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A culpabilidade é requisito do crime, pressuposto da pena ou fundamento da pena?

A culpabilidade é requisito do crime, pressuposto da pena ou fundamento da pena?

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O presente trabalho possui por escopo a análise da posição sistemática ocupada pela culpabilidade, a fim de aferir se esse instituto, que é um dos mais polêmicos no âmbito da teoria do crime, é requisito do crime, pressuposto ou fundamento da pena.

O conceito hoje existente acerca da culpabilidade não advém do Código Penal Brasileiro, o qual se descuidou dessa tarefa, sendo fruto da evolução da dogmática jurídico-penal. Passando-se, sequencialmente, pela teoria psicológica e pela teoria psicológica-normativa, chega-se à teoria normativa pura, baseada na teoria finalista da conduta, amplamente consagrada pela doutrina majoritária, a partir da qual “a culpabilidade ganha um elemento – ‘a consciência da ilicitude” (consciência do injusto) – mas perde os anteriores elementos ‘anímicos-subjetivos’ – o dolo e a culpa stricto sensu – reduzindo-se, essencialmente, a um juízo de censura”[1]. A culpabilidade é, assim, a reprovabilidade que incide sobre o agente da conduta típica e antijurídica, que poderia se motivar de acordo com a norma e agir de modo diverso.

 Conceituado o instituto é importante perquirir se este é requisito do crime, pressuposto ou fundamento da pena, destacando-se, desde já, que a conclusão advinda da discussão que ora irá se adentrar está longe de possuir amparo uníssono na doutrina penal.

Para aqueles que conceituam o crime sob a ótica tripartida, este seria composto pelo fato típico, antijurídico e culpável, de modo que a culpabilidade seria um requisito do crime, um elemento ou predicado.

No ponto, merece destaque o entendimento dissonante de Damásio de Jesus, seguido por diversos autores filiados ao finalismo welzeliano, no sentido de que o crime era “ação típica e antijurídica, admitindo a culpabilidade como mero pressuposto da pena”[2].

Sucede que alguns contrapontos acerca desse entendimento merecem ser ventilados, conforme bem elucida Cézar Roberto Bitencourt[3], para quem a culpabilidade é predicado do crime:

(...) a tipicidade e a antijuridicidade não seriam também pressupostos da pena? Ora, na medida em que a sanção penal é consequência jurídica do crime, este, com todos os seus elementos, é pressuposto daquela. Assim, não somente a culpabilidade, mas igualmente a tipicidade e a antijuridicidade também são pressupostos da pena, que, por sua vez, é consequência do crime.

A despeito de opiniões divergentes sobre o tema ora em voga, partilho do entendimento de que, em sendo a culpabilidade um juízo de reprovação que recai sobre o autor do fato, revelando-se, assim, como um juízo de censura post factum, não há como se sustentar que seria elemento integrante do conceito de crime, o qual se traduz apenas como uma conduta típica e antijurídica.

Nesse sentido, de grande relevo é a lição trazida por Luiz Flávio Gomes[4]. Vejamos:

a culpabilidade (...) embora seja uma categoria muito relevante dentro do Direito Penal, não compõe o conceito de crime nem integra o conceito de fato punível. Não pertence ao injusto penal nem tampouco ao fato punível. Ela é um dos fundamentos indeclináveis da pena e, desse modo, faz o elo entre o crime e a pena concreta. Não deve ser estudada, por isso mesmo, nem dentro da teoria do delito nem tampouco no âmbito da teoria da pena. Ocupa, como se nota, posição sistemática autônoma, independente, mas ao mesmo tempo intermediária: entre a teoria do delito e a teoria da pena.

Ao meu ver, a culpabilidade ocupa posição sistemática fora do fato punível, atuando como verdadeiro fundamento da pena e balizador do jus puniendi estatal na medida em que se dedica, também, a evitar possíveis excessos desse poder punitivo.

A corroborar com esse entendimento é a redação do art. 59 do Código Penal:

Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Assim é que a culpabilidade, como fundamento da pena, “refere-se ao fato de ser possível ou não a aplicação de uma pena ao autor de um fato típico e antijurídico, isto é, proibido pela lei penal”[5], desde que preenchidos os requisitos cumulativos da imputabilidade, consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa.

  1. CONCLUSÃO

A culpabilidade, enquanto conceito dogmático que é, é alvo de grandes divergências entre doutrinadores e penalistas, seja no tocante à conceituação, seja no que diz respeito à posição sistemática por ela ocupada.

Sobre esse último ponto, e conforme o exposto, afigura-se razoável entender a culpabilidade como fundamento da pena, isto é, como um objeto de valoração que embasará a aplicação do preceito secundário da norma, na medida em que o delito satisfaz-se antes disso, apenas com a verificação da prática de um ato típico e antijurídico (conceito bipartido).

  1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 19. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013.

GOMES, Luiz Flávio, Antonio, GARCÍA PABLO DE MOLINA. Direito Penal: parte geral. 2. Ed. São Paulo: RT, 2009, v.2, pp. 408-414. Material da 1ª aula da Disciplina Culpabilidade e responsabilidade pessoal do agente, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Ciências Penais – Universidade Anhanguera-Uniderp – IPAN – REDE LFG.

MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal, volume I: parte geral, arts. 1º a 120 do CP. 24. Ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2007.

TOLEDO, Francisco de Assis. O erro no direito penal. São Paulo: Saraiva, 1977.


[1] TOLEDO, Francisco de Assis. O erro no direito penal. São Paulo: Saraiva, 1977, p.21.

[2] JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. Volume 1 – parte geral. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p.133.

[3] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 19. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 438.

[4] GOMES, Luiz Flávio, Antonio, GARCÍA PABLO DE MOLINA. Direito Penal: parte geral. 2. Ed. São Paulo: RT, 2009, v.2, pp. 408-414. Material da 1ª aula da Disciplina Culpabilidade e responsabilidade pessoal do agente, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Ciências Penais – Universidade Anhanguera-Uniderp – IPAN – REDE LFG.

[5] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 19. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 437.


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