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Sentença internacional no caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia) vs Brasil e suas consequências no caso de descumprimento

Sentença internacional no caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia) vs Brasil e suas consequências no caso de descumprimento

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Uma vez caracterizado o descumprimento da sentença internacional, o Estado-Membro da OEA pode ter uma pluralidade de sanções aplicadas, desde a pressão moral/social, restrições econômicas, diplomáticas, políticas e podendo chegar a outras sanções mais gravosas a serem definidas pela Assembleia Geral.

INTRODUÇÃO

No mundo ocidental, a proteção dos direitos humanos tem sido uma preocupação cada vez maior com o passar dos anos. Acontecimentos negativos e conquistas sociais que marcam a sociedade, seja em casos regionais ou globais, impulsionaram o debate e a difusão da proteção aos direitos humanos. Junto a Organização dos Estados Americanos (OEA), o Sistema Interamericano de Direitos Humanos é uma ilustração desse fenômeno. Composto pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e por alguns órgãos especializados da OEA, o dito sistema possui atribuições fixadas em seus atos regulamentares justamente para melhor atuar na proteção dos Estados e cidadãos.

O Brasil não ficou de fora. É Estado-Membro da OEA, participa do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos e, desde 1998, está submetido à jurisdição internacional da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH).

Participar de uma organização internacional da qual visa proteger os direitos humanos não significa, automaticamente, que todos são fiéis cumpridores dessas normas. O Estado brasileiro mesmo já respondeu por demandas na Corte IDH, tendo inclusive sido condenado. É justamente sobre uma dessas demandas que o presente estudo pretende focar como objeto: o caso Gomes Lund (“Guerrilha do Araguaia”) vs Brasil.

O caso Gomes Lund e Outros vs Brasil (“Guerrilha do Araguaia”) consistiu em uma demanda protocolada em 7 de agosto de 1995 à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que por sua vez submeteu à apreciação e julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) em 26 de março de 2009. Versou sobre a responsabilidade do Estado Brasileiro em razão de detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de setenta pessoas (alguns membros do novo Partido Comunista do Brasil e outros camponeses da região), fruto da atuação do Exército brasileiro para conter e erradicar a Guerrilha do Araguaia, em plena ditadura militar brasileira (1964-1985).

Em sede de contestação, o Estado brasileiro apresentou três exceções preliminares e defesa de mérito. Nas preliminares, rogou pelo reconhecimento da incompetência ratione temporis[1]; pela incompetência da Corte IDH, uma vez que não teria esgotado todos os recursos internos da ordem jurídica brasileira; e a última exceção preliminar sobre falta de interesse processual  dos representantes no pólo ativo. Em defesa de mérito, sustentou que estava realizando ações para solução compatível ao caso, cuja memória consolidaria a definitiva reconciliação nacional.

Após os procedimentos perante a Corte IDH para evolução do processo (sobre realização de provas e oitivas de partes), alegações finais e audiência pública com manifestação de partes interessadas, chegou-se à sentença. A sentença internacional rejeitou a maioria das exceções preliminares[2][3] arguidas pelo Estado brasileiro e, quanto ao mérito, condenou o Estado Brasileiro.

A condenação consistiu em vários itens, ao que se passa a resumi-los. Assim, o Estado brasileiro foi considerado responsável: pelo desaparecimento forçado de pessoas; pelo descumprimento da obrigação de adequar o direito interno à Convenção Americana de Direitos Humanos (devido à interpretação e aplicação da Lei da Anistia não terem atingido objetivos esperados pela dita Convenção, como a falta de punição dos responsáveis, por exemplo); por omitir informações relevantes a interessados, motivo pelo qual lhe foi imposto o dever de garantir acesso facilitado a toda e qualquer informação que possa contribuir para deslinde de violações; por violar direito à integridade pessoal dos familiares. A condenação brasileira no mencionado caso ainda gerou dever de reparações às famílias; obrigação de investigar fatos, julgar e, se for o caso, punir os responsáveis e de determinar o paradeiro das vítimas; oferecer tratamento médico e psicológico/psiquiátrico às vítimas que assim solicitarem; outras medidas de reabilitação, satisfação e garantias de não repetição; fixação de indenizações e pagamento das custas/gastos com a demanda internacional.

É importante ressaltar que, concomitantemente à demanda junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e Corte IDH, tramitou perante o Supremo Tribunal Federal (STF) a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 158/2008, a qual questionava a recepção constitucional do artigo 1º da Lei de Anistia número 6.683/79, que anistiou os crimes cometidos no período da “Guerrilha do Araguaia”. A decisão do STF e a decisão da Corte IDH não encontraram sintonia entre si.

O quadro que se teve foi o seguinte: a) em 29 de abril de 2010, o STF declarou improcedente a ADPF nº 153/2008, isto é, considerou a Lei da Anistia recepcionada pela Constituição Federal de 1988; b) em 24 de novembro de 2010 (aproximadamente seis meses depois da decisão do STF), a Corte IDH condenou o Brasil na demanda internacional, declarando que a Lei da Anistia impediu a investigação, o julgamento e a punição de graves crimes cometidos sob a responsabilidade do Estado brasileiro.

Diante desse cenário, o artigo pretende perquirir sobre os efeitos da decisão da Corte IDH, caso o Estado brasileiro se comporte no sentido de não dar cumprimento à decisão emanada pelo tribunal internacional.

Para a realização da pesquisa, utilizou-se de pesquisa exploratória com base em fontes bibliográficas e documentais. A seleção das fontes bibliográficas se deu por meio de autores que escreveram recentemente sobre os temas tratados (critério temporal) em revistas científicas. As fontes documentais se restringiram à Convenção Americana de Direitos Humanos, ao Regulamento da Corte IDH, à Carta Democrática Interamericana e à sentença condenatória no caso “Guerrilha do Araguaia” (Gomes Lund e Outros vs Brasil).

Para a interpretação da bibliografia mencionada aplicada aos documentos analisados, utilizou-se do método dedutivo, aliado às legislações pertinentes, compondo os resultados, a discussão e as conclusões aqui apresentadas.


ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA) E A CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS

A Organização dos Estados Americanos (OEA) é uma organização internacional governamental regional de direito público internacional criada por tratado internacional em 1948 na intenção inicial de estreitamento das relações recíprocas e conjunto de princípios comuns de conduta entre Estados americanos e seus cidadãos. Atualmente, composta por 35 Estados, possui objetivos muito amplos, organização complexa de caráter consultivo, assessoramento e com poder de influência política. Para ser membro da OEA, é necessário que o Estado seja independente (ARRIGHI, 2004).

A amplitude de atuação da OEA foi crescendo desde a sua criação e sendo definidas prioridades nos passar dos anos. Numa política protecionista, os Estados membros da OEA assinaram um novo tratado internacional em 1969 em defesa dos direitos humanos. Como fruto, gerou a Convenção Americana de Direitos Humanos, também chamado de Pacto de San José da Costa Rica, o qual entrou em vigor a partir de 18 de julho de 1978.

Como se pode notar, a Convenção Americana de Direitos Humanos é um dos documentos mais relevantes que passou a nortear o tratamento dos Estados e seus cidadãos sobre o assunto de direitos humanos no continente americano. Todos os Estados signatários passaram a dever obediência. Além disso, o pacto também tomou compromisso para que os Estados internalizem aquelas normas para dentro de seu direito interno, como parte da política de proteção.


A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CORTE IDH) E A NATUREZA DE SUAS DECISÕES

Criada em 22 de maio de 1979 (ou seja, contemporânea à Convenção Americana de Direitos Humanos), a Corte IDH é um órgão jurisdicional do continente americano de proteção dos direitos humanos vinculado à Organização dos Estados Americanos (OEA). Possui competência consultiva (quanto à interpretação e à aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos; e quanto a outros tratados internacionais de matéria de direitos humanos que envolvam Estados americanos) e competência contenciosa (competência jurisdicional para julgar afrontas a direitos humanos expressos na Convenção Americana de Direitos Humanos).

O julgamento pela competência contenciosa somente se dará em litígios que envolvam os Estados que tenham aceitado submissão à Corte IDH por meio de reconhecimento formal e expresso. Ao julgar, a Corte IDH proferirá sentença internacional de caráter definitiva e inapelável, o qual vincula o Estado condenado a cumprir com o direito ou liberdade violado, reparação de consequências, indenização e outras medidas que entender necessário para assegurar o fiel cumprimento.

Como esclarecimento quanto à natureza, é necessário destacar a existência de três formas de sentenças: a nacional, a estrangeira e a internacional. As três convergem no sentido de serem frutos de uma prestação jurisdicional; além disso, são expressões do exercício do direito de ação. Logo, possuem natureza jurisdicional. Em todas as três sentenças haverá um caso concreto resolvido por tais decisões, emanada por um órgão imparcial provocada por alguém. Reside no órgão prolator a diferença entre as três sentenças.

A sentença nacional é aquela emanada por órgão judicial nacional, isto é, com jurisdição no território brasileiro. No direito brasileiro, a definição se encontra no artigo 203, § 1º do Código de Processo Civil. Uma vez prolatada, a sentença nacional, em casos cíveis, por exemplo, se executa normalmente conforme os capítulos processuais da execução do Código de Processo Civil.

A sentença estrangeira é aquela proferida por órgão judicial em jurisdição alheia ao território brasileiro, isto é, emanada pelo judiciário estrangeiro com base em direito estrangeiro. Tal sentença necessita de homologação prévia junto ao Superior Tribunal de Justiça para começar a ter efeitos no território brasileiro, com a exceção às de divórcio consensual (artigo 961, caput e § 5º, Código de Processo Civil). Há previsão legal no Código de Processo Civil que estatui a possibilidade de haver a homologação de sentença estrangeira, mesmo que sem comprovação diplomática de reciprocidade na cooperação jurídica internacional (artigo 26, § 5º, Código de Processo Civil).

A seu turno, a sentença internacional é aquela proferida por órgão judiciário internacional do qual o Estado faz parte, ou seja, aceitou se submeter por meio de tratado ou convenção internacional antecedente que o vincula. A exemplo, tem-se o Brasil que aceitou a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) no caso de controvérsias entre outros Estados ou entidades estatais (MAGALHÃES, 2000). É nessa que se situa o objeto de estudo do presente artigo.


NOTAS SOBRE O DESCUMPRIMENTO DE SENTENÇA INTERNACIONAL E O CASO GOMES LUND "GUERRILHA DO ARAGUAIA" VS BRASIL

Conforme já antecipado, a decisão nacional do STF na ADPF nº 153/2008 apresentou entendimento diferenciado sobre a Lei da Anistia quando comparada com a decisão da Corte IDH. Em outras palavras, em razão de uma decisão da mais alta corte no Brasil ter entendido que a Lei da Anistia foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, a mensagem passada pela interpretação do STF é que a Lei da Anistia, tal como foi elaborada e vigora, não afronta a norma constitucional em sua inteireza, mesmo considerando que a Constituição Federal de 1988 é defensora expressa dos direitos humanos.

Em contrapartida, em vários pontos da sentença internacional emanada pela Corte IDH, o referido tribunal atacou diretamente a Lei de Anistia, declarando que a forma como foi elaborada impede a investigação, o acesso às informações e provas, processamento, julgamento e punição dos responsáveis pelos crimes atribuídos ao Estado brasileiro durante a “Guerrilha do Araguaia”.

Para essa discussão, parte-se do princípio de que as duas sentenças (a nacional e a internacional) são legitimamente válidas quanto à aplicação ao Brasil: a primeira, por ser nacional, estar prevista em documento constitucional, prolatada regularmente pela mais alta instância do Poder Judiciário brasileiro; e a segunda, pelo Estado brasileiro ter se submetido à jurisdição da Corte IDH, em exercício regular de sua soberania em manifestar formalmente adesão aos regulamentos provenientes desse pacto. Porém, não se presta esse artigo a investigar qual a medição de forças entre a sentença nacional e a sentença internacional deve prevalecer. O foco é discutir sobre as possíveis consequências do não cumprimento de decisão legítima da Corte IDH, caso esse seja o comportamento do Estado brasileiro quanto à “Guerrilha do Araguaia”.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em seu artigo 68, estabelece que todos os Estados, a partir da adesão formal, se comprometem a cumprir com a decisão da Corte IDH em quaisquer casos em que forem parte. Na mesma inteligência segue a Corte IDH, ao estabelecer no artigo 24 de seu Regulamento a cooperação dos Estados, impondo a tais membros a facilitação e execução dos procedimentos jurisdicionais. Como se pode perceber, normativamente, a sentença internacional prolatada pela Corte IDH não tem natureza de eficácia facultativa ou alternativa; como se é de esperar, é impositiva e demanda obediência.

Ainda que não seja a intenção definir quem deve prevalecer, é relevante lembrar que entre as sentenças nacionais e as sentenças internacionais não há hierarquia, isto é, a Corte IDH não é uma instância superior ao STF. Entretanto, no caso em questão, a Corte IDH prolatou uma sentença internacional cujo conteúdo é a interpretação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos a respeito da Lei da Anistia, considerando-a inaplicável quando resultar em exclusão de responsabilidade, investigação e julgamento de pessoas envolvidas na “Guerrilha do Araguaia”. Trata-se de um controle de convencionalidade perante a Convenção Americana sobre Direitos Humanos na qual norteia conduta do Estado brasileiro no sentido da internalização de tal entendimento (MAZZUOLI, 2009). Porém, o STF não se encontra vinculado a tais interpretações, como de fato, julgou improcedente a ADPF nº 153/2008.

Feitas tais observações, passa-se à sentença internacional. A sentença da Corte IDH ao Estado brasileiro estatuiu condenações plurais: deveres de investigar, julgar e, se for o caso, punir, garantir acesso a informações, adequar a Lei de Anistia e outros diplomas correlatos para que deixem de dificultar processos judiciais e administrativos pelos interessados, dever de reparar, pagar indenizações, custas e gastos dos envolvidos, entre outras responsabilizações. O cumprimento das obrigações que envolvam obrigação pecuniária possui caminho existente em ordenamento interno para ser realizado procedimentalmente (PIOVESAN, 2011).

De fato, o Estado Brasileiro enviou em 14 de dezembro de 2011 um relatório contendo tópicos que julgaram ter satisfeito todos os pontos da sentença internacional. Porém, quanto à adequação da ordem interna e investigação dos crimes praticados à época da “Guerrilha do Araguaia”, tais obrigações foram questionadas pela Corte IDH quanto ao seu efetivo cumprimento. Não por menos,  esse assunto tem sido debatido pelos juristas e comunidade acadêmica (CEIA, 2013).

Em todo caso, o não cumprimento de sentença internacional da Corte IDH pode ocasionar sanções aos Estados descumpridores. No caso de Gomes Lund (“Guerrilha do Araguaia”) vs Brasil, a Corte IDH concedeu, em sentença, o prazo de um ano para que o Estado brasileiro enviasse relatórios sobre o cumprimento. O descumprimento dessa decisão sujeita o Brasil a pena de inadimplência, submetível à Assembleia Geral da OEA, suscetível a penalidades políticas (OSUNA, 2002). Além disso, o inadimplemento de sentença da Corte poderá acarretar em nova responsabilização internacional do Estado descumpridor (RESENDE, 2013). Em uma nova responsabilização por inadimplemento (ou até mesmo inércia), a nova condenação pode conter imposição de reforma constitucional (RAMOS, 2005).

É também consequência do descumprimento da sentença a possibilidade da Assembleia Geral da OEA, estando certa do inadimplemento da sentença internacional, emitir resolução, sem caráter vinculante, no sentido de encorajar aos demais Estados-Membros para que imponham sanções econômicas até a mudança de atitude (BERNARDES, 2011).

Embora sem previsão, há de considerar a possibilidade de sanção moral ou social por parte dos demais Estados-Membros da OEA. Tal medida consiste em outras formas de pressão moral ou política de grupos de Estados contra o descumpridor, com o propósito de forçar/convencer a adotar as medidas necessárias para o adimplemento. Tal pressão não tem caráter vinculante, porém acaba produzindo efeitos diplomáticos (LATTANZI, 1983). 

Nota-se, pois, um poder conferido à Assembleia Geral da OEA de dosar as sanções conforme a amplitude do descumprimento. Dentre sanções leves, moderadas e gravosas, é certo que não há previsão expressa para expulsão de Estado-Membro. O mais próximo dessa situação é a possibilidade de um Estado ser suspenso de exercer as prerrogativas e direitos de Estado-Membro caso haja ruptura da ordem democrática, conforme artigo 21 da Carta Democrática Interamericana (ARRIGHI, 2004).

Embora existam essas possibilidades de sanções aplicáveis, a realidade é que a Corte IDH (bem como todo o Sistema Interamericano de Direitos Humanos) não dispõe de aparato internacional que imponha o cumprimento de suas sentenças internacionais. Nesse ponto, esbarra-se na realidade de que se deve respeitar a soberania dos Estados, evitando-se de criar alguma entidade supraestatal para que faça alguma execução forçada (CEIA, 2013).


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Estado brasileiro, ao assumir compromisso internacional por meio de pactos ou tratados internacionais, exerce plenamente sua soberania para convencionar. A submissão à Corte IDH foi uma expressão de soberania na qual o Estado escolheu sujeitar-se àquelas regras do jogo, isto é, às consequências da jurisdição internacional da referida corte.

Uma vez submetido, não se trata de uma questão de escolha sobre o cumprimento. Tal qual um contrato, o princípio do pacta sunt servanda se aplica também aos tratados internacionais, impondo o cumprimento, ante as obrigações prévia e formalmente assumidas. Uma vez signatário, o Estado passa a ter o compromisso na harmonização de ambas dimensões normativas, não cabendo escusas face à contrariedade de ordem interna (RESENDE, 2013).

Nesse raciocínio, ante a legitimidade da sentença proferida, o Estado brasileiro guarda obediência à Corte IDH e, por essa razão, deve cumprir na integralidade a sentença internacional prolatada pelo mencionado tribunal. Aliás, tendo fundamento em Direito Internacional, seara em que se envolvem soberanias em estado de igualdade, o descumprimento de Estado signatário implica não somente em desobediência à Corte IDH, mas também passa a mensagem de desrespeito às normas pactuadas e desrespeito diante os demais Estados soberanos (RAMOS, 2005).

Esse mesmo autor lembra que mascarar situação de adimplemento quando na verdade se está descumprindo obrigação constante em sentença, com habilidade de ilusionismo não é mais possível (como outrora fora) frente aos mecanismos de publicidade, dinamicidade da informação e medidas avaliativas disponíveis.

Uma vez caracterizado o descumprimento da sentença internacional, o Estado-Membro pode ter uma pluralidade de sanções aplicadas, desde a pressão moral/social, restrições econômicas, diplomáticas, políticas e podendo chegar a outras sanções mais gravosas a serem definidas pela Assembleia Geral da OEA. Entretanto, coloca-se em dúvida até que ponto tais sanções realmente provocam no Estado-Membro o desejo de adimplir adequadamente determinada decisão internacional.

É fato que não há mecanismo que imponha a execução forçada das decisões da Corte IDH. Porém, felizmente, segundo Trindade (1999), há um alentador índice de cumprimento das decisões e cooperação dos Estados na sua forma espontânea.

Por último, não há previsão de expulsão da OEA, mesmo nos casos mais graves de inadimplemento. E essa decisão de não expressar expulsão coaduna com os objetivos expressos na Convenção Americana de Direitos Humanos, onde se valoriza a conscientização do Estado-Membro, situação essa preferível à de se ter menos um Estado comprometido com os compromissos de direitos humanos no continente americano. Aliás, é mais efetiva a propagação dos direitos humanos pela sua promoção do que pelos atos de império.

Fazer valer a sentença internacional ao aplicar sanções diversas e impor internalização de norte interpretativo de normas (principalmente quando contrárias à da ordem interna) tem sido um desafio no campo do Direito Internacional, pois sempre se esbarrará em debates sobre dominação, igualdade e soberania dos Estados.

No final das contas, por mais espinhoso que seja enveredar conclusões pacíficas sobre o tema, tal estrutura de como age o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (com seus erros e/ou acertos) é, de longe, melhor do que uma absoluta falta de proteção.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARRIGHI, Jean Michel. OEA – Organização dos Estados Americanos. Barueri-SP: Editora Manole, 2004.

BERNARDES, Marcia Nina. Sistema Interamericano de Direitos Humanos como esfera pública transnacional: aspectos jurídicos e políticos da implementação de decisões internacionais. SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos, v. 8, n° 15, dez/2011, p. 150.

CEIA, Eleonora Mesquita. A Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e o desenvolvimento da proteção dos Direitos Humanos no Brasil. Rio de Janeiro. R. EMERJ, v. 16, n. 61, p. 113-152, 2013.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CIDH). Regulamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos. CIDH, 1979.

LATTANZI, Flavia. Garanzie dei diritti dell’uomo nel diritto internazionale generale. Milano: Giuffrè, 1983.

MAGALHÃES, José Carlos. O Supremo Tribunal Federal e o direito internacional: uma análise crítica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Teoria geral do controle de convencionalidade no direito brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Ano 46, nº 181, jan-mar/2009, Brasília, 2009.

OSUNA, Karla Irasema Quintana. La Corte Interamericana de Derechos Humanos y la ejecución de sus sentencias en Latinoamérica. Instituto de Investigaciones Jurídicas de La Universidad Nacional Autônoma de México. Ciudad Universitária, 2002.

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana sobre Direitos Humanos. OEA, 1978.

__________. Carta Democrática Interamericana. OEA, 2001.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

RAMOS, André de Carvalho. Responsabilidade internacional do Estado por violação de direitos humanos. Revista CEJ, v. 9, n. 29, p. 53-63, 2005.

RESENDE, Augusto César Leite de. A executividade das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil. Revista de Direito Internacional. Brasília, v. 10, n. 2, 2013 p. 225-236.

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. Vol. 2. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999.


Notas

[1] A incompetência ratione temporis arguida pretendeu eliminar qualquer responsabilidade do Estado brasileiro nessa demanda na Corte IDH frente aos acontecimentos na chamada Guerrilha do Araguaia em razão do tempo. Isso porque o Brasil somente admitiu e submeteu-se à jurisdição internacional da Corte IDH em 10 de dezembro de 1998, mediante o Decreto Legislativo nº 89/1998, no qual contém cláusula de restrição de responsabilidade a eventos ou acontecimentos anteriores à sua adesão (ou seja, aplicação da não-retroatividade).

[2] Houve rejeição parcial da primeira exceção preliminar arguida sobre a ratione temporis. Como o Estado brasileiro reconheceu a Corte IDH a partir da data de 10 de dezembro de 1998, todos os atos após essa data adentrariam para a apreciação do julgamento, inclusive os anteriores a essa data, mas que possuíam caráter contínuo ou permanente, como o caso de desaparecimento forçado de pessoas, que permanece enquanto o corpo não é encontrado.

[3] Houve rejeição quanto à alegada “falta de esgotamento de recursos internos” em razão da pendência de julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153, uma vez que não apresentou tal alegação em momento processual oportuno (que seria junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos). Além disso, não se sustenta tal alegação porque esse recurso não caberia às famílias das vítimas, e ainda, o objeto da ação não se relaciona com os direitos violados em si, mas quanto à harmonia com as regras constitucionais.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA JÚNIOR, Wilson Simões de. Sentença internacional no caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia) vs Brasil e suas consequências no caso de descumprimento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5784, 3 maio 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72546. Acesso em: 19 abr. 2024.