-se-ia burlando a própria fundamentação da autorização judicial.[19]

Com entendimento contrário, Fernando Capez entende que a autorização de interceptação telefônica vale para qualquer crime eventualmente descoberto e não somente para aquele que se está investigando, uma vez que a autoridade não tem condições de adivinhar tudo o que vai acontecer.[20]

No Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) nº 28.794, em 2012, a Quinta Turma do STJ entendeu que a jurisprudência aceita a possibilidade de se investigar um fato delituoso de terceira pessoa descoberta fortuitamente, desde que exista relação com o objeto da investigação original.[21]

Quando se tratar de prática futura de um delito, existe precedente do STJ, de que não se deve exigir a demonstração de conexão entre o fato investigado e aquele descoberto por acaso em escutas legais (HC nº 69.552, de 2006).[22]

No julgado supratranscrito, as interceptações eram direcionadas a terceiro alheio ao processo, mas revelaram que uma quadrilha aspirava assaltar instituições bancárias. Para o Ministro Félix Fischer, a exigência de conexão entre o fato investigado e o fato encontrado fortuitamente somente é obrigatória para as infrações penais passadas.[23]

Outra situação interessante é o encontro fortuito de provas de crimes na quebra de sigilo bancário e fiscal. No HC nº 282.096, em 2013, a Sexta Turma do STJ reconheceu a legalidade das provas que levaram a uma denúncia por peculato, crime que não tinha dado causa às quebras citadas.[24]

A Sexta Turma da Corte supramencionada já analisou a serendipidade no cumprimento de mandado de busca e apreensão. No RHC nº 45.267, de 2014, o mandado autorizava apreender documentos e mídias em determinado imóvel pertencente à investigada, suspeita de receber propina em função de cargo público.[25]

Ocorre que, no cumprimento da medida, a polícia acabou apreendendo material que foi identificado como do marido da investigada, ao analisar o conteúdo, constatou vários indícios de que ele também teria participação no suposto esquema, sobretudo na lavagem do dinheiro recebido pela mulher.[26]

Em mais um julgamento, também na Sexta Turma do STJ (RHC nº 41.316, de 2013), os ministros analisaram um caso em que, no cumprimento de mandado de busca e apreensão, foram encontrados armas e cartuchos na residência do investigado, dando início a uma nova ação penal.[27]

A relatora, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, destacou que, como o delito do artigo 16, da Lei nº 10.826/2003 é permanente, o flagrante persiste enquanto as armas e munições estiverem em poder do agente. As provas encontradas fortuitamente foram consideradas legais.[28]

Conclui-se que, o encontro fortuito de provas está sendo cada vez mais empregado pelos Tribunais brasileiros e os doutrinadores pátrios igualmente, em sua maioria, entendem que a sua aplicação é benéfica para o deslinde de crimes ocultos ou até mesmo de delitos mais graves do que aquele que estava sendo investigado em um primeiro momento, principalmente daqueles provenientes de organizações criminosas.

Referências

ARANHA FILHO, Adalberto José Queiroz Telles de Camargo. Da prova no processo penal. 7. ed., Rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.

CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 14. ed. Rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007.

CONSOLARO, Alberto. Adaptação ao mundo, avalanche de informações e a serendipidade na Odontologia. Revista Dental Press Ortodontia Ortopédica Facial. Maringá, v. 13, nº 3, maio/jun. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/dpress/v13n3/a03v13n3>. Acesso em: 03 maio 2015.

GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches. Legislação Criminal Especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, v. 6. Coleção Ciências Criminais.

MEDEIROS, Júlio. Prisão, flagrante esperado e serendipidade. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 17, nº 3.182, 18 mar. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/21311>. Acesso em: 03 maio 2015.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. O encontro fortuito de provas na jurisprudência do STJ. Publicado em: 26 abr. 2015. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/noticias/noticias/O-encontro-fortuito-de-provas-na-jurisprud%C3%AAncia-do-STJ>. Acesso em: 02 maio 2015.

TORRES, Bolivar. Serendipidade: encontros com o acaso. Publicado em: 15 mar. 2014. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2014/03/15/serendipidade-encontros-com-acaso-527647.asp>. Acesso em: 03 maio 2015.

Notas


[1] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. O encontro fortuito de provas na jurisprudência do STJ. Publicado em: 26 abr. 2015. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/noticias/noticias/O-encontro-fortuito-de-provas-na-jurisprud%C3%AAncia-do-STJ>. Acesso em: 02 maio 2015.

[2] CONSOLARO, Alberto. Adaptação ao mundo, avalanche de informações e a serendipidade na Odontologia. Revista Dental Press Ortodontia Ortopédica Facial. Maringá, v. 13, nº 3, maio/jun. 2008, p. 25. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/dpress/v13n3/a03v13n3>. Acesso em: 03 maio 2015.

[3] TORRES, Bolivar. Serendipidade: encontros com o acaso. Publicado em: 15 mar. 2014. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2014/03/15/serendipidade-encontros-com-acaso-527647.asp>. Acesso em: 03 maio 2015.

[4] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Idem, 2015.

[5] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Ibidem, 2015.

[6] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Op. Cit., 2015.

[7] GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches. Legislação Criminal Especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 475, v. 6. Coleção Ciências Criminais.

[8] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Op. Cit., 2015.

[9] MEDEIROS, Júlio. Prisão, flagrante esperado e serendipidade. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 17, nº 3.182, 18 mar. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/21311>. Acesso em: 03 maio 2015.

[10] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Op. Cit., 2015.

[11] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Op. Cit., 2015.

[12] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Op. Cit., 2015.

[13] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Op. Cit., 2015.

[14] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Op. Cit., 2015.

[15] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Op. Cit., 2015.

[16] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Op. Cit., 2015.

[17] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Op. Cit., 2015.

[18] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Op. Cit., 2015.

[19] ARANHA FILHO, Adalberto José Queiroz Telles de Camargo. Da prova no processo penal. 7. ed., Rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 295.

[20] CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 14. ed. Rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 298.

[21] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Op. Cit., 2015.

[22] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Op. Cit., 2015.

[23] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Op. Cit., 2015.

[24] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Op. Cit., 2015.

[25] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Op. Cit., 2015.

[26] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Op. Cit., 2015.

[27] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Op. Cit., 2015.

[28] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Op. Cit., 2015.



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