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Um Paradoxo Entre "A Roupa Nova do Rei" e o Estadado Democrático de Direitos

Um Paradoxo Entre "A Roupa Nova do Rei" e o Estadado Democrático de Direitos

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Trata-se de uma reflexão panorâmica entre a crise política institucional brasileira, decisões políticas e antijurídicas do Poder Judiciário e a polêmica social envolvendo a arte com a conclusão a partir de um clássico da Literatura Infantil.

Um Paradoxo Entre “A Roupa Nova do Rei” e o Estado Democrático de Direitos

 A democracia brasileira tem vivido um grande desafio nos tempos atuais, denominado por alguns como “tempos difíceis”, a julgar pela intensa e duradoura crise política e institucional que parece ter se apossado da república, promovendo verdadeiros terremotos institucionais e embate entre os poderes, esta parece ser a maior crise democrática institucional após a Constituição de 1988.

A insegurança jurídica promovida por decisões fundamentadas em verdadeiros malabarismos hermenêuticos, com constantes mudanças jurisprudenciais – a esperar o novo posicionamento do STF acerca da prisão em virtude de condenação em segunda instância, antes do esgotamento recursal e consequente trânsito em julgado – e violações de direitos e garantias fundamentais, contribui para a manutenção da instabilidade institucional, senão vejamos:
Artigo 5º da Constituição Federal:
 LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
 LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

           “Ora bolas”, não é preciso ser um notável criminalista para perceber que o cumprimento da sentença penal condenatória antes do esgotamento recursal e da plena satisfação do processo, sem que este esteja concluso e esgotadas as discursões sobre os pontos controvertidos, consubstancia verdadeira ilegalidade e violação de direitos e garantias fundamentais, como diria Nelson Rodrigues “nada é tão cansativo como ter de discutir o óbvio”.
            Com efeito, entendimentos desta natureza, ratificados pela instância máxima do poder judiciário, criam um ambiente perigoso de insegurança jurídica que reflete em toda a sociedade, uma vez que, a antijuridicidade é ultrajante a todos nós ainda que não percebamos, pois, as instituições estabelecem uma relação de sinergia com a sociedade e se o leviatã estiver descontrolado, todos nós pagaremos o preço.
            Não cabe ao poder judiciário se revestir do manto do heroísmo para fazer justiça à margem da lei em favor de eventual clamor social, a uma, porque não existe justiça à margem da lei, a duas, porque nem sempre, e em grande escala, o clamor social se mostra coerente, basta aos nossos doutos juízes e ministros a toga e a sobriedade para julgar ao rigor da letra da lei, é nisto que são grandiosos, super-heróis não existem, guardiões da justiça sim, ademais, geralmente, aqueles que monopolizam o discurso da ética e da honestidade, são eivados de demagogia e crueldade, portanto, “pereat mundus, fiat justitia”.
            Criar jurisprudência em favor da opinião pública e em detrimento da lei é usurpação de competência, pois o ato de legislar, por essência, pertence ao poder legislativo, a este respeito, sábias foram as palavras de sua excelência o ministro Ricardo Lewandowski, em um de seus embates com o ex-ministro Joaquim Barbosa, que sustentou discordar da lei penal, que ao seu sentir seria muito branda, sobre isto lhe disse Lewandowski: “mas nós estamos do lado de cá da praça, não cabe a nós avaliar se a lei é boa ou ruim, cabe a nós julgar de acordo com a lei”.
Segundo os autores clássicos, dentre ao quais Jellinek, o Estado, tal qual conhecemos hoje, precisa de três elementos fundamentais: poder/soberania, população e território, daí a relação de sinergia entre as instituições do poder e a sociedade, visto que são partes deste organismo chamado Estado.
            As teorias que definem e justificam a necessidade de formação do Estado são diversas, porém não inversas ou divergentes, mas, complementares, para Platão e Aristóteles o Estado decorre da necessidade moral do homem, modernamente autores como Rousseau e Kant, apresentam uma versão mais estruturada do Estado com separação de poderes e estabelecimento dos laços jurídico-sociológicos com a elaboração do pacto social.
            Em Hegel, verifica-se a retomada da moral humana na legitimação do Estado, segundo ele o Estado tem o fim de realização e aperfeiçoamento moral. Nesta perspectiva clássico-moderna da atuação do Estado, percebe-se a importância da concepção moral de uma sociedade na legitimação da atividade estatal, de sorte que a negligência e aviltamento dos padrões morais de um povo se antagonizam as finalidades do Estado e certamente trarão efeitos colaterais negativos, gerando convulsões sociais e retirando legitimidade das instituições.
            Não obstante, a lei de introdução às normas do direito brasileiro prevê os costumes como fonte de direito e determina que a aplicação da lei, deve buscar o bem comum, ora, os costumes de um povo decorrem de práticas aprováveis segundo os conceitos morais de certo e errado, de igual modo o bem comum, aponta para aquilo que é moralmente aceitável em uma sociedade.
Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
Art. 5o Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

            Para Pontes de Miranda, em sua obra “Comentários a Constituição” de 1946, a estruturação atual do Estado nasceu no século XV, para ele o Estado se define como “o conjunto de todas as relações entre os poderes públicos e os indivíduos, ou daqueles entre si, cessando as possibilidades de relações dessa espécie, o Estado desaparece, surgindo, o Estado nasce”.
            O Estado Democrático de Direitos, caracterizador do Estado Constitucional, é constituído por normas democráticas e participação efetiva da sociedade no exercício do poder, através da representação, que por sua vez é exercida por representantes eleitos de forma livre e periódica pelo povo, por outro lado o Estado Democrático de Direitos se desenvolve em detrimento do Estado Absolutista, as regras constitucionais garantem ao povo a não violação pelo Estado, dos seus direitos e garantias fundamentais, estes determinados pela Constituição da República ou pelo Pacto Social.
            O Brasil é um Estado Democrático de Direitos, como se verifica no artigo 1º da Constituição Federal:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

            Com efeito, somos um povo tolerante e flexível por natureza, não por acaso, concedemos os mesmos direitos e garantias que possuímos aos estrangeiros em trânsito por aqui, cordialidade e hospitalidade são marcas do povo brasileiro, ademais, o Brasil enquanto povo e Estado tem por característica, o respeito ao modo de ser e de viver de todos os outros povos ao redor do planeta, o que está registrado na magna carta, no nosso contrato social: 
Art. 4º: A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
III - autodeterminação dos povos;

Artigo 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
            Em virtude dessa característica e preceito constitucional, o Brasil está livre para negociar com qualquer outro povo da terra, independente de suas crenças e personalidade cultural, pouco importa para o Brasil se o parceiro do outro lado da mesa é árabe ou judeu; cristão ou mulçumano; se ele acredita em Jesus Cristo, ou em Buda, ou em Maomé ou só em Money. Não faz diferença para o Brasil se o outro está vestido de túnica e turbante ou de terno e gravata, o Brasil negociará com ele do mesmo jeito. Não obstante, os executivos brasileiros, são reconhecidos internacionalmente por suas habilidades de negociação, flexibilidade e composição de acordos. 
            Pois bem, este cenário de antijuridicidade, ora vivido pelas instituições brasileiras, prejudicou nossa imunidade institucional infeccionando nosso organismo social, de tal forma que os embates entre direitos, absolutamente normais em um estado democrático de direitos, passaram a ser de difícil solução, gerando intolerância e dissensão, onde a solução tem sido violar um dos direitos.
            É natural que aconteça, em um Estado Democrático de Direitos, eventuais choques no exercício dos direitos, quais sejam: o direito a informação; o direito a privacidade; o direito a liberdade de expressão; o direito a liberdade de pensamento; o direito a liberdade de crença e religiosa; o direito a liberdade do exercício profissional; o direito a liberdade de expressão artística e etc.
            Havendo conflito de interesses no exercício dos direitos, há de buscar um ponto de equilíbrio, o bem comum, de tal maneira que o exercício do direito por parte de um não viole um direito de outro, logo, a ponderação dos direito em conflito deve buscar o bem comum dos atores em questão, não havendo possibilidade, o bem comum da maioria, isto se chama democracia.
            Notadamente, essa crise institucional sistêmica evidenciada no Brasil, está fadigando as relações humanas e roubando da sociedade a capacidade de diálogo, o adoecimento social é sintomático: excesso de demandas judiciais; conflitos de classes; polarização política esquerda vs direita; excesso de divórcios; excesso de litígios familiares; violência urbana; discurso de ódio e etc.
            Estamos perdendo a essência da cordialidade, da tolerância e do respeito pelos outros, que nos define enquanto povo. Parece não haver mais busca pela conciliação e pelo consenso, que não significa unidade de opinião e pensamento, significa ponderação e respeito mútuo, se “A” tem opiniões, crenças e pensamentos diferentes de “B”, não significa dizer que um tem razão e outro não, ou que um é antiquado e ignorante enquanto o outro é moderno e inteligente.
            O discurso que determina que o olhar artístico social que não se comporta de acordo com um determinado segmento, é burro e ignorante, que determina que aqueles que não enxergam arte em uma determinada forma de arte, são intolerantes e preconceituosos, nada mais é do que um discurso de intolerância e preconceito.
            A arte é multiforme, é independente, é surpreendente, mas é inocente também. Certa vez, em um transporte público, testemunhei um diálogo entre mãe e filha, uma criança chamada Beatriz, era fim de tarde e elas estavam indo para uma festa de aniversário de uma amiguinha de escola da pequena Beatriz, chamada Fernanda.
            De repente a menina exclamou: – Eu estou achando que a Fernanda não vai à festa dela hoje. – A mãe surpresa respondeu: – Que isso Bia, como assim a Fernanda não vai à festa dela, de onde você tirou isso? – Respondeu a menina: – Ué ela não foi à escola hoje. – A mãe gargalhou e disse. – Ai Bia eu não te aguento, você é uma artista.
           – Existem aqueles que percebem a mais bela arte na ingenuidade de uma criança, por isso desejam preserva essa ingenuidade o maior tempo possível.
             Não por acaso a pertinência e propriedade de uma reflexão paradoxal com um dos ensinamentos do clássico literário “A Roupa Nova do Rei”. Esta relevante obra da literatura traz ensinamentos absolutamente contemporâneos e apropriados.
             A obra assinada pelo Dinamarquês Hans Christian Andersen, data de 1837 e narra à história de um grande rei, detentor de um grande reino, mas que também era muito vaidoso e possuía verdadeira obsessão por vestes suntuosas e de notável beleza.
             Conta o conto que dois vigaristas viajantes, ao passar pela cidade ouviram falar da vaidade e do gosto que o Rei possuía por roupas, muito espertos e articulados, se identificaram como alfaiates de renome e com habilidades sobrenaturais, espalhando por toda a cidade, que eram capazes de fazer roupas mágicas e especiais, de tal forma que só as pessoas sinceras e inteligentes eram capazes de enxerga-las.
             Ao tomar conhecimento da chegada destes “notáveis alfaiates” em sua cidade, o rei chamou-lhes a sua presença e encomendou as ditas vestes especiais para que pudesse se apresentar aos seus súditos em um evento com a presença de toda a cidade, não poupando dinheiro nem recursos para isto.
            Cinicamente, os falsos alfaiates, começaram a produzir a roupa nova do Rei em uma alfaiataria que improvisaram no Centro da cidade, com as janelas e portas abertas, permitiam a todos os que por lá passassem, os assistissem na produção das vestes, todavia, dissimulavam, costurando, alinhando e ajustando o nada, aos olhos dos moradores da cidade, que por sua vez, ao serem indagados pelos vigaristas, se estavam gostando do tecido e da forma que as vestes estavam ganhando, se diziam maravilhados com a beleza e a qualidade daquelas “vestes especiais”, temendo que se dissessem não enxergar nada, seriam taxados de mentirosos e burros.
             Chegado o dia do evento e terminada a confecção da tão badalada roupa nova do Rei, os falsários foram ao palácio para vestir o Rei na presença de seus ministros.
             Ao apresentarem a roupa para o Rei e seus ministros, estes ficaram perplexos e atônicos. O Rei pensou consigo: – Nossa! Não consigo enxergar absolutamente nada, será que sou tão burro e dissimulado assim? Depois de anos de reinado e tantas conquistas, o que o povo irá pensar? Os nobres tentarão me depor.
           – O Primeiro Ministro pensou em silêncio – Meu Deus! Não enxergo nada, o que o Rei vai pensar de mim? Que não sou qualificado? Que estou lhe enganando todos esses anos? Certamente vai me enviar para forca em praça pública. – O Ministro das Artes dizia em sua abstração – Por todos os deuses! Não vejo nada, depois de anos de tantos eventos e contribuições artísticas, o que será de mim? Serei exilado e nunca mais poderei voltar. 
           – Após alguns segundos, os vigaristas irromperam o silêncio e indagaram – E então Majestade o que nos diz? – O Rei Respondeu – Encantado, é esplendido, uma verdadeira obra prima. – Bondade sua Majestade. – Responderam os farsantes, passando a pergunta ao Primeiro Ministro que prontamente respondeu. – É magnífica, esplêndida, digna da grandeza do nosso Rei, certamente que o povo ficará ainda mais encantado com a realeza de Vossa Majestade. – Em seguida lançou-se o Ministro das Artes. – Trata-se de uma verdadeira obra de arte, um trabalho artístico formidável, a verdadeira transcendência imaterial da arte em seus mais variados aspectos semânticos, uma visão cíclica entre o tangível e o intangível, Vossa Majestade estará impecável.
           – Com a ajuda dos vigaristas, o Rei se vestiu, com a roupa que não existia, caminhou nu pelo palácio, na presença de guardas e nobres, que não poupavam elogios à roupa nova do Rei, que subiu na carruagem real e desfilou pela cidade, onde todos de igual modo enxergavam o Rei nu, porém, lançavam olhares, suspiros e expressões, como se estivessem maravilhados com a beleza da roupa nova do rei, até que um menino no meio da multidão, espantado, gritou com espontaneidade e sinceridade, típicos de uma criança:
          – Iii o Rei está pelado.
        – Pense... Reflita... Exerça sua liberdade de pensamento, pois a conclusão pertence a você!
          

                                                                                          Por Helder Chiaratti – Advogado. 


Autor

  • Helder Ferreira Chiaratti

    Formado pela Universidade Cândido Mendes. Pós-graduado em Direito Imobiliário pela ABADI. Membro da Associação Brasileira dos Advogados do Mercado Imobiliário (ABAMI). Atua também no Direito de Família e no Direito Previdenciário.

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