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Inconstitucionalidade do preceito primário do art. 213 do Código Penal (estupro)

Inconstitucionalidade do preceito primário do art. 213 do Código Penal (estupro)

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O estupro é um crime de imensa gravidade, tanto que é hediondo. Entretanto, por ser demasiadamente abrangente acaba por fazer ser aplicado em diversas situações que fiquem em xeque se merecem ou não ser apenadas de tal forma.

RESUMO

Estupro é a obrigação de uma pessoa em servir sexualmente a outra, satisfazendo sua lascívia, sem consentimento próprio. É um crime horrendo, considerado hediondo pela legislação penal. O tipo penal que tipifica o delito de estupro é demasiadamente aberto, na tentativa de se amoldar a toda e qualquer conduta sexual existente – que não são poucas. Contudo, abertura demasiada, sem limites, acaba por permitir abusos estatais, além de se punir da mesma forma condutas de maior ou menor gravidade. Todo estado democrático tem como uma de suas funções precípuas o limite do poder estatal, evitando-se abusos por parte do mesmo. No Brasil, no que tange o Direito Penal, existem diversos princípios que limitam a atuação do Estado – dentre eles, podemos destacar a Reserva Legal e a Proporcionalidade. O primeiro exige a taxatividade dos tipos penais, vedando aberturas que podem ensejar abusos. O segundo exige a proporção na aplicação de duas leis, coibindo punições severas a condutas pequenas e punições brancas a crimes graves. Dessa forma, o tipo penal do estupro, na sua redação atual, viola tais princípios, estando, portanto, sob o vício da inconstitucionalidade. Como não se pode afastar a aplicação de tal tipo penal – sob pena de descriminalizar condutas graves -, deve-se existir a ponderação do aplicador da lei, até que a mesma seja, enfim, modificada.

Palavras-chave: Direito Penal; Estupro; Reserva Legal e Proporcionalidade; “outro ato libidinoso”; Inconstitucionalidade.

ABSTRACT

Rape is the obligation of a person sexually serve the other, satisfying his lust without proper consent. It is a horrendous crime, considered heinous by the criminal law. The criminal type that typifies the crime of rape is too open, in an attempt to conform to any existing sexual conduct - which are not few. However, opening too, without limits, just for allowing state abuses, and to punish the same way pipelines of varying severity. Every democratic state has as one of its primary functions the limit of state power, preventing abuse by the same. In Brazil, regarding the criminal law, there are several principles that limit state action - among them we can highlight the legal reserve and proportionality. The first requires exhaustive criminal types, sealing openings that could lead to abuses. The second requires the proportion in the application of two laws curbing severe punishments to small pipes and white punishments to serious crimes. Thus, the criminal offense of rape, in its present form violates these principles and, therefore, under the vice of unconstitutionality. As one cannot avoid the application of such a criminal offense - failing to decriminalize serious conduct - should be the weight of the law of the applicator, until it is finally modified.

Key-words: Tort law; Rape; Legal Reserve and proportionality; "Other lewd acts"; Unconstitutional.

INTRODUÇÃO

O Código Penal de 1940, semelhantemente ao Código de 1890, descreveu o crime de estupro, esculpido no art. 213, como sendo “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça” (BRASIL, 1940). Conjunção carnal é a cópula vagínica, o coito vaginal, a introdução do pênis na vagina. Assim, apenas mulheres poderiam ser sujeitas passivas do crime de estupro. Qualquer outra forma de violência sexual era tido como crime de atentado violento ao pudor, elencado no art. 214 do Código Penal, cuja redação era: “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal” (BRASIL, 1940), com penas semelhantes ao crime de estupro.

Em 2009, entretanto, surgiu a Lei 12015/09, que reuniu os tipos penais de estupro e atentado violento ao pudor no primeiro, revogando o segundo, findando as diversas confusões doutrinárias e jurisprudenciais que existiam acerca dos dois tipos penais. Assim, a nova redação do crime de estupro ficou da seguinte maneira: “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (BRASIL, 1940), tendo como pena a reclusão de seis a dez anos, além de ser tachado como crime hediondo (art. 1º, V da Lei 8072/90) .

Dessa forma, atualmente qualquer pessoa pode ser vítima de crime de estupro, que não restringe mais apenas à cópula vagínica. Qualquer ato sexual, anteriormente consideradas estranhas – como as práticas de sexo anal e oral – pode, atualmente, ensejar crime de estupro; assim como o homem passou a poder ser sujeito passivo de tal crime.

1. O crime de estupro

Para se verificar o crime de estupro, é preciso estarem presentes todas as elementares do tipo penal. Assim, é necessário que o agente constranja (force, obrigue), com violência ou grave ameaça, alguém (seja homem ou mulher) a praticar conjunção carnal (sexo vaginal) ou a praticar ou com que ele se pratique (de forma passiva) outro ato libidinoso (sexo oral, anal, etc.). A ausência de qualquer um destes requisitos enseja a atipicidade da conduta.

Como dito anteriormente, constranger é forçar, obrigar alguém a fazer algo que não queira. É uma espécie de constrangimento ilegal (art. 146 do Código Penal, que determina ser crime constranger alguém a fazer ou deixar de fazer o que a lei manda fazer ou se abster), porém praticado com a finalidade de atos libidinosos, seja conjunção carnal, seja ato libidinoso diverso (GRECO, 2012, p. 460). O constrangimento ocorrerá pela violência (vis corporalis) ou pela grave ameaça (vis compulsiva).

Violência é a utilização de força física, com o intuito de subjugar a vítima, para ter com ela conjunção carnal ou ato libidinoso diverso (GRECO, 2012, p. 460). Já a grave ameaça é a violência mental, também com o intuito de subjugar a vítima, porém deve ser aquela “séria e razoável, capaz de produzir na vítima o temor que a leve a ceder” (JESUS, 1991, p. 573). Ainda nos ensinamentos de Damásio de Jesus:

É necessário que se analise a ameaça levando em consideração o efeito por ela produzido na ofendida, capaz ou não de levá-la, pelo medo, a ceder. É preciso que seja grave, i.e., que o mal prometido seja idôneo para obter o efeito moral desejado, que o dano prometido seja considerável, de tal forma que a vítima, para evitar o sacrifício do bem ameaçado, ofereça sua própria honra. (JESUS, 1991, p. 573).

Deve-se salientar que, ao contrário do que determina o crime de ameaça, o mal prometido pelo agente, para configurar da grave ameaça, não precisa ser injusto. Conforme disserta Bittencourt (2009, p. 802), é “irrelevante que a ameaça para obter os ‘favores sexuais’ seja justa ou legal. A sua finalidade especial determina sua natureza [...], transformando-a não apenas em ilegal, penalmente típica”. Greco (2012, p. 460) nos dá o exemplo de alguém que, sabendo da infidelidade de outra pessoa, a obriga a ter conjunção carnal, sob pena de contar tudo o que sabe ao outro cônjuge.

O sujeito passivo, atualmente, pode ser tanto homem quanto mulher, não mais havendo a separação que existia anteriormente em relação aos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, existindo apenas no âmbito dos crimes militares (art. 232 e 233 do Código Penal Militar). Da mesma forma, as mulheres também passaram a poder ser sujeitos ativos do crime de estupro, como autoras (e não mais apenas como coautoras ou partícipes) – podendo ser sujeito passivo do crime homens e mulheres, independemente de relações heterossexuais ou homossexuais.

A finalidade do agente que comete crime de estupro é a de satisfazer a própria lascívia, ainda que haja motivos secundários, como vingança (NUCCI, 2008, p. 785). Neste caso, poderá o agente determinar que a vítima mantenha com ele conjunção carnal ou que mantenha outro ato libidinoso. Conjunção carnal, como dito anteriormente, é a cópula vagínica, a introdução do pênis na vagina. É própria de relação heterossexual e não é mais necessária, neste caso, que a vítima seja mulher – pode a mulher determinar, com violência ou grave ameaça, que o homem pratique sexo vaginal com ela. Para se consumir o crime, nesta modalidade, basta a introdução, ainda que incompleta, do pênis na vagina (JESUS, 1991, p. 573), sendo a ejaculação mero exaurimento do crime.

É necessário salientar, entretanto, que pode o crime de estupro consumar, ainda que não houve a cópula vagínica, desde que o agente utilize de atos libidinosos como atos prepatórios para o sexo – por exemplo, determina, ou realiza, sexo oral na vítima, agarre os seios ou órgãos genitais, dentre outros. A consumação, atualmente, não se dá apenas com o sexo vaginal, bastando, para tanto, de qualquer ato libidinoso.

Já em relação aos outros atos libidinosos, é imprescindível salientar que vale todo e qualquer ato, que não seja o sexo vaginal, cuja finalidade precípua é satisfazer o desejo sexual, a libido do agente. Prado (2001, p. 601, apud Greco, 2012, p. 462) disserta alguns atos que são considerados atos libidinosos diversos da conjunção carnal:

Fellatio ou irrumatio in ore, o cunnilingus, o pennilingus, o anninligus (espécies de sexo oral ou bucal); o coito anal, o coito inter femora; a masturbação; os toques ou apalpadelas com significação sexual no corpo ou diretamente na região pudica (genitália, seios ou membros inferiores etc.) da vítima; a contemplação lasciva; os contatos voluptuosos, uso de objetos ou instrumentos corporais (dedo, mão), mecânicos ou artificiais, na via vaginal, anal ou bucal, entre outros.

Atualmente, é necessário salientar que o beijo lascivo se encontra em discussão sobre a possibilidade, ou não, de se adentrar no rol de atos libidinosos capazes de ensejar crime de estupro. Existem correntes prós e contra. O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, possui decisões a favor, como no caso in comento:

                            

HABEAS CORPUS. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CONDENAÇÃO. INÉPCIA DADENÚNCIA. INOCORRÊNCIA. DESCRIÇÃO SUFICIENTE AO EXERCÍCIO DO DIREITO DE DEFESA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. ATOS LIBIDINOSOS DEMONSTRADOS. BEIJO LASCIVO. CONFIGURAÇÃO DO CRIME. EXAME APROFUNDADO DAS PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. ORDEM DENEGADA. 1. Não há falar em inépcia formal se a denúncia descreveu a condutadelituosa de forma suficiente ao exercício do direito de defesa, coma narrativa de todas as circunstâncias relevantes, nos termos do art. 41 do Código de Processo Penal. 2. Hipótese em que o órgão acusatório apontou objetivamente o atocriminoso imputado ao paciente, consistente na prática de atos libidinosos diversos da conjunção carnal, mediante violência presumida. Foi descrito que o paciente teria atraído a menor parasua residência, após o que "agarrou" e "beijou" a vítima, com 12 anos de idade, sem o seu consentimento. Narrou-se, ainda, que em consequência dos atos do paciente a vítima estaria com o zíper desuas vestes aberto. 3. É pacífica a compreensão desta Corte Superior de Justiça no sentido de que o beijo lascivo pode constituir ato libidinoso diverso da conjunção carnal, hábil a caracterizar o delito descritona anterior redação do art. 214 do Código Penal, em sua forma consumada. 4. No caso, as instâncias ordinárias, analisando detidamente as provas produzidas nos autos, concluíram que o paciente praticou atos libidinosos contra a vítima, jogando-a na cama, beijando-a de forma lasciva e abrindo o zíper de sua roupa. Tais atos, como visto, são suficientes para caracterizar o delito pelo qual foi condenado. 5. Não se mostra possível, na via eleita, alterar a conclusão a que chegaram o Juiz e o Tribunal de origem acerca dos fatos, pois inviável, nesta sede, analisar profundamente as provas produzidas. 6. Ordem denegada. (STJ, HABEAS CORPUS HC 105673 CE 2008/0095693-8 , Relator: MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Publicado em 19 de setembro de 2011)

Alguns doutrinadores, contudo, discordam de tal posição, como Neves (2015), que acredita ser um desvio da finalidade do crime de estupro condenar alguém por um beijo lascivo.

É preciso deixar bem esclarecido que não defendemos tal conduta – longe disso – queremos, certamente, propor a reflexão da conduta do exemplo acima ter o liame suficiente para caracterizar o delito de estupro. Será que nesse caso há estupro? Conforme afirmado acima em outro capítulo, para nós, não. Por mais que seja ruim o beijo e por mais feia que seja a pessoa que o forçou e, também, se o fato não ocorreu com o emprego de violência ou grave ameaça, não podemos condenar alguém a cumprir uma pena de, pelo menos, 6 (seis) anos de reclusão, isto é, com a mesma gravidade que se pune um homicida. A 'secagem' da lei pode, muitas vezes, nos levar a determinadas injustiças.

Porém, é necessário salientar que, atualmente, é bastante comum pessoas serem presas e condenadas por “roubarem” um beijo de uma pessoa – principalmente em época como Carnaval, ficando tal questão, ao que tudo indica, longe da pacificação.

2. Princípio da Proporcionalidade

            Determina o Princípio da Proporcionalidade que deve haver o equilíbrio entre a legislação e o fato que ensejará sua aplicação, entre duas legislações ou entre a aplicação da lei e o fato que ensejou sua aplicação. A título de exemplo, é proporcional um sujeito que cometer crime de homicídio receber pena superior daquele que cometeu um crime de furto. Seria ilógico  e desazarroável – portanto, desproporcional, ferindo assim o Princípio da Proporcionalidade – o segundo sujeito, aquele que cometeu furto, receber pena superior – ou até mesmo igual – daquele que cometeu crime de homicídio.

            O Princípio da Proporcionalidade adveio no final do Estado Absolutista e início do Estado Democrático. Naquele  primeiro, o Estado – na figura do monarca – detinha poderes absolutos, determinando o que era certo e o que era errado. Entretanto, a população passou a desgostar de tal ideia, principalmente pelo fato de as respostas do monarca aos apelos da população nem sempre respeitavam liberdades e direitos individuais, que ficavam à mercê do Estado. (KONCIKOSKI, 2012). Assim, quando do findar do Absolutismo e de sua passagem para o Estado Democrático, a população percebeu da necessidade de se limitar o poder dos agentes públicos, surgindo direitos e garantias fundamentais, que foram se enraizando no Direito ao longo dos séculos seguintes. Um destes direitos, a fim de se evitar possíveis arbitrariedades, foi o Princípio da Proporcionalidade, que tentou equilibrar os atos públicos – inclusive no tocante ao crime cometido e à pena imposta.

            Na Constituição Brasileira de 1988, o Princípio da Proporcionalidade vem esculpido como direito e garantia fundamental, além de princípio basilar do Direito Penal. É uma ramificação do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, elencado como princípio basilar da República Federativa do Brasil, esculpido no inciso III do primeiro artigo de nossa Carta Magna. Busca-se, com tal princípio, um equilíbrio entre a lei e o caso concreto, não aplicando-a excessiva ou insuficientemente – em uma tentativa de frear a atuação estatal, tecendo-lhe limites.

            O primeiro limite da atuação estatal se refere à criação de novas normas. Estas deverão ser razoáveis, não podendo desequilibrar a balança que equilibra o ordenamento jurídico pátrio. A título de exemplo, não pode uma nova lei criminalizar a conduta de posse ilegal de drogas colocando-a com pena idêntica ao do tráfico de drogas (pena de cinco a quinze anos de reclusão). Da mesma forma, não pode uma nova lei criminalizar o terrorismo com pena idêntica à de desacato (pena de seis meses a dois anos de detenção, ou multa). Torna-se desarrazoável, ferindo o equilíbrio existente no arcabouço legislativo. Koncikoski (2012) disserta sobre o limite que o Princípio da Proporcionalidade cria perante o Poder Legislativo:

Resta claro que há um limite imposto, especialmente ao legislador, que deve obedecer certos critérios na elaboração das normas, para que as mesmas conformem-se com a estrutura constitucional do país. Um desses critérios, erigido como um dos mais relevantes, é o princípio da proporcionalidade. Neste diapasão, enfatiza-se que, em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade.

            O segundo limite criado pelo Princípio da Proporcionalidade se dá na aplicação da lei no fato concreto. Como bem sabemos, os tipos penais possuem pena mínima e pena máxima (furto, 1 a 4 anos; roubo, 4 a 10 anos; homicídio, 6 a 20 anos, dentre outros), a qual o julgador deverá estar adstrito. Não pode este verificar que as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal estão todas favoráveis ao réu e aplicar-lhe pena máxima (GRECO, 2011, p. 76), ou perceber que a vítima ficou anos de coma por parte do tiro na testa que acabou e diminuir a pena do autor do homicídio no máxima da tentativa. Deve-se, portanto, haver uma ponderação do próprio julgador no momento da aplicação da lei, para evitar desequilíbrio por parte do mesmo.

Ramos (2011) explica haver três subprincípios (ou requisitos) existentes dentro do Princípio da Proporcionalidade, que nasceu como consequência dos avanços doutrinários na área. Ou, nos dizeres do próprio autor:

Além do mais, no que diz respeito ao conteúdo, importante é analisar-se que a construção da doutrina alemã, devido a sua clareza e densidade de pensamentos, versa, acima de tudo, sobre a adequação necessário entre o fim de uma norma e os meios que ela designa, para atingi-lo; ou, ainda, entre a norma elaborada e o uso que dela foi feita pelo Poder Executivo.

            O primeiro subprincípio é o da adequação ou utilidade. Tal subprincípio, para Ramos (2011), “traz uma regra de compatibilidade entre o fim pretendido pelo Administração Pública e os meios por ela utilizados para atingir seus objetivos”, evitando decisões ou meios completamente inúteis tomados pela Administração Pública, que jamais chegarão aos objetivos as quais se destinam.

            O segundo subprincípio é o da necessidade, ou objetividade, que tem como condão determinar que o Poder Público realize condutas que menos interfira em direitos fundamentais e invioláveis. Pacheco (2009) nos traz os seguintes exemplos: não há necessidade de violar a intimidade do réu com uma interceptação telefônica quando se pode conseguir as provas por meio de testemunhas; não é necessária decretação de prisão preventiva, supondo que o réu, livre, destruiria documentos comprometedores, se se pode resguardar com decretação de busca e apreensão dos documentos.

            Por fim, há o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, que determina que se haja um real sistema de valoração, na qual, para haver a garantia de um direito, deve ocorrer, na maioria das vezes, a restrição de outro (RAMOS, 2011). Nas palavras de RABELO (2011): “[...] o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito determina a realização de um exame da relação custo-benefício do ato estatal avaliado, devendo ficar demonstrado que o benefício proporcionado é superior ao ônus imposto.” Para o autor, tal subprincípio proporciona ao intérprete da lei a realização de uma ponderação de interesses, existindo de um lado da balança que equilibrará a situação os interesses protegidos e, do outro, os sacrificados.

            De qualquer maneira, estará reservado ao Poder Judiciário analisar a situação concreta e decidir se determinado ato público fere ou não o Princípio da Proporcionalidade. Conforme disserta Ramos (2011), é um dos trabalhos mais árduos e perigosos, especialmente quando se declara inconstitucional determinada norma criada pelo Poder Legislativo e sancionado pelo Executivo, tendo em vista que um dos Poderes – a qual devem sempre serem independentes e autônomos entre si – sobrepõe o outro, interferindo neste. 


3. Princípio da Reserva Legal

            O Princípio da Reserva Legal vem esculpido em nossa Carta Magna, em seu art. 5º, XXXIX, como direito fundamental e inviolável, sendo repetido no art. 1º do Código Penal praticamente com os mesmos dizeres. Disserta referido inciso que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (BRASIL, 1988).

            Assim como o Princípio da Proporcionalidade, o Princípio da Reserva Legal – ou da Legalidade, como alguns doutrinadores o chama – adveio com o fim do Estado Absolutista e nascimento do Estado Democrático. Já existia na Carta Magna de 1215, criada no tempo do João Sem Terra, que determinava que: “nenhum homem pode ser preso ou privado de sua propriedade a não ser pelo julgamento de seus pares ou pela lei da terra” (NUCCI, 2008, p. 86), porém voltou à tona apenas na Revolução Francesa, que abriu as portas para o findar do Absolutismo.

            O Princípio da Reserva Legal é uma modalidade de limitação do Poder Público perante o administrado, tal qual o Princípio da Proporcionalidade. Ora, se é necessário equilibrar a lei e o fato concreto, mais necessário se faz determinar previamente o que pode e o não pode fazer. É o que disserta Bonavides (1994, p. 112, apud Greco, 2011, p. 93):

O princípio da legalidade nasceu do anseio de estabelecer na sociedade humana regras permanentes e válidas, que fossem obras da razão, e pudessem abrir os indivíduos de uma conduta arbitrária e imprevisível da parte dos governantes. Tinha-se em vista alcançar um estado geral de confiança e certeza na ação dos titulares do poder, evitando-se assim a dúvida, a intranquilidade, a desconfiança e a suspeição, tão usuais onde o poder é absoluto, onde o governo se acha dotado de uma vontade pessoal soberana ou se reputa legibus solutus e onde, enfim, as regras de convivência não foram previamente elaboradas nem reconhecidas.

            Atualmente, qualquer Estado que se diga Democrático de Direito possui em seu ordenamento jurídico o Princípio da Legalidade, não existindo apenas em países totalitários.

            Conforme supramencionado, o Princípio da Reserva Legal, a primeiro plano, possui como interesse primordial prevenir que algum sujeito cometa um ato não previsto como criminoso em lei e depois é surpreendido por uma ação criminal ou uma prisão contra si, por tal conduta ter se transformado em crime posteriormente. É um direito do cidadão saber quais condutas são ou não criminalizadas e proibidas pela legislação penal brasileira. Ademais, também é direito seu saber previamente qual pena a ele será imposta – ou, pelo menos, qual o montante mínimo e máximo de pena privativa de liberdade ou multa ele receberá por realizar aquela conduta.

            Tal princípio tem como condão evitar excessos estatais, muito comuns em Estados totalitários. Nestes estados, é muito comum pessoas serem banidas ou executadas por crimes pequenos, única e exclusivamente por serem desafetas do ditador. Para se evitar tal situação, existe no ordenamento jurídico pátrio – como forma de confirmação do Estado Democrático de Direito – o Princípio da Legalidade.

            Greco (2011, p. 96) determina que, além da função supramencionada, o Princípio da Reserva Legal possui outras quatro funções:

            1ª) a proibição da retroatividade da lei penal (nullum crimen nulla poena sine lege praevia): esculpido no inciso XL do art. 5º da Constituição Federal, em corroboração ao inciso XXXIX, determina tal função que a lei não poderá retroagir, salvo se beneficiar o réu.

Assim, a Lei 12984/14, por exemplo, que determinou, em seu art. 1º, ser crime, punível com reclusão, de um a quatro anos, discriminar portador do vírus HIV ou da AIDS, com condutas como recusar ou cancelar inscrição em creche ou estabelecimento de ensino, ou negando emprego ou trabalho e entrou em vigor no dia 3 de junho de 2014, não pode se aplicar em uma conduta discriminatória ocorrida no dia 1º, a título de exemplo, ainda que mais horrenda e hedionda tenha sido essa conduta – ou esta ter sido a força matriz para a criação da lei supramencionada, como ocorreram com a Lei Carolina Dieckmann e a Lei 12653/12.

Da mesma forma, o agente que portou drogas para consumo próprio, em maio de 2006, por exemplo, e foi julgado posteriormente à entrada em vigor da Lei 11343/06, poderá ter, em seu caso, a aplicação do art. 28 da referida lei, afastando-se a aplicação do art. 16 da lei anterior (Lei 6368/76), por ser a primeira mais benéfica;

            2ª) a proibição de criação de crimes e penas pelos costumes (nullum crimen nulla poena sine lege scripta): determina tal função que somente lei – e nada mais – pode se criar um crime e a pena a ele imposta. “Pelo princípio da legalidade, [...] nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada sem que antes da ocorrência desse fato exista uma lei determinando-o como crime e cominando-lhe a sanação correspondente”. (BITTENCOURT, 2009, p. 2). Os costumes, ainda que intensos no local, não podem fazer com que aquela determina conduta seja criminalizada. É o que leciona Toledo (1984, p. 25, apud Greco, 2011, p. 96): “da afirmação de que só a lei pode criar crimes e penas resulta, como corolário, a proibição da invocação do direito consuetudinário para a fundamentação ou agravação da pena”;

           

            3ª) a proibição do emprego de analogia para a criação de crimes ou agravação de penas (nullum crimen nulla poena sine lege stricta): não se pode utilizar a analogia para piorar a situação do réu, em matéria do Direito Penal (é vedado, portanto, a chamada analogia in malan partem). Por exemplo, é agravante genérica cometer crime contra o cônjuge (art. 61, II, e), porém a lei é silenciosa quanto ao companheiro ou companheira. Assim, cometer crime contra o companheiro ou companheira não pode agravar a pena do agente, tendo em vista a ausência legislativa;

4ª) a proibição de incriminações vagas e indeterminadas (nullum crimen nulla poena sine lege certa): também conhecida como Princípio da Taxatividade, tal função possui como escopo evitar normas penais demasiadas vagas e imprecisas, abrindo margem ao intérprete em aplicá-la, ou não, quando bem lhe aprouver. É o que leciona Nucci (2008, p. 75): “significa [tal princípio] que as condutas típicas, merecedoras de punição, devem ser suficientemente claras e bem elaboradas, de modo a não deixar dúvida por parte do destinatário da norma”.

É uma forma de limitação do poder estatal, que pode se utilizar da imprecisão da norma para se punir alguém por alguma conduta que desgostou ou de algum desafeto político. Greco (2011, p. 97) nos dá o exemplo do art. 9º da Lei 7170/83 (Lei de Segurança Nacional), in verbis: “art. 9º: Tentar submeter o território nacional, ou parte dele, ao dominío ou à soberania de outro país”. Ora, é demasiadamente aberto tal tipo penal, pois é de difícil – ou quase impossível – precisão determinar o que vem a ser a tentativa de submeter o território nacional a domínio ou soberania de outro país – eis que a punição não é a consumação da submissão, mas sim a tentativa. Pode o Estado, por exemplo, na tentativa de se reprimir manifestações contrárias ao seu regime - que há apoio internacional -, prender os manifestantes e julgá-los com base neste artigo, tendo em vista a imprecisão do mesmo. É, portanto, inconstitucional, por violação de tal princípio.

Por fim, é necessário distinguir a Legalidade Formal da Legalidade Material, ambas indispensáveis perante o Princípio da Reserva Legal. A legalidade formal determina que a lei penal deve cumprir os requisitos constitucionais e infraconstitucionais de criação legislativa, para se fazer parte do ordenamento jurídico e poder ser exigida conduta diversa por parte dos administrados. Greco (2011, p. 98) nos dá o seguinte do art. 69 da Constituição Federal, que determina que o quorum de aprovação de leis complementares são de maioria absoluta. Uma determinada lei complementar passa pelo Senado em maioria simples, passando na Câmara em maioria absoluta. Ainda que esteja em consoância com a Constituição Federal, feriu os requisitos existentes na mesma – sendo, pois, inconstitucional. Da mesma forma, não poderá o Presidente da República criar novo tipo penal através de medida provisória, por violação do art. 62, § 1º, I, b da Carta Magna.

Já a legalidade material determina que a lei penal deve estar em consoância com a matéria contida na Constituição Federal vigente, “respeitando-se suas proibições e imposições para a garantia de nossos direitos fundamentais por ela previstos”. (GRECO, 2011, p. 98). Tal requisito é necessário ainda que a lei penal tenha sido sancionada antes da promulgação da Constituição Federal – pois, caso esteja em divergente desta, esta não recepcionará aquela, perdendo o vigor. A título de exemplo, podemos dissertar acerca do crime de aborto cometido contra feto anencéfalo, que não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 (ADPF nº 54, julgada em 11 e 12 de abril de 2012), ou pelos crimes da lei de imprensa (ADPF nº 130, julgada em 2009). Assim, qualquer lei infraconstitucional, cuja matéria fere a Constituição Federal, estará com esta incompatível, perdendo imediatamente a sua vigência e aplicação no caso concreto – e aqueles que estiverem sob sanção por ocasião de crime esculpido na referida lei terá sua punibilidade extinta (pelo instituto da abolitio criminis). 

4. Inconstitucionalidade do preceito primário do crime de estupro

            Conforme dito anteriormente, o crime de estupro possui como elementares “constranger/ alguém/ mediante violência ou grave ameaça/ a ter conjunção carnal/ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Há a necessidade, portanto, de o agente obrigar outra pessoa – utilizando-se, para tanto, de violência ou de grave ameaça – a ter com ela conjunção carnal (sexo vaginal) ou outro ato libidinoso. Na seara de “outro ato libidinoso”, encaixa-se qualquer ato com o manifesto intuito de satisfazer a lascívia do agente, como o sexo oral e o anal, a masturbação, a introdução de objetos ou dedos nas cavidades vaginais e anais, dentre outros.

            Entretanto, a elementar “outro ato libidinoso” é demasiadamente aberta. Qualquer ato pode ser considerado “ato libidinoso”, para configurar estupro, ainda que a lascívia seja satisfeita infimamente, desde que não haja consentimento da vítima. Uma passada de mão na coxa, uma “encoxada” no transporte público, um beijo lascivo e qualquer outra conduta que sua mente seja capaz de criar. Qualquer ato. E tal ideia viola o Princípio da Reserva Legal, eis que fica a critério do julgador analisar, a seu bel-prazer, se tal conduta caracteriza, a seu critério, ato libidinoso ou não.

            Ora, ainda que saibamos que – na maioria das vezes – o julgador utilizará de seu maior prudente critério, não se pode aceitar tamanha abertura no tipo penal que configura estupro. Imaginamos um homem que “encoxa” uma mulher – ou outro homem – no ônibus e é preso em flagrante. Ainda que acreditamos que, ao final do processo, o homem será absolvido do crime de estupro, ele responderá por esse tipo penal, causando-lhe um temor de ser preso por tal conduta e ser igualado a um estuprador de verdade – fora que estupro é crime hediondo, o que motiva prisões cautelares e afasta a fiança e as medidas do art. 319 do Código de Processo Penal. Ou pior, imagina se for preso e condenado?

            A título de exemplo, podemos citar o caso do MC que foi preso preventivamente acusado de simular sexo oral com uma garota de 12 anos[1]. Ora, o mesmo foi preso acusado de estupro de vulnerável (art. 217-A do Código Penal), exatamente pela existência de abertura que a expressão “outro ato libidinoso”, onde o aplicador da lei entendeu que simulação de sexo oral é considerado “outro ato libidinoso” para figurar como estupro (de vulnerável, no caso em comento).

            Tal abertura, portanto, viola frontalmente o Princípio da Reserva Legal. Tal princípio exige taxatividade nos tipos penais, para que o administrado saiba qual conduta poderá realizar, e qual poderá sofrer sanção penal cada realize, e tal situação é um dos pilares do Estado Democrático de Direito – afinal, tal princípio limita o poder estatal. Portanto, a expressão “outro ato libidinoso”, sem qualquer limite, fere a Legalidade.

            Ademais, como se não bastasse a abertura que tal elementar traz, ainda se pode citar o segundo grande problema que o mesmo traz. A pessoa que manter conjunção carnal com alguém receberá a mesma pena daquele que “encoxou” no transporte público ou roubou um beijo lascivo, eis que, sendo o tipo penal o mesmo, a pena será, obviamente, a mesma.

            A título de ilustração, damos o exemplo de um homem de 30 anos que foi preso, processado e condenado a 7 anos de prisão por ter beijado uma mulher à força no Carnaval de Salvador[2], ou dos inúmeros casos de homens presos por “encoxarem” mulheres nos transportes públicos municipais.

            Ora, ainda que gravosas tais situações, não é razoável e proporcional puni-los com a mesma pena dada àquele que cometeu sexo oral, vaginal ou anal forçadamente, ou introduziu objetos ou dedos nas cavidades da vítima. Estupro é, conforme dito anteriormente, crime hediondo, com pena mínima de 6 anos – ou 8, caso a vítima seja menor de 14 anos, deficiente mental ou não tenha condição de discernimento do fato. Imaginemos que alguém que beija forçadamente uma pessoa receba pena igual – ou até superior, dependendo das circunstâncias do art. 59 do Código Penal – àquele que introduziu forçadamente o seu pênis na vagina ou ânus da vítima, deixando-lhe sequelas físicas, morais e mentais por anos.

            Não há, portanto, qualquer cabimento plausível de que diferentes atos libidinosos possam configurar o mesmo crime. Viola frontalmente a Proporcionalidade e a Razoabilidade, sendo causa da mais imperiosa injustiça!

            A elementar “outro ato libidinoso”, no modo como que se encontra atualmente, é inconstitucional – tanto por violação ao Princípio da Reserva Legal quanto ao da Proporcionalidade. Porém, não se pode decretar a inconstitucionalidade de tal elementar por si só, eis que atos graves como obrigar alguém a praticar  sexo oral ou anal ficariam descriminalizados, o que é completamente inconcebível. O que se fazer então?

            Greco (2012, p. 462) leciona que, para se valer do crime de estupro, os atos libidinosos “devem possuir alguma relevância, pois, caso contrário, estaríamos punindo o agente de forma desproporcional com o seu comportamento, uma vez que a pena mínima cominada ao delito de estupro é de 6 anos de reclusão”. O autor disserta ainda que “passar as mãos nas coxas, nas nádegas ou nos seios da vítima, ou mesmo um abraço forçado, configuram [...] a contravenção penal do art. 61 da lei especial [...]” (BITTENCOURT, 2004, p. 50, apud Greco, 2012, p. 462).

É uma forma de se aplicar dois grandes princípios do Direito Penal, o da Insignificância e da Ultima Ratio, que determinam, respectivamente, que atos que ferem mininamente bem jurídico penalmente tutelado não há tipicidade material e só se deve aplicar o Direito quando nenhum outro campo do Direito é suficiente para punição suficiente do ato. Assim, em atos insignificantes, como uma passada de mão na coxa, não se deve aplicar o mesmo Direito Penal para atos de grande relevância, como o sexo vaginal forçado.

            Já em se tratando de beijo lascivo, o autor disserta que o mesmo deverá responder por constrangimento ilegal (art. 146 do Código Penal) ou pela contravenção penal supramencionada (GRECO, 2011, p. 77), mas jamais pelo crime de estupro, o que é bastante plausível.

            Da mesma forma, Bittencourt (2009, p. 807) ressalta que, em casos de condutas menos gravosas, o mais sensato seria reprimir menos severamente o agente, deixando a punição gravosa (crime hediondo de estupro) apenas para as condutas extremamente gravosas, como o sexo vaginal, oral e anal.

            Entretanto, essa não é a realidade existente no Brasil. Muitos são os casos em que o agente comete conduta de pequena gravosidade e, por se tratar de conduta sexual – ou com fim sexual -, acaba o mesmo ser preso e processado pelo crime de estupro – e muitos ainda condenados pelo crime.

            É preciso, portanto, modificar o preceito primário do crime de estupro, que é de horrorosa redação – que piorou com a unificação dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, quando o legislador separou conjunção carnal e ato libidinoso, como se diferentes fossem – e inconstitucional, eis que violam a Legalidade e a Proporcionalidade. O Anteprojeto do novo Código Penal (PLS 236/12) pode ser uma luz no final do túnel para dirimir tal problema, pelo menos parcialmente. Segundo o referido anteprojeto, os crimes de natureza sexual, que atualmente se encontram agrupados no crime de estupro, virão descritos em tipos penais distintos, da seguinte maneira:

Estupro

Art. 180. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, à pratica de ato sexual vaginal, anal ou oral:

Pena – prisão, de seis a dez anos.

[...]

Manipulação e introdução sexual de objetos

Art. 181. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a suportar a introdução vaginal ou anal de objetos:

Pena – prisão, de seis a dez anos.

Molestamento sexual

Art. 182. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou se aproveitando de situação que dificulte a defesa da vítima, à prática de ato libidinoso diverso do estupro vaginal, anal e oral:

Pena – prisão, de dois a seis anos.

Parágrafo Único. Se o molestamento ocorrer sem violência ou grave ameaça, a pena será de um a dois anos. (____, 2012)

            Assim, aquele que constranger outra pessoa a praticar sexo oral, anal e vaginal cometerá crime de estupro (art. 180), deixando outros atos libidinosos para tipos penais distintos (art. 181 e 182). O último artigo, com nomen juris “Molestamento Sexual” (art. 182), que engloba atos libidinosos diferentes do sexo e da introdução de objetos, como a passada de mão nos seios, roubar um beijo ou realizar uma “encoxada”, possui pena infinitamente inferior que os demais crimes – por ser conduta menos gravosa, preservando, pois, a Proporcionalidade. Da mesma forma, o seu Parágrafo Único dará pena mais branda àquelas condutas cuja vítima não tenha autorizado sua realização, ou não tenha o seu consentimento (ou quando se presume a violência, nos casos dos menores de 14 anos – ou 12, pelo texto original do Novo Código Penal), mas a conduta não foi realizada com violência ou grave ameaça – por exemplo, alguém que “encoxa” alguém no ônibus ou rouba um beijo da pessoa que acredita estar beijando o namorado (crime mediante fraude).

Entretanto, como nem tudo é flor, o Anteprojeto do Novo Código Penal não deixará a inconstitucionalidade de lado, tendo em vista a expressão consignada em seu art. 182, “à prática de ato libidinoso diverso do estupro vaginal, anal e oral”, que ainda mantém aberta – e, portanto, ferindo a Reserva Legal. Trocou-se apenas a expressão, que hoje é “outro ato libidinoso”. Deve-se, portanto, haver a ponderação – como bem dissertou Rogério Greco, em dizeres retromencionados, que deve haver relevância no ato libidinoso praticado para se configurar crime de estupro -, muito difícil atualmente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Estupro, após o advento da Lei 12015/09, se tornou o constrangimento ilegal de pessoa, através de violência ou grave ameaça, com o intuito de praticar com ele ato libidinoso, seja conjunção carnal, seja ato diverso desta. Entretanto, a terminologia “outro ato libidinoso”, empregada no tipo penal acima mencionado, causa grande reboliço, tendo em vista a enorme abertura que a mesma possui, abrangendo um “sem número” de atos considerados “libidinosos”, tendo em vista a grande gama de ações que vislumbram satisfazer a lascívia daquele que o pratica.

            Entretanto, tendo em vista os princípios constitucionais que determinam e fream a atividade estatal atualmente, como o Princípio da Reserva Legal – que determina a taxatividade dos tipos penais – e a Proporcionalidade – que determina proporção e razoabilidade entre uma lei e outra, ou entre uma lei e o fato concreto -, a expressão “outro ato libidinoso” se torna incompatível, uma vez que qualquer ato libidinoso cometido sem o consentimento da vítima se torna “ato libidinoso” para fins do crime de estupro, e todos receberão a mesma pena, ainda que um possua mais gravidade que o outro.

            O Projeto de Lei 236/12, denominado Novo Código Penal, até o momento, separará as condutas libidinosos em quatro novos tipos penais, com penas diferentes e aplicações do Direito diferentes, deixando, assim, de ferir a Proporcionalidade – mas ainda ferindo a Reserva Legal, tendo em vista que ainda se mantém a expressão abertura “outro ato libidinoso”. É necessário, portanto, que se exista uma razoabilidade por causa dos órgãos aplicadores da lei, para que apenas se puna o agente que cometer ato libidinoso de relevância na esfera penal.

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TOLEDO, Francisco de Assis. Ilicitude penal e causas de sua exclusão. Rio de Janeiro: Forense, 1984.


[1] Fonte: http://g1.globo.com/pernambuco/noticia/2015/06/no-recife-mc-vertinho-e-preso-em-processo-de-estupro-de-vulneravel.html. Acesso em: 16 nov. 2015.

[2] Fonte: http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2015/02/03/homem-e-condenado-a-sete-anos-de-prisao-por-beijo-forcado-no-carnaval-de-salvador.htm. Acessado em: 16 nov. 2015.


Autor

  • Rodrigo Picon

    Formado em Direito pelo Instituto Tancredo de Almeida Neves e pós-graduado em Direito Penal Econômico Aplicado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Rodrigo Picon é advogado, regularmente inscrito pela Ordem dos Advogados do Brasil de Minas Gerais, escritor e contista. Atua nas áreas criminal, empresarial, penal econômica, tributária, difusos e coletivos e de adequação à Lei Geral de Proteção de Dados. É autor dos livros "Direitos Difusos e Coletivos" e "Código Penal Comentado".

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