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A valoração da palavra da vítima no crime de estupro

Um avanço na repressão e condenação de crimes sexuais ou uma afronta ao princípio de presunção de inocência do réu?

A valoração da palavra da vítima no crime de estupro. Um avanço na repressão e condenação de crimes sexuais ou uma afronta ao princípio de presunção de inocência do réu?

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Nos crimes sexuais geralmente não há existência de provas materiais que assegurem a palavra da vítima. Por isso, nesses crimes a palavra da vítima ganha especial relevância. O questionamento é se essa valoração não afrontaria o princípio in dubio pro reo.

A VALORAÇÃO DA PALAVRA DA VÍTIMA NO CRIME DE ESTUPRO: UM AVANÇO NA REPRESSÃO E CONDENAÇÃO DE CRIMES SEXUAIS OU UMA AFRONTA AO PRINCÍPIO DE PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA DO RÉU?

RESUMO: A violência sexual contra o sexo feminino, fruto de fatores sociais que levaram a mulher a ser objetificada, traz enormes traumas, afetando  saúde física e psíquica da vítima. Os crimes sexuais são praticados na clandestinidade, impossibilitando a existência de provas materiais que assegurem a palavra da vítima, o que a leva, mesmo depois de violentada, a não comunicar o fato à autoridade policial. Em muitos casos a palavra da vítima é o único elemento que se tem. Por isso, em se tratando de crimes sexuais a palavra da vítima ganha especial relevância, sendo valorada nos crimes de estupro. A discussão surge quando com fundamento naquilo que diz a vítima de crime sexual, quando inexistem outros elementos consistentes que ratifiquem a existência do crime, há uma condenação penal. Surge o questionamento se a valoração da palavra da vítima no crime de estupro afrontaria ou não o princípio in dubio pro reo.

Palavras-chave: Mulher. Condenação. Presunção de inocência. Violência sexual.

  1. INTRODUÇÃO

O Brasil tem um histórico de séculos de opressão e violência contra a mulher, com a visão de inferioridade desta em relação ao homem. Há uma cultura machista e sexista enraizada nos costumes, que objetifica a mulher como propriedade masculina.

Uma das expressões da violência contra a mulher é a violência sexual. A conduta de violentar uma mulher, forçando-a ao coito contra sua vontade, não somente a inferioriza, como também a afeta psicologicamente (GRECO, 2015). Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 47.646 estupros foram registrados no país, em 2014. Porém, esse número é muito maior considerando que em média apenas 35% dos crimes sexuais são notificados. Na maioria das vezes a vítima, mesmo depois de violentada, não comunica o fato à autoridade policial, fazendo parte daquilo que Greco (2015) chama de cifra negra.

O estupro está tipificado no Código Penal como crime contra a dignidade sexual, no Título VI da parte especial, no artigo 213: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.

O sujeito passivo no crime de estupro, quando a finalidade for conjunção carnal ou ato libidinoso poderá ser tanto o homem quanto a mulher. No entanto, será abordada neste estudo a vítima mulher, pois esta é em grande maioria o sujeito passivo do delito. Segundo um estudo do IPEA, em relação ao total das notificações ocorridas em 2011, 88,5% das vítimas eram do sexo feminino.

Os crimes sexuais são praticados na clandestinidade, sendo difícil a existência de alguém que testemunhe o fato ou outro elemento que comprove a violência, não havendo provas materiais que assegurem a palavra da vítima. Em muitos casos a palavra da vítima é o único elemento que se tem. Por isso, em se tratando de crimes sexuais a palavra da vítima ganha especial relevância, sendo valorada nos crimes de estupro.

A discussão surge quando com fundamento naquilo que diz a vítima de crime sexual, quando inexistem outros elementos consistentes e sólidos que ratifiquem a existência do crime, há uma condenação penal.

Pelo princípio in dubio pro reo, se o juiz não possui provas sólidas para a formação do seu convencimento, o melhor caminho é a absolvição, julga-se pela prevalência do interesse do réu (NUCCI, 2014).

Desta forma, este trabalho tem por objetivo principal perquirir se a valoração da palavra da vítima no crime de estupro afronta o princípio de presunção de inocência do réu.

  1. A PALAVRA DA VÍTIMA NO CRIME DE ESTUPRO E A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA DO ACUSADO

Em regra, para demonstrar ter havido uma infração, exige-se o exame pericial, quando esta deixa vestígios. A mulher vítima de violência sexual deve se submeter ao exame de corpo delito para comprovar a prática de ato sexual e as lesões físicas provocadas pelo agressor. Geralmente, essa comprovação não ocorre, pois a maioria das vítimas registra a violência após quarenta e oito horas necessárias para a análise, tendo maiores dificuldades quando a vítima é adulta e não-virgem. Comumente sem testemunhas e provas materiais, um processo de estupro se desenvolve em torno do confronto entre a palavra da mulher contra do acusado. (COULOURIS, 2010). Daí a importancia dada ao depoimento da vítima nestes casos. “Em determinados crimes, a palavra da vítima tem maior relevância, principalmente quando está de acordo com as demais provas acostadas aos autos, pois, caso contrário, a impunidade seria uma constante, visto que nesses delitos a prova da testemunha ocular é, muitas das vezes, inviável” (TJSE. AP. Crim. 0198/2007 – SE, C.C., rel. Edson Ulisses de Melo, 09.06.2009, v.u.).

As declarações do ofendido constituem meio de prova, e devido as dificuldades de comprovação da denúncia, a palavra da vítima é considerada pela jurisprudencia como um dos elementos mais importantes do processo. Algumas vezes é considerada suficiente para sustentar a condenação do réu na falta de provas mais consistentes. Outras jurisprudências impõem condições para que o depoimento da vítima seja considerado, como sinais de violência, comportamento da vítima ou que sua palavra seja corroborada com outros elementos (COULOURIS, 2010).

Aconselha Távora (2015), entretanto, que o conteúdo das declarações, por partir de pessoa diretamente interessada exige certa cautela.

Não é equivocado afirmar que em processos de estupro, existe uma grande autonomia dos juízes, se consideramos que eles devem adequar suas decisões a uma lei ampla e uma infinidade de jurisprudências divergentes (COULOURIS, 2010). Afirma Nucci (2014) que resta ao magistrado exercitar ao máximo a sua capacidade de observação, a sua sensibilidade para captar verdades e inverdades, ler nas entrelinhas e perceber a realidade na linguagem figurada ou propositadamente distorcida.

Melhem e Rosas (2013) fazem uma veemente crítica à valoração exacerbada da palavra da vítima. Para estes os juízos vem nadando em sentido oposto, em tempos em que toda a doutrina caminha em rotas de direito penal mínimo. Os julgadores e alguma parte da doutrina vêm entendendo que, pelas circunstâncias em que acontece o delito e pela gravidade da natureza do crime, é possível superar algumas prerrogativas de que deveriam gozar os agressores e condená-los com base numa única prova. Condenações mal estruturadas em matéria probatória. Neste tipo de crime tem-se a mitigação de garantias. Na ação penal o denunciado já entra como culpado pelo crime, devendo ele fazer prova.

A vítima diretamente envolvida pela prática do crime, pode estar coberta por emoções perturbadoras por conta do sofrimento pelo qual passou, podendo, então, haver distorções naturais em suas declarações. Outro aspecto a ser considerado são as exposições pormenorizadas do fato criminoso, nem sempre frutos da verdade, pois o ofendido tem a capacidade de inventar muitas circunstâncias, até para atenuar a sua responsabilidade na ocorrência do delito (NUCCI, 2015). Nucci (2015) ainda complementa dando exemplos de alguns casos que podem levar a condenação de um inocente. A mulher, pretendendo vingar-se da rejeição após o ato sexual consentido, acusa o ex-namorado de tê-la estuprado, invocando a grave ameaça, que não deixa marcas, nem a possibilidade de um exame de corpo de delito. A adolescente que invoca um estupro como razão para uma gravidez indesejada.

Bitencourt (2014) esclarece ser inadmissível aceitar somente a palavra da vítima como fundamento de uma decisão condenatória, que não venha corroborada com outros convincentes elementos probatórios. O Direito Penal e Processo Penal devem nortear-se pelas garantias constitucionais, incluindo aqui a presunção de inocência. Na falta de condições probatórias, o juiz deve sempre absolver (MELHEM e ROSAS, 2013). “A palavra da vítima em crimes de natureza sexual deve, para ensejar um condenação, encontrar-se alicerçada e em consonância com outros elementos que convicção que a corroborem, sendo insuficientes depoimentos meramente derivados da versão da suposta ofendida. Inexistindo comprovação cabal da autoria do crime, impõe-se a aplicação do postulado do in dubio pro reo, para promover a absolvição do acusado”. (TJ-RR - ACr: 0060110000142, Relator: Des. MAURO CAMPELLO, Data de Publicação: DJe 19/04/2013)

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Brasil é um país com altos índices de violência sexual contra mulher. O estupro é um exemplo de violência sexual e trás enormes traumas, afetando sua saúde física e psíquica.

Por conta da clandestinidade do crime e a dificuldade de provas materiais a palavra da vítima é um dos elementos mais importantes do processo, tendo prerrogativa especial e constituindo meio de prova.

O número de vítimas de estupro que notificam o delito as autoridades competentes é pequeno e o não apoio pode fazer com que elas nem cheguem a registrar o boletim de ocorrência.

Ponderando doutrina e jurisprudência pode-se asseverar que o que se veda é a utilização da palavra isolada da vítima para a condenação do réu, em respeito ao postulado do in dubio pro reo, sendo necessários outros elementos probatórios que confirmem a existência do crime.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2015. ISSN 1983-7364 ano 9 2015. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em:<http://www.forumseguranca.org.br/produtos/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/9o-anuario-brasileiro-de-seguranca-publica>. Acesso 25/09/2016.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial : dos crimes contra a dignidade sexual até dos crimes contra a fé pública. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

BRASIL. Tribunal de Justiça de Roraima. ACr: 0060110000142, Relator: Des. MAURO CAMPELLO. DJe 19/04/2013.

BUONICORE, Augusto. O anti-feminismo na história. 2007. Disponível em:<file:///D:/Downloads/O%20anti%20feminismo%20na%20Hist%C3%B3ria%20(5).pdf>. Acesso 29/09/2016.

CERQUEIRA, Daniel; COELHO, Danilo de Santa Cruz. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde. Brasília: IPEA, 2014.

COULOURIS, Daniela Georges. A Desconfiança em relação à palavra da vítima e o sentido da punição em processos judiciais de estupro. 2010. 242 f. Tese de doutorado- Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo. 2010.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, vol. III.12ª. ed. Niterói: Impetus, 2015.

MELHEM, Patricia Manente; ROSAS, Rudy Heitor. Palavra da vítima no estupro de vulnerável: retorno da prova tarifada? In: Congresso Internacional de Ciências Criminais, 4, ISSN: 2237- 3225. 2013. Disponível em:<http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/cienciascriminais/IV/19.pdf>. Acesso em 10/09/216.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 10ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2015.



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