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Alocação de riscos em contratos de parceria público-privada: a (expressiva) distância entre teoria e prática

Alocação de riscos em contratos de parceria público-privada: a (expressiva) distância entre teoria e prática

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O artigo analisa os modelos teóricos mais relevantes relacionados à alocação de riscos em PPPs e avalia em que medida tais modelos são observados na prática de elaboração dos contratos e as possíveis razões para a dissonância entre a teoria e a prática.

  1. Introdução

O tema-base deste artigo, expresso em seu título – alocação de riscos em contratos de parceria público-privada (PPP)[1] – poderia soar, à primeira vista, redundante, em face da extensa produção doutrinária sobre o assunto e de seu caráter aparentemente genérico. En­tretanto, como será aprofundado, o que nos motiva a abordá-lo é precisamente os muitos hiatos que testemunhamos entre as diretri­zes e consensos consolidados na teoria e a prática observada na fase de elaboração contratual dos projetos.

Objetiva-se, portanto, com o presente artigo, menos inovar em con­ceitos e entendimentos estabelecidos na doutrina e, mais propria­mente, jogar luz sobre posturas equivocadas comumente adotadas nas discussões inerentes à elaboração de matrizes de riscos[2] em con­tratos de PPP, investigando as premissas em que se assentam e ofe­recendo, ao fim, propostas a gestores públicos, membros de órgãos de controle e participantes do mercado em geral para superação dos problemas diagnosticados.

Para alcançar esse objetivo definido, principia-se, na segunda seção, por expor um conceito de risco e identificar como este se relaciona com as obrigações contratuais das partes. Na sequência, aborda-se a relação direta entre a matriz de riscos e o equilíbrio econômico-financeiro do contrato e identificam-se algumas incongruências, especialmente na redação dos contratos, que prejudicam a melhor compreensão do tema.

Na terceira seção, apresenta-se o atual estágio de desenvolvimento teórico sobre os critérios de alocação de riscos, recorrendo à dou­trina pátria e internacional. A seção restringe-se, nesse tema, a uma visão geral e à identificação de pontos de consenso, passando ao largo de discussões controversas ou de especificidades que em nada contribuiriam para estabelecer o pano de fundo teórico do presente artigo.

Ainda na terceira seção, foram confrontadas as diretrizes teóricas identificadas com a prática corrente na construção de matrizes de riscos e buscou-se demonstrar em que medida os critérios de alo­cação descritos são mal interpretados, ou mesmo ignorados, sendo substituídos por outros que não encontram embasamento teórico e se fundamentam frequentemente em premissas equivocadas. Para facilitar a compreensão das ideias expostas, são identificados determinados sinais externos ao processo de estruturação de PPPs que permitirão confirmar o cenário relatado, mesmo àqueles não habi­tuados a participar dessa fase interna de discussões.

Na quarta seção, são abordadas as razões que levam à deficiência diagnosticada na confecção de cláusulas contratuais de alocação de riscos, começando por aquela que parece ser, a juízo dos autores, o principal óbice ao tratamento adequado do tema, qual seja, o des­virtuamento, possivelmente por razões ideológicas, de uma discus­são que deveria ser pautada exclusivamente por critérios técnicos. Busca-se demonstrar como o afã de salvaguardar o interesse público e ostentar uma postura “pró-Estado” resulta, em muitos casos, em prejuízos evidentes aos interesses que se pretende proteger.

São discutidos, ainda, outros motivos que conduzem às deficiências relatadas, enfatizando a frequente ausência de profissionais nas equipes de estruturação com conhecimento específico sobre o mercado securitário, assim como a desatenção em relação às consequências econômicas das decisões tomadas e a disseminação de im­propriedades que decorre do hábito de replicar cláusulas de outros projetos sem as cautelas necessárias.

Por fim, com base no diagnóstico realizado nas seções precedentes, busca-se oferecer, na quinta seção, algumas propostas de solução para as disfunções retratadas, objetivando-se contribuir para a uti­lização mais profícua do modelo contratual de PPPs.

De acordo com o plano apresentado, não pareceu pertinente fazer menção a desacertos existentes em contratos ou decisões adminis­trativas particulares, dado que o presente artigo não se propõe a avaliar projetos específicos, mas sim a ressaltar a importância de seguir as balizas do desenvolvimento teórico na atividade de estru­turação de projetos.

  1. Algumas considerações sobre os riscos e sua previsão no âmbito dos contratos

Definição de risco

De forma sintética, um risco pode ser definido como um evento, um fator ou uma influência que ameaça o bom andamento do pro­jeto, agindo sobre seus prazos, seus custos ou sobre a qualidade dos serviços prestados (FRANÇA, 2011). Tal evento, fator ou influência pode vir ou não a se concretizar ao longo da execução do contrato, bastando, para que seja conceituado como risco, que sua ocorrência seja possível e incerta.

Outro elemento a se ter em vista acerca dos riscos, e que já se pode antever de sua definição, é que se trata de evento cuja ocorrência poderá representar, em última instância, um impacto financeiro para o contrato[3]. Isso significa que, seja afetando os prazos, os cus­tos ou a qualidade dos serviços, a ocorrência de um evento classifi­cado como risco terá a potencialidade de afetar o plano de negócios do concessionário prestador do serviço. O desenho de uma matriz de risco destina-se, portanto, a estabelecer: (i) os eventos cujo im­pacto financeiro permanecerá com o parceiro privado; e (ii) aqueles cujo impacto sobre o concessionário será suportado ou compensado pelo Poder Público.

Riscos e obrigações: uma distinção

Sendo a matriz de riscos do contrato de PPP um mecanismo que visa essencialmente lidar com as consequências financeiras definitivas advindas da ocorrência de determinados eventos, é nítido que não se trata de um instrumento apropriado para regular obrigações e responsabilidades das partes do contrato. A definição detalhada e precisa dos direitos, obrigações e responsabilidades de cada parte contratual é, antes, pressuposto para a elaboração da matriz de riscos.

Não se nega que diversos riscos terão uma formulação muito próxima das obrigações a eles correspondentes. A título de exemplo, costuma-se conferir ao concessionário, em cláusula própria, a obrigação de obter licenças, permissões e autorizações relacionadas à concessão, ao mes­mo tempo que se lhe atribui, na matriz de riscos, o risco da obtenção daquelas licenças, permissões e autorizações, o que abrange tanto o risco de não obtenção quanto o de atraso na obtenção. Em hipóteses como essas, o que se está estabelecendo é que o parceiro privado ar­cará com as consequências financeiras últimas do descumprimento de determinada obrigação a ele próprio atribuída. De certa forma, a atribuição expressa daquele risco também acaba reforçando que o dever de obter as licenças é uma obrigação de resultado.

Muitas vezes, entretanto, o risco é inserido na matriz sem que a obrigação a ele correspondente esteja expressa em qualquer outro lugar do contrato. Nesse caso, será necessário certo esforço her­menêutico para se concluir que, naquela formulação do risco, está contida uma obrigação contratual. É comum, por exemplo, que se atribua ao parceiro privado o risco do surgimento de passivos am­bientais, mas sem que se diga expressamente que ele tem o dever de resolver tais passivos.

Caso entenda que não há tal obrigação de sanar os passivos, pela ausência de previsão expressa, o concessionário poderia, na even­tualidade de ocorrência do evento, postular que sua obrigação li­mitar-se-ia a suportar os efeitos financeiros diretos na concessão, exonerando-se da adoção de medidas concretas para sanar o passivo identificado. Daí a importância de se detalhar, em cláusula própria, a obrigação correspondente ao risco, até mesmo com a imposição de sanções em caso de descumprimento.

Atribuição nominal e finalística de riscos

Sem a pretensão de esgotar uma tipologia, pode-se vislumbrar a existência de duas formas de atribuir riscos em um contrato: nomi­nal e finalística. Pela atribuição nominal, são descritos diretamente os eventos fáticos que podem impactar economicamente a conces­são, como as manifestações públicas, a variação de demanda, o pere­cimento ou roubo de bens da concessão, os passivos ambientais etc. Nessa forma, se houver uma obrigação contratual correspondente, tal obrigação geralmente será a de sanar ou de mitigar os efeitos do advento daquele risco.

Já pela atribuição finalística, não se descrevem os eventos fáticos, mas apenas o resultado que poderá ser afetado em razão da super­veniência desses eventos. É o caso do risco de obtenção de licenças e do risco de atraso no cumprimento dos cronogramas contratuais. Independentemente de quais eventos venham a ocorrer, a parte as­sume as consequências econômicas do não alcance de determinado resultado. Em geral, nesses casos, o contrato também institui a obri­gação de que aquele resultado seja atingido.

Riscos e cumprimento de obrigações contratuais

A interpretação dos contratos de concessão e PPP pressupõe duas premissas relevantes que muitas vezes não se encontram explicitadas no corpo do contrato, e que por isso mesmo podem passar desper­cebidas: (i) a premissa de que, salvo disposição contratual expressa em contrário, cada parte, independentemente de qualquer circuns­tância exógena, não está dispensada de cumprir as obrigações a ela atribuídas; e (ii) a premissa de que, salvo disposição contratual ex­pressa em contrário, cada parte deve arcar definitivamente com to­dos os impactos econômico-financeiros relativos ao cumprimento das obrigações que lhe são atribuídas.

A importância dessas premissas se faz perceber naquelas hipóte­ses em que há o estabelecimento de uma obrigação contratual, mas não há na matriz de riscos, seja a atribuição nominal de um evento que possa vir a interferir no cumprimento daquela obrigação, seja a atribuição finalística de risco especificamente relacionada a tal obrigação. Nessas hipóteses, caso efetivamente ocorra algum fato que interfira no cumprimento daquela obrigação, a parte não esta­rá dispensada de cumpri-la nos termos estabelecidos no contrato, exceto quando houver a previsão expressa de que a ocorrência da­quele evento constitui um risco atribuído à parte contrária, ou se constar de cláusula que discipline as hipóteses de caso fortuito e força maior[4].

Em outras palavras, a parte não se desincumbe do dever de cum­prir determinada obrigação pelo fato de o contrato não lhe atribuir expressamente o risco de cumprimento. O mesmo ocorrerá se não houver uma atribuição nominal, à parte, de certo risco cuja mate­rialização interfira no cumprimento de obrigação a ela atribuída.

Isso ocorre, pois, em regra, todas as obrigações contratuais são de resultado. Ou seja, salvo ressalva expressa, elas deverão ser cumpri­das, aconteça o que acontecer, de modo que a parte sobre a qual recair a respectiva obrigação não poderá deixar de respeitá-la sob a alegação de que não foi possível fazê-lo: a obrigação já contém, indissociavelmente, o estado de coisas a ser alcançado com seu cum­primento e os riscos assumidos para essa consecução.

As exceções a esse dever irrestrito de cumprimento, portanto, caso não decorram de preceito legal específico, deverão estar expressa­mente previstas no contrato, mais propriamente na matriz de riscos. A título de exemplo, tem-se que a concessionária estará autorizada a descumprir certos prazos contratuais na hipótese de ocorrência de caso fortuito ou de força maior.

O que não se pode exigir é que, para cada obrigação atribuída a uma parte, haja a expressa atribuição finalística, àquela parte, do risco específico quanto ao cumprimento de tal obrigação. Igualmente, também não há de se esperar que o contrato consiga fazer a atribui­ção nominal, a cada parte contratual, de todos os riscos imagináveis que possam interferir no cumprimento de certa obrigação inciden­te sobre aquela parte.

Partindo desses pressupostos, qual seria então a utilidade de se atri­buir a uma parte, na matriz de riscos, o risco relativo ao cumpri­mento de determinada obrigação que já foi expressamente prevista em outro capítulo contratual? Conforme já se vislumbrou anterior­mente, é manifesta a utilidade da atribuição nominal de riscos que não se restringem a uma obrigação específica. Assim, por exemplo, o surgimento de passivos ambientais ao longo da execução con­tratual pode gerar diversas consequências para a concessão e afe­tar inúmeras obrigações; o que importa é que, surgido o passivo, o privado deve arcar com suas consequências econômico-financeiras, não se eximindo de cumprir as obrigações contratuais – quaisquer que sejam elas – em razão dessa ocorrência.

Riscos e reequilíbrio econômico-financeiro

Nas matrizes de risco contratuais, é de praxe encontrar, antes da atribuição específica de riscos, cláusula que atribui ao parceiro pri­vado, de forma genérica, todos os riscos inerentes “à execução do contrato” ou “à concessão”. Com base nisso, costuma-se deduzir que a relação dos riscos específicos que o contrato expressamente atribui ao privado é meramente exemplificativa, ou seja, que só não serão riscos do privado aqueles expressamente atribuídos ao Poder Con­cedente. Em tais contratos, portanto, a regra é que todo risco seja do privado, com exceção daqueles que recaem sobre o parceiro público[5].

Mesmo quando entendida como meramente exemplificativa, po­rém, a enumeração dos riscos acaba sendo imprescindível em razão da própria indefinição do que se entende por “riscos inerentes à concessão” ou “à execução do contrato”. Embora haja relativa cla­reza, pela própria leitura do escopo contratual, de que alguns ris­cos são evidentemente inerentes e de que outros são evidentemente não inerentes à execução do contrato ou à concessão, haverá sem­pre uma zona de incerteza quanto a determinados riscos. Com isso, uma das funções da relação discriminada de riscos será agir naquele espaço de dúvida, tornando explícita a atribuição de certos riscos[6].

Ademais, a individualização dos riscos atribuídos ao concessionário acaba sendo necessária ainda por outro motivo: a necessidade de tratamento diferenciado de certos riscos em razão de sua aptidão ou não para gerar um processo de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão[7].

De início, é importante realçar que, em linhas gerais, a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro ocorrerá em benefício da con­cessionária quando a concretização de algum dos riscos atribuídos ao Poder Público vier a afetá-la de forma economicamente negati­va. De outra feita, a recomposição dar-se-á em benefício do Poder Público apenas naqueles casos expressamente previstos no contrato.

Isso significa que, em regra, enquanto o advento de qualquer um dos riscos atribuídos ao Poder Público poderá gerar o reequilíbrio em favor da concessionária caso haja impacto econômico negativo para esta, apenas determinados riscos atribuídos ao parceiro priva­do poderão dar azo a um processo de recomposição do equilíbrio em favor do Poder Público.

Aquela parcela da matriz de riscos que estabelece os riscos da con­cessionária visa, a princípio, tão somente relacionar as hipóteses nas quais o concessionário deverá arcar economicamente com as consequências de certos eventos ou determinados resultados. Por se tratar, em regra, de riscos relacionados ao próprio negócio, cabe ao ente privado gerir os efeitos de sua ocorrência, atenuando os efeitos financeiros negativos e se apropriando dos positivos da maneira que julgar mais apropriada. Será apenas em determinados casos, expres­samente previstos no contrato, que o privado não terá a liberdade de gerir aqueles efeitos da maneira que melhor lhe aprouver: tais são os casos em que deverá haver um processo de reequilíbrio contra­tual em favor do Poder Público.

Em outras palavras, é necessária a redação de cláusula específica que “selecione”, entre os riscos atribuídos ao parceiro privado, aqueles cujo advento resultará em um processo de reequilíbrio, de modo que seus efeitos sejam revertidos em benefício do Poder Concedente.

No âmbito dos riscos estabelecidos em um contrato, portanto, identificam-se, de um lado, aqueles chamados de “riscos geradores de reequilíbrio” e, de outro, “riscos de mera absorção”. Enquanto os primeiros são os que podem conduzir a um processo de recom­posição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, seja em benefício do parceiro privado, seja do parceiro público, os segundos figuram como aqueles cujos efeitos devem ser administrados e su­portados pela parte à qual são atribuídos.

Nesse contexto, e conforme já aventado anteriormente, torna-se ainda importante realçar que, muito embora a noção de risco esteja comumente ligada a fatos com impacto econômico negativo sobre o parceiro privado, o certo é que há determinados eventos que tam­bém podem acarretar um efeito positivo para a concessionária.

Quando se atribui ao parceiro privado, a título de exemplo, o ris­co de variação cambial, estão sendo atribuídos, em verdade, dois riscos a essa parte: o risco de valorização e o de desvalorização da moeda. Enquanto a concretização do segundo risco costuma pro­duzir impactos negativos sobre o fluxo de caixa da concessionária, em especial quando o serviço está atrelado à aquisição de insumos importados, a concretização do primeiro tende a favorecer suas contas. É comum que muitos contratos tratem ambos os riscos como riscos de absorção – ou seja, o parceiro privado apropriar­-se-á dos benefícios da valorização e arcará com o prejuízo da des­valorização.

Hipótese similar se dá em relação ao risco de alteração de tributos e encargos legais, com exceção dos impostos sobre a renda. O au­mento e a diminuição de tributos configuram riscos distintos que tendem a, respectivamente, prejudicar e beneficiar a concessioná­ria. Neste ponto, entretanto, a própria lei exige que ambos sejam tratados como riscos vinculados a reequilíbrio: o aumento implicará reequi­líbrio a favor do privado e a diminuição acarretará reequilíbrio a favor do Poder Público[8].

Conflitos entre atribuições de risco

O tema do conflito entre atribuições de risco torna-se relevante quando, na superveniência de determinado fato que afete a execu­ção contratual, surgem dúvidas acerca de qual parte deve arcar com as consequências daquela ocorrência.

Se o risco de ocorrência do fato for atribuído expressamente apenas ao parceiro privado, ou então apenas ao Poder Público, obviamente a possibilidade de conflitos é diminuta. Ainda quando o referido fato simplesmente não é descrito no contrato, tendem a ser reduzi­das as chances de surgimento da dúvida, eis que, como se observou no tópico anterior, costuma-se prever que recaem sobre a concessio­nária todos os riscos inerentes à concessão que não estejam atribuí­dos ao Poder Concedente[9].

Os problemas aparecerão, com efeito, quando o fato em questão se enquadrar, em princípio, como um risco atribuído tanto ao Poder Concedente quanto ao parceiro privado.

Tome-se o exemplo de um contrato de PPP para prestação de servi­ços de iluminação pública nas vias municipais, no qual resta fora do objeto da concessão a distribuição de energia elétrica[10]. Suponha-se que, ao parceiro privado, seja atribuído o risco de danos ou falhas nos equipamentos de iluminação pública decorrentes de falhas no fornecimento de energia elétrica. Já na parcela da matriz que rela­ciona os riscos do parceiro público, imagine que se inclua o risco de falhas na prestação dos serviços decorrentes da interrupção no fornecimento de energia elétrica[11].

Pois bem: no exemplo da concessão em questão, caso venham a ocorrer problemas no fornecimento de energia elétrica, quem arca­rá com as consequências?

Esse tipo de questão pode surgir em diversos casos em que há uma linha causal de acontecimentos, mas os distintos fatos que a com­põem estão atribuídos, como riscos, a diferentes partes do contrato.

A dúvida em questão estará resolvida caso se estabeleça, no contra­to, cláusula que preveja uma “hierarquia” entre aqueles riscos, de modo a se saber, a priori, qual dos riscos prevalecerá em caso de conflito. Essa hierarquia pode ser estabelecida na própria descrição do risco atribuído à parte, caso em que se está diante do que se pode chamar de prevalência específica. No exemplo em questão, embo­ra a excepcionalização não esteja expressa, é possível deduzir, com base em uma interpretação sistemática, a regra geral de que proble­mas no fornecimento de energia elétrica constituem risco do Poder Concedente, salvo o caso específico em que tais problemas resultem em falhas ou danos nos equipamentos de iluminação pública, hipó­tese em que o risco é do parceiro privado.

Entretanto, é bem provável que não se consiga prever, com ante­cedência, todos os fatos componentes de todas as possíveis linhas causais que de alguma forma interfiram na execução do objeto con­tratual. Dessa forma, sem prejuízo de cláusulas de prevalência espe­cífica, pode ser interessante a existência de cláusula contratual que estabeleça um critério hierárquico geral, segundo o qual, havendo quaisquer conflitos entre previsões de risco no caso concreto, pre­valecerá o risco alocado a determinada parte. Nesse caso, estar-se-ia diante de uma prevalência genérica.

  1. Os riscos e sua alocação

Diretrizes teóricas para alocação de riscos

Nas palavras de Maurício Portugal Ribeiro e Lucas Navarro Prado, “a distribuição de riscos é a principal função de qualquer contrato” (RIBEIRO; PRADO, 2010, p. 117).

De fato, ainda que não seja a principal função, a importância da alo­cação de riscos não deve ser diminuída, eis que a materialização de ris­cos costuma causar os distúrbios mais graves nas relações contratuais.

Corroborando tal assertiva, o Guia suplementar para alocação ótima de riscos e gestão de riscos, documento publicado pela Prefeitura do Rio de Janeiro, aduz que o sucesso ou fracasso da estruturação de um projeto mui­tas vezes depende da identificação, análise e alocação dos riscos. Geralmente, as consideráveis quantias envolvidas, o fato de que os credores usualmente são remunerados pela receita gerada pelo ativo e a potencial volatilidade nas condições financeiras serve para lembrar que os ris­cos associados a projetos de PPP/Concessão podem ser extremos. Assim, as consequências de uma avaliação e alocação inadequada dos riscos também podem ser ex­tremas: a possibilidade de fracasso do projeto aumenta drasticamente. (RIO DE JANEIRO, 2015, p. 4).

Sintetizam-se, no texto citado, duas ideias capitais: a importância que decisões tomadas na fase de estruturação terão ao longo de todo o contrato e a gravidade das consequências atreladas a deci­sões equivocadas.

Convém registrar que a obrigatoriedade de disciplinar a alocação (ou repartição, na locução legal) de riscos no contrato, de forma ob­jetiva, encontra-se expressa no inciso VI, do artigo 4º, da Lei 11.079, de 30 de dezembro de 2004 (usualmente referida como “Lei de PPP”). Fora essa previsão, a legislação não se estende no assunto, razão pela qual é preciso recorrer às contribuições doutrinárias.

Ao discorrer sobre os incentivos contratuais pertinentes à alocação de riscos, Maurício Portugal e Lucas Navarro pontuam que, ao fazer a atribuição do risco a uma ou outra parte,

o contrato gera incentivo para as partes adotarem, por um lado, providências para evitar ocorrências que lhes sejam gravosas (os riscos negativos) ou, pelo menos, as suas consequências – (...); e por outo, estimula-as a agi­rem com o objetivo de realizar as situações que lhes são benéficas. (RIBEIRO; PRADO, 2010, p. 117).

É do conhecimento de qualquer pessoa superficialmente apresen­tada ao tema que o risco deve ser alocado à parte que possa melhor geri-lo. Esse princípio, porém, não obstante ser verdadeiro, necessi­ta de mais explicações para adquirir relevância prática.

Em seu trabalho Government guarantees: allocating and valuing risk in privately financed infrastructure projects, Timothy Irwin, depois de empreender uma detalhada definição de conceitos, postula o prin­cípio de que

cada risco deve ser alocado, juntamente com os direitos de tomar as decisões relacionadas, levando em considera­ção a capacidade de cada parte de (i) influenciar o fator de risco correspondente, (ii) influenciar a sensibilidade do valor total do projeto ao fator de risco corresponden­te – por exemplo, antecipando ou respondendo ao fator de risco, e (iii) absorver o risco. (IRWIN, 2007, p. 56)[12].

Prossegue-se dissecando os diferentes elementos do princípio esta­belecido por esse autor, que exprime, com sistematização oportuna ao objetivo desta seção, os pressupostos gerais inerentes à doutrina jurídica e econômica sobre o tema.

Sobre a primeira diretriz, qual seja, a de alocar o risco à parte que tenha maior influência sobre o fator de risco subjacente, depois de identificar uma clara correlação dessa ideia com o conceito de moral hazard, afirma o autor se tratar de um conceito simples: se uma parte pode influenciar o fator de um risco suportado por ela, então ela é beneficiada ao melhorar o resultado desse fator de ris­co e, portanto, arca (deve arcar) com os custos correspondentes (IRWIN, 2007).

Nesse contexto, um risco operacional, por exemplo, deve ser supor­tado pela parte a cargo das decisões operacionais. Em geral, essa pri­meira diretriz acaba sendo observada na prática cotidiana pelo fato de haver, como bem notou o autor, uma associação com o risco mo­ral que tende a ser bastante evidente na análise dos casos concretos.

A segunda consideração proposta abrange o cenário em que nenhu­ma das partes pode influenciar o fator de risco, quando então o (sub)princípio precedente mostrar-se-á inócuo. Nesses casos, postula-se que o risco seja alocado à parte que possa melhor responder ou se antecipar a sua concretização, ou seja, à parte que puder melhor influenciar o impacto do fator de risco no valor total do projeto (IRWIN, 2007).

Tome-se o interessante exemplo proposto pelo autor: se ninguém puder influenciar o risco de demanda de uma rodovia, este deve ser alocado à parte que possa melhor prever a demanda futura ao tomar decisões sobre onde (e quando) ela deverá ser construída.

Sobressai nesse ponto a associação que o autor faz entre a assunção do risco e das decisões correspondentes. Parece correto dizer que, no exemplo debatido, mutatis mutandis, a parte que tomar as deci­sões sobre a construção da rodovia deveria, por essa razão, suportar o risco de demanda. Entende-se relevante a observação porque há uma grande concentração de decisões nas mãos dos entes públicos em PPPs no Brasil e há que se ter certo cuidado ao absorver exem­plos da literatura estrangeira em que o contexto pode ser significa­tivamente diferente.

Por fim, ao chegar ao terceiro (sub)princípio, Irwin (2007) ressalta que sua aplicação seria desnecessária em um mundo em que todas as pessoas fossem neutras ao risco – se interessassem apenas por seu valor esperado e não por sua variação – e no qual o sistema finan­ceiro fosse perfeito. Não sendo o caso, mostra-se relevante verificar qual parte pode suportar melhor o risco.

Diz o autor que a capacidade de uma determinada parte absorver um risco está ligada a quatro fatores: (i) a correlação entre o fator de risco e o valor dos ativos e obrigações da parte[13]; (ii) a capacidade da parte de transferir o risco para terceiros; (iii) a capacidade da parte de atribuir o risco a seus efetivos tomadores; e (iv) as diferenças na aversão a riscos (IRWIN, 2007).

Incorporando essas noções e posicionando-as em um enfoque ne­gativo, poder-se-ia dizer que, a princípio e idealmente, não se deve alocar um risco a determinada parte se tal risco: (i) for excessivo em relação a seus ativos e obrigações e diretamente correlacionado com estes; (ii) não puder ser transferido por instrumentos financeiros (seguros) a terceiros ou não puder ser espraiado pelos stakeholders (consumidores, contribuintes etc.); ou (iii) puder, ceteris paribus, ser alocado à parte que tenha menor aversão a risco.

Uma consideração relevante que não deve ser olvidada é que o gestor público não dispõe, na formatação de projetos de PPP, de uma liberdade irrestrita para aplicação dos critérios técnicos anteriormente listados, eis que há riscos cuja gestão é imputada legalmente a uma das partes – citem-se, exemplificativamente, o risco inerente à criação, alteração ou extinção de quaisquer tributos ou encargos legais, depois da apresentação da proposta (ressalvados os impostos sobre a renda)[14], e o risco relativo aos prejuízos causados ao Poder Concedente, aos usuários ou a terceiros decorrentes da execução dos serviços[15], que são imputados por expressa dicção legal, respectivamente, ao Poder Público e ao parceiro privado.

A eficiente alocação de riscos pressupõe etapas prévias não menos relevantes de identificação e precificação dos riscos envolvidos no projeto, atividades para as quais há também sólido suporte teórico. Sobre esse ponto, Fernando Vernalha Guimarães observa que

a repartição de riscos deve estar orientada pela certeza e objetividade necessárias a eliminar ou minorar as dú­vidas e obscuridades na delimitação dos riscos e mesmo na sua alocação e partilha à responsabilidade das partes. Considerando que a repartição de riscos é o que forma a porção econômica relevante do contrato, eventual déficit de objetividade e de clareza na sua delimitação propicia­rá o incremento de custos de transação, com prejuízos à eficiência da contratação (GUIMARÃES, 2017).

O autor prossegue discorrendo sobre as distorções que a incom­pletude dos contratos (incluindo a falta de detalhamento cabível das matrizes de riscos) gera para o processo licitatório e para a exe­cução contratual. Entre outras consequências deletérias, postula-se que essa incompletude prejudicará a comparabilidade entre propos­tas, concorrerá para incrementar os custos envolvidos na transação (tornando as ofertas mais onerosas) e poderá acarretar distorções no resultado da licitação, em benefício de licitantes com maior ca­pacidade para renegociar contratos.

Acerca da precificação de riscos, que pertence mais propriamente à teoria econômica do que à jurídica[16], Fernando Vernalha Guimarães identifica seus elementos basilares na probabilidade de ocorrência do evento e na estimativa dos prejuízos daí decorrentes, oferecendo um exemplo de fórmula simples que pode ser utilizada para estimar custos de gerenciamento de riscos, “a qual considera a multiplicação do montante necessário para fazer frente aos prejuízos derivados da materialização do risco pela probabilidade de sua ocorrência” (GUIMARÃES, 2017).

No escopo do presente artigo, esse tema não será aprofundado, bastando dizer que há metodologias razoavelmente confiáveis de precificação de riscos e que elas devem ser, sempre que necessário, aplicadas pelos encarregados do desenvolvimento do projeto.

Um tema relevante que recebe a atenção do doutrinador é a ava­liação comparativa a ser empreendida entre a possibilidade de transferência de riscos ao concessionário e sua retenção pela ad­ministração pública, por meio do denominado autosseguro. Em suas palavras,

costuma-se aduzir que o auto-seguro será, em muitos casos (principalmente, em se tratando de riscos não­-controláveis e não-seguráveis), uma opção mais econô­mica do que a transferência de riscos à parte privada, pois essa sempre provisionará custos para gerenciar a prevenção desses riscos, incorporando-os no preço de sua proposta. Nesta hipótese, a Administração estará pagando pelo risco mesmo que ele não se materialize. E, em sendo um risco não controlável pelo concessio­nário, a tendência é que a estimativa de custos para o gerenciamento do risco esteja orientada por um cenário pessimista. (GUIMARÃES, 2017).

É uma orientação importante, diretamente fundada na economici­dade dos atos administrativos, e que merece ser mais bem assimila­da pelos gestores públicos.

Em conclusão, o administrativista dá destaque à ferramenta de com­partilhamento de riscos, asseverando que

o compartilhamento da responsabilidade por certo ris­co, em proporções arbitradas racionalmente no contrato, será uma técnica a manter o incentivo de ambas as partes à adoção de medidas mitigadoras. Esse compartilhamen­to será utilizado para hipóteses em que ambas as partes revelem-se aptas, em alguma medida, ao seu gerencia­mento. (GUIMARÃES, 2017).

Embora o jurista registre alguns exemplos pátrios da utilização des­se interessante mecanismo, anota-se, em seção pertinente deste ar­tigo, que sua pouca utilização pode ser interpretada como sinal da desconformidade do processo decisório de alocação de riscos que se entende existir atualmente em parte expressiva dos projetos de PPP.

São esses, pois, de forma muito abreviada, os contornos básicos da doutrina sobre a alocação de riscos em contratos de PPP. Veja-se, ago­ra, como se relacionam os conceitos teóricos com a prática contratual.

Práxis de alocação de riscos na estruturação de projetos

Em que pese haver um conhecimento relativamente disseminado entre os gestores públicos e profissionais envolvidos na estruturação de projetos sobre os critérios teóricos básicos que devem nortear a alocação de riscos em um contrato de PPP, é bastante difícil verifi­car, na prática contratual, a plena adoção desses critérios.

De fato, será precisamente pela presença de impropriedades[17], mais ou menos graves, no desenho final de muitos projetos de PPP reali­zados no país, que os leitores poderão precipuamente comprovar as falhas aqui relatadas: arbor ex fructu cognoscitur.

Não se pretende dizer, porém, que os equívocos na alocação de ris­cos sejam uma peculiaridade das PPPs no Brasil, decorrentes uni­camente da incipiência do mercado brasileiro. Em avaliação sobre o private finance initiative (PFI), programa de parcerias do governo britânico considerado paradigma para o resto do mundo, um co­mitê especializado do parlamento, depois de ouvir diversos espe­cialistas, identificou, já em 2011, sérias deficiências no processo de alocação de riscos naquele programa (PARLIAMENT UK, 2011)[18].

O detalhamento das razões subjacentes a essas deficiências será proposto na quarta seção; por ora, persiste-se na identificação, para além de seu resultado final – as cláusulas contratuais pertinentes à matriz de riscos –, de outros sinais que apontam para deficiências no processo em análise.

Um primeiro e quiçá principal fator de dificuldade encontrado por quem se dispuser a realizar uma investigação do processo decisório é o tratamento frequentemente conciso que o tema recebe nos pro­cessos administrativos que suportam os projetos de PPP. Em outras palavras, se existe uma análise técnica aprofundada prévia à elabo­ração das cláusulas contratuais referentes à matriz de riscos, difi­cilmente se encontram vestígios dela no processo administrativo, que, rememore-se, é supostamente o espaço em que o gestor público deveria justificar as opções adotadas no projeto.

Por óbvio, deficiências na elaboração do processo administrativo não se restringem ao capítulo contratual da matriz de riscos; roti­neiramente, veem-se decisões de órgãos de controle demandando complementação de informações e, em algumas ocasiões, essas lacu­nas são apontadas, inclusive, como motivo suficiente para justificar a suspensão[19] do andamento dos projetos[20].

Entretanto, mesmo nesse quadro de fragilidade processual, sobres­sai a ausência de fundamentação para as opções de alocação de riscos contratuais; até naqueles projetos em que se observa um cui­dado especial no registro dos estudos realizados e das alternativas consideradas nos autos do processo administrativo, raramente se encontra uma descrição da aplicação de critérios objetivos na alo­cação de cada risco ou registro da metodologia utilizada para pre­cificação dos riscos e a comparação financeira entre as diferentes opções de alocação.

A hipótese que aqui se levanta é que não se trata de uma mera falha ao formalizar e registrar discussões e análises executadas, mas sim a circunstância de que essas análises, no nível de detalhamento dese­jável, efetivamente não são realizadas.

Especula-se, seguindo a mesma lógica, que outro indício da falta de discussões adequadas seria a baixa utilização de mecanismos mais sofisticados de compartilhamento de riscos específicos[21], em con­traposição à atribuição pura e simples a uma ou outra parte.

Falou-se textualmente em especulação porque seria perfeitamente possível que a não adoção de mecanismos dessa natureza decorresse justamente de razões técnicas, caso em que seu infrequente uso não cor­roboraria, ao contrário, infirmaria, a alegação de falta de rigor técnico.

No quadro maior ora desenhado, porém, não é esta a hipótese mais provável. Parece razoável supor que a maior complexidade contra­tual no tratamento da gestão de riscos tende a ser um sinal da maior complexidade e aprofundamento do processo de identificação e precificação de riscos. Dito de outra forma: em um contexto no qual não se faz uma análise significativa, é mais fácil atribuir determi­nado risco integralmente a uma das partes do que efetuar qualquer repartição proporcional entre elas[22].

Outro fato que corrobora a impressão de dissonância entre a teoria e a prática na alocação contratual de riscos é a característica da atuação dos órgãos de controle – em especial dos entes subnacio­nais[23] – em relação à questão.

Por extrapolar em muito o propósito desta exposição, não se reali­zou um levantamento compreensivo de todas as manifestações de tribunais de contas relacionadas ao tema, o que permitiria fazer afirmações peremptórias, com suporte estatístico, sobre a jurispru­dência desses órgãos de controle[24]. Entretanto, registrada a ressalva, crê-se ser possível traçar as linhas-mestras da atuação dos tribunais de contas nessa matéria.

Em breves linhas, fazendo referência às considerações anteriores sobre as lacunas do processo administrativo, sustenta-se que os tribunais de contas não costumam condenar, por si só, a ausên­cia ou deficiência de justificativas no processo administrativo no que se refere estritamente às decisões de alocação de riscos; as intervenções dos tribunais, em relação ao tema, costumam ser pontuais e específicas, com base em discordâncias à redação final das cláusulas contratuais, usualmente já indicando as alterações a serem realizadas.

Lamentavelmente, os tribunais costumam incorrer no erro, que será explorado de forma detida na próxima seção, de confundir o prestí­gio ao interesse público com a maior alocação de riscos ao parceiro privado. Daí que a maior parte das correções propostas por esses órgãos de controle sejam nesse sentido[25].

Em resumo, os patentes equívocos em matrizes de risco de proje­tos de diferentes setores, a incompletude do tratamento do tema nos processos administrativos, a baixa utilização de mecanismos de compartilhamento de riscos específicos e o conteúdo das decisões dos tribunais de contas referentes à alocação de riscos constituem um quadro, na opinião destes autores, apto a demonstrar a disso­nância atualmente vigente entre a teoria e a prática. Serão explo­radas as razões que levam a esse estado de coisas na próxima seção.

  1. Fatores prejudiciais à prática corrente

Abordagem possivelmente ideológica de questão técnica

É noção basilar que o sucesso de uma PPP resulta diretamente do alinhamento de interesses que se consiga construir, ou seja, que o termo parceria não se limite ao nomen iuris do contrato, mas per­meie toda a concepção e todo o desenvolvimento do objeto.

Observa-se frequentemente, contudo, uma ênfase exacerbada na contraposição de interesses (em si mesma e em alguma medida ines­capável, vez que inerente à natureza contratual) que redunda na assunção de posturas “pró-Estado” e “pró-mercado” em discussões que pecam pelo distanciamento dos marcos teóricos estabelecidos.

Por certo, o tema desestatização evoca discussões infindáveis sobre o papel ideal do Estado, que fogem completamente ao objeto deste trabalho. Limitou-se, neste estudo, apenas a reconhecer a existência de diferentes opções legítimas de prestação de serviços públicos e atendimento do interesse público.

Realizada, todavia, a opção pela celebração de uma PPP, a discussão acerca da matriz de riscos mais adequada ao desenvolvimento do objeto contratual deve abandonar quaisquer elementos estranhos à técnica e à economicidade das decisões.

Parece uma decorrência lógica da teoria que exista uma matriz de riscos ideal para cada contrato, possivelmente inalcançável em sua integralidade em face da limitação das informações disponíveis. Que os gestores públicos e demais responsáveis por sua elaboração se esforcem por buscá-la ao longo das discussões do projeto revela­-se, todavia, condição essencial para que a versão final desse impor­tante capítulo contratual se aproxime, tanto quanto possível, dessa “matriz perfeita”.

Prejudica, a toda evidência, o atingimento dessa meta, a presença frequente de certa noção, não fundamentada e pouco verbalizada, de que a alocação de riscos ao parceiro privado, independente­mente das circunstâncias, é medida sempre benéfica ao Poder Pú­blico, que estaria assim livre de “surpresas” desagradáveis ao longo do período contratual.

Olvida-se, porém, que a alocação de riscos é atividade prévia ao certame licitatório e que, acertadas ou equivocadas, as opções da matriz de riscos serão inevitavelmente precificadas pelos eventuais interessados. Em outras palavras, qualquer “proteção” ao Poder Con­cedente será paga, necessariamente, por ele mesmo ou pelo usuário do serviço concedido, e a alocação de riscos de forma atécnica ao fu­turo concessionário somente terá o condão de determinar que este será o “fornecedor” dessa garantia, frequentemente em detrimento de outras opções mais econômicas ao Poder Público.

Com efeito, a tentativa de impor ônus e encargos desarrazoados ao parceiro privado na fase de elaboração dos projetos sempre resulta­rá em prejuízo ao interesse público em grau mais elevado do que o eventual prejuízo imposto aos investidores.

Isso porque, se os ônus e riscos impostos nas minutas contratuais não puderem ser adequadamente precificados ou deles resultarem a inviabilidade do projeto, ao investidor sempre restará a opção de não participar da licitação, e, nesse caso, ele terá perdido apenas uma potencial oportunidade de negócio.

Já ao Poder Público, suposto beneficiário das boas intenções de gestores públicos e consultores “pró-Estado”, restará pagar mais caro em licitações marcadas pela baixa competitividade ou celebrar parcerias de longo prazo com empresas com perfil de risco incom­patível com a natureza de estabilidade das PPPs (e, muito frequen­temente, incapazes de desenvolver a contento o objeto contratual). Quando há mais sorte, a licitação resulta deserta e o prejuízo se limita ao tempo e aos recursos desperdiçados.

Os que acompanham o mercado de PPPs no Brasil reconhecerão que os três cenários são desafortunadamente bastante comuns, em razão de questões que, por óbvio, não se limitam apenas à confi­guração da matriz de riscos, mas que decorrem de equívocos desse mesmo mindset que, quando presente, costuma afetar aspectos jurí­dicos, regulatórios e econômicos das PPPs.

Desprezo a capacitações relevantes

Além da postura criticada no tópico precedente – cuja responsabili­dade pela dissonância entre a teoria e a prática na alocação de riscos parece, aos autores, ser a mais relevante, vez que condiciona a forma de pensar do agente –, há outros fatores que podem explicar as deficiências observadas atualmente nas cláusulas contratuais de repartição de riscos.

Em primeiro lugar, dado que um meio habitual de gestão de riscos é a contratação de seguros, revelar-se-ia imprescindível, para a ela­boração da matriz de riscos, um conhecimento mais aprofundado sobre o mercado securitário, em especial no que toca às coberturas existentes e seus custos.

Tal conhecimento poderia advir da presença de um profissional es­pecializado na equipe do projeto ou da realização, pelos respon­sáveis, de investigações detalhadas com seguradoras, corretoras e demais participantes do mercado de seguros.

Nenhuma das duas alternativas apresentadas, entretanto, revela-se usual na prática. É rara a existência de profissional com conheci­mento especializado do mercado de seguros nas equipes multidisci­plinares de elaboração de projetos, mesmo nos casos em que o Poder Público se vale do auxílio de consultores externos[26].

Defendem os autores do presente artigo que a presença de profissio­nal com essa expertise seria a opção preferencial, uma vez que ele po­deria filtrar com mais propriedade as informações prestadas pelas entidades do mercado e cogitar novas possibilidades de utilização de mecanismos de seguros para o projeto[27].

Já a análise do mercado pela própria equipe do projeto, sem contar com profissional especializado, embora em tese viável, é conduzida na prática de forma bastante restrita.

Um fator de dificuldade para a realização de diligências pelas equi­pes do projeto é o sigilo inerente à fase interna da licitação, que, se por um lado não obsta a solicitação de cotações em termos gené­ricos, por outro lado, torna mais difícil o compartilhamento, com entes externos ao processo, da configuração detalhada do contrato e das opções avaliadas, o que tornaria a consultoria prestada por esses entes muito mais enriquecedora ao processo.

Há que se considerar também que as seguradoras participam, nessa fase, de forma voluntária e não remunerada, oferecendo informa­ções e cotações a quem se sabe que, no fim, não contratará os servi­ços. Evidentemente, isso tende a comprometer a disponibilidade e qualidade dos dados fornecidos.

Adicionalmente, é notório que, na realidade atual, as partes inte­ressadas – incluindo órgãos de controle – se contentam com um nível bastante superficial dos elementos que justificam ou decor­rem da matriz de riscos, o que gera a percepção de que o detalha­mento das condições de seguro seria um possível desperdício de tempo e recursos.

Ausência de apuração de impactos econômicos das decisões

É sempre pertinente a advertência de que o processo de formatação de uma PPP não deve ser compartimentado entre diferentes áreas do conhecimento, se não integrado ao máximo por equipes mul­tidisciplinares que atuem de forma verdadeiramente coordenada: não pode haver uma segregação rígida de atribuições que impeça a multidisciplinaridade de se converter em interdisciplinaridade[28].

Tal é o panorama em muitos projetos de PPP em que as opções con­tratuais não se baseiam previamente em uma análise econômica das alternativas e nem são posteriormente incorporadas aos modelos econômico-financeiros do empreendimento, o que seria, para estes autores, imperativo.

Assim, no processo de discussão da minuta de contrato, caso se pro­mova alguma alteração que venha a atribuir ao parceiro privado determinado risco relevante, suportado pelo Poder Público em ver­sões anteriores do documento, há de se esperar um ajuste – ainda que em grau pouco significativo – na taxa de desconto utilizada no modelo econômico-financeiro[29], ou nas despesas[30], ou custos[31] projetados. Caso isso não ocorra, há razão para suspeitar que o mo­delo econômico-financeiro esteja afastado da realidade que preten­de retratar.

Em projetos menos refinados, os modelos econômico-financeiros sequer simulam despesas individualizadas de seguro nos fluxos fi­nanceiros da concessão, optando por incluir as despesas de seguros em linhas genéricas de “despesas gerais e administrativas”, represen­tativas de um percentual da receita que varia relativamente pouco de projeto a projeto.

Poder-se-ia argumentar que as diferentes alocações de riscos pro­duziriam impactos imateriais no fluxo de caixa do projeto e que, ademais, não se justificaria descer a esse nível de detalhamento em uma projeção que ordinariamente assume contornos bastante ge­néricos. Despreza-se, contudo, com essa posição, o benefício peda­gógico de associar, diretamente ao modelo econômico-financeiro do projeto, as decisões espelhadas nos documentos jurídicos e o proveito que daí resultaria para a racionalidade econômica das de­cisões dos agentes.

Outro fator que limita a potencialidade da ferramenta de alocação de riscos como motor de eficiência e economicidade do contrato é a ausência de disseminação de metodologia para comparação financeira entre as diferentes possibilidades de alocação de ris­cos e a exposição dessa comparação nos documentos do projeto, ou seja, uma insuficiência nas análises de value for money (VfM)[32] em relação às consequências econômicas das decisões de alocação de riscos.

Ao se referir à ausência, não se pretende falar da inexistência de metodologias, mas de sua não utilização corriqueira nos processos de confecção de matrizes de risco nos projetos de PPPs.

Como dito alhures, o desafio não é saber que o risco deve ser alo­cado à parte que possa melhor geri-lo: tal noção é disseminada. O desafio é tangibilizar esse conceito nos casos concretos e criar meto­dologias seguras e objetivas para identificação do agente mais apto a gerir cada risco específico.

A elaboração do VfM em projetos de PPPs decorre de disposições da própria Lei 11.079/2004 (arts. 4º, inciso VII, e 10º, inciso I, alínea “a”). A interpretação da apresentação do VfM como uma obrigatoriedade legal revela-se uma faca de dois gumes: por um lado, garante que essa análise seja sempre realizada, por outro, arrisca-se que sua confecção seja vista pelo gestor público como mero desembaraço de exigência legal.

Comumente, o VfM em projetos de PPP será a análise do valor agregado por esse modelo de contratação diante da alternativa à disposição do Poder Público: sua contratação por meio de contrato de prestação de serviços regido pela Lei 8.666/1993.

A Lei 8.666/1993 consigna, no próprio texto legal, as hipóteses bas­tante restritas em que a superveniência de eventos pode gerar a re­composição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato[33]. Uma das “novidades” do modelo legal de PPP consistiu justamente em dar maior liberdade ao gestor público para construir uma matriz de riscos mais eficiente e estruturada sob medida para cada projeto.

Parece haver uma pressuposição de que o VfM da PPP seja positivo (aliás, diga-se que esse documento é produzido ao fim do projeto, quando já foram investidos meses, não raro anos, em seu desenvol­vimento) e percebe-se uma visão generalizada de que a análise, ao menos quando realizada para os fins legais, tem resultado binário, um go/no go pelo caminho de PPP.

Perde-se, com isso, uma ótima oportunidade de enxergar o VfM como uma ferramenta útil para avaliar diferentes opções no projeto e maximizar seu valor[34].

Na verdade, há pouco incentivo dos stakeholders para alterar o status quo: os investidores interessados no empreendimento não têm mo­tivação ou incentivo para questionar o resultado (positivo) do VfM; os gestores públicos, mesmo quando estão familiarizados com a fer­ramenta (hipótese incomum), têm receio de que um detalhamento de análises e justificativas aumente o espaço de questionamentos. À sociedade e aos responsáveis pela supervisão e fiscalização dos pro­jetos, faltam a experiência e o conhecimento básico para identificar e solicitar o suprimento de omissões na análise[35].

Precedentes viciados

Agrava e perpetua os problemas apresentados a prática difundida de replicar, muitas vezes sem a necessária reflexão, cláusulas de outros contratos de PPP (por vezes de projetos de outros segmentos econô­micos), nos quais, por sua vez, a elaboração da matriz de riscos pade­ceu das deficiências aludidas neste texto. A prática em si talvez seja sintoma da escassez de contratos de PPP no Brasil: os poucos con­tratos existentes acabam por se tornar referência sem maior mérito.

Que não se leia nas linhas anteriores qualquer crítica ou repúdio à padronização de documentos jurídicos em PPPs; ao contrário, avalia-se que a falta de padronização é, porventura, mais deletéria ao desenvolvimento do mercado no país que o próprio problema enfrentado neste trabalho[36].

Ocorre, porém, que o benefício da padronização é diretamente proporcional à qualidade dos documentos nos quais ela se baseia e pressupõe um nível de maturidade das discussões que, no que toca à matriz de riscos, se vê presente em pouquíssimos setores tradicio­nalmente objeto de PPPs.

Sublinhe-se, a propósito, que, em qualquer hipótese, não deve haver uma matriz de riscos-padrão para qualquer contrato; a padroniza­ção, ao menos nesse tópico, deverá ser específica a determinado setor e, ainda assim, haverá limitações à uniformidade e adoção de diferentes soluções em vista do porte e características peculiares dos diferentes projetos.

Depreende-se, portanto, que os aspectos primordiais do proble­ma estão intimamente inter-relacionados: a aplicação de qualquer metodologia adequada não prescindiria de informações do mer­cado securitário, que são atualmente rasas ou inexistentes. Por sua vez, a pouca atenção ou atecnicidade com que diversas vezes os órgãos de controle lidam com o assunto, conforme destacado na terceira seção, não estimula os gestores a utilizar metodolo­gias sérias e confiáveis e a aprofundar a coleta de informações necessárias à adequada alocação de riscos. Por fim, a contratação de projetos contendo falhas gera a perpetuação de equívocos por um processo costumeiro de “copia-e-cola”.

Impropriedades técnicas na redação dos contratos

É muito comum em certos projetos, por exemplo, que se pretenda, por um lado, atribuir ao Poder Público determinado risco, mas, por outro lado, conferir ao parceiro privado a obrigação de lidar com as consequências do advento daquele risco. Isso pode ocorrer com o risco de desapropriações: caso este venha a se materializar, pode­-se estabelecer que caberá ao concessionário tomar as providências e arcar com os custos da desapropriação, havendo posteriormente o reequilíbrio do contrato em seu favor, de modo que ele seja com­pensado pelos gastos despendidos.

É de se realçar que a opção por atribuir ao parceiro privado a obriga­ção de adiantar os custos relativos à ocorrência de determinado ris­co, ainda que haja a compensação pelo Poder Público, pode acarretar considerável impacto sobre o fluxo de caixa do parceiro privado, ra­zão pela qual é necessário que aquela atribuição esteja muito clara no texto contratual, para fins de precificação da proposta do licitante.

O que se observa em muitos contratos, entretanto, é que essa distinção não aparece da forma adequada. Não são raros os exemplos de contra­tos que, sob a aparência de estarem atribuindo certo risco a uma parte, estão, em verdade, estabelecendo uma obrigação àquela parte[37].

  1. Conclusão e propostas

Como destacado na Introdução, o presente texto não assumiu como meta propor avanços nos modelos teóricos sobre o tema, mas tão somente demonstrar a existência e investigar as causas de algumas dissonâncias relevantes entre teoria e prática na construção de mo­delos de alocação de riscos em contratos de PPP. Com base nisso, pretende-se propor algumas alternativas para superar as dificulda­des apresentadas.

Aquiesce-se que a sugestão de aprofundamento de qualquer tema contratual gere receio aos gestores públicos e aos investidores, em vista do prazo, por vezes indecoroso, que o desenvolvimento dos projetos de PPP leva hoje em dia, de sua concepção até a realização do procedimento licitatório.

Entretanto, há convicção de que as providências ora sugeridas poderão ser realizadas em paralelo a outras atividades, sem pre­juízo para os cronogramas dos projetos. Ademais, uma nova concepção do processo de elaboração de matrizes de risco de­monstra-se imprescindível para a difusão e sustentabilidade do modelo de PPP.

Nesse ponto, há que se considerar a relevância do momento históri­co para o debate em referência. No início da implantação do mode­lo contratual de parcerias no Brasil – recorde-se que a Lei Federal de PPPs é relativamente recente, e a experiência efetiva dos primeiros anos de vigência foi consideravelmente limitada –, pôde-se conviver com contratos que ainda tateavam metodologias mais robustas de alocação de riscos e apresentavam, por essa razão, soluções subóti­mas de tratamento de riscos.

Parece que o debacle (precoce) de diversas PPPs nos últimos anos[38], entretanto, terá como consequência inelutável a atribuição de maior atenção à matriz de riscos no contrato por todos os stakeholders, atenção esta que deverá se estender ao racional utilizado na elabo­ração dessas cláusulas.

Capacitação, diálogo e padronização

Em primeiro lugar, é óbvio, porém inevitável, mencionar a necessi­dade de contínua capacitação dos profissionais do setor no tema de alocação de riscos e, de forma ainda mais relevante, a imprescindi­bilidade de se reforçar a aplicação dos conceitos teóricos aprendi­dos na prática cotidiana.

Em outro giro, apesar das críticas – justas ou injustas – que rece­bem, é forçoso reconhecer que os tribunais de contas contribuem, em muitos casos, para o aperfeiçoamento de contratos do Poder Público, em especial, em projetos de concessão e PPP, que, por en­cerrarem ajustes de longuíssimo prazo, acabam por receber maior atenção desses órgãos de controle.

Nesse contexto, uma atuação mais técnica dos órgãos de controle, mediante um foco na fundamentação das decisões de alocação de riscos no processo administrativo, poderia ser o impulso necessário à dedicação de maior atenção ao tema pelos gestores públicos, em benefício da configuração final dos contratos.

A evolução no tratamento do tema não deve, entretanto, ser interpre­tada como responsabilidade exclusiva de estruturadores de projeto e órgãos de controle: as agências reguladoras, as entidades de classe e outros atores envolvidos no planejamento do setor de PPPs, em suas meritórias tentativas de construir ou propor padronização de mi­nutas e processos – tema mencionado en passant na quarta seção –, poderiam ser veículos difusores de metodologias didáticas para iden­tificação, precificação e alocação de riscos contratuais[39], o que traria proveito até mesmo àqueles entes públicos desprovidos de equipes técnicas mais sofisticadas para engendrar tais modelos in-house.

Acredita-se, aliás, que a participação de entidades do mercado se­curitário nesses fóruns de discussão poderia se revelar mais efetiva do que a participação pontual em projetos específicos, vez que as discussões não estariam limitadas por constrangimentos de sigilo de informações de projetos particulares.

O setor privado poderá ainda contribuir de forma relevante se, na fase de escrutínio público dos empreendimentos (audiência e consulta públicas), trouxer questionamentos fundamentados e que demonstrem, com base nos preceitos teóricos e nas circunstâncias práticas, os eventuais equívocos na elaboração da matriz de riscos.

Novos expedientes na etapa de identificação de riscos

Reputa-se que as atividades de identificação e detalhamento de ris­cos, logicamente prévias à tarefa de alocação, mereceriam também ser aperfeiçoadas, mediante a concepção de um fluxo de procedi­mentos mais minucioso[40].

Especificamente em relação à identificação dos riscos relevantes para o projeto, é inescapável – e até conveniente – que o ponto de partida seja a reprodução do elenco de hipóteses presente em ou­tros projetos ou em modelos específicos do setor; é preciso, todavia, avançar em relação a esse marco inicial.

Para tanto, julga-se pertinente que a equipe de estruturação do projeto se esforce para realizar entrevistas com reguladores e par­ticipantes do mercado que sejam partes de contratos em execução para identificar eventuais riscos materializados ao longo do perío­do contratual que estavam ausentes ou inadequadamente tratados no contrato celebrado.

Paralelamente, considera-se interessante estimular a realização de trabalho específico na etapa de estruturação dos projetos para si­mular diferentes cenários de execução do contrato e assegurar que os riscos identificados nessas simulações estejam devidamente con­templados nas minutas contratuais.

Em outro giro, em setores ainda pouco amadurecidos no contexto nacional, a consulta à experiência de outros países mostrar-se­-á fundamental.

O fato inelutável é que a não identificação de risco relevante ten­derá a prejudicar sua adequada alocação e gestão, tornando inócuos os esforços para adoção de maior rigor técnico na repartição dos riscos contratuais.

Fundamentação econômica das decisões

Uma vez que o principal objetivo da alocação de riscos é maximi­zar o VfM do projeto, as opções de alocação devem também estar refletidas nesse documento, ao contrário do que ocorre atualmente, conforme postulado na quarta seção.

Nem sempre será trivial comparar as diferentes opções de distribui­ção de riscos em termos monetários e, em muitos casos, tal compa­ração será dispensável para a tomada de decisão, como na hipótese de ser evidente a influência direta de uma parte (em contraposição à total impotência da outra) sobre o fator de risco.

Ademais, conforme brevemente mencionado em seção preceden­te, o VfM abarca a análise de aspectos qualitativos e não somente quantitativos: em certos casos, a tentativa de reduzir a números a complexidade dos fatores envolvidos demandará a assunção de tan­tas premissas arbitrárias, que o valor de análise do resultado afinal obtido poderá restar aniquilado.

Reconhecidas essas circunstâncias e dificuldades, contudo, conside­ra-se altamente desejável criar uma cultura de comparação econô­mica entre as diferentes opções de alocação de riscos, objetivando demonstrar o valor agregado ao projeto pela matriz de riscos corre­tamente concebida.

Em linhas muito genéricas, a análise a ser empreendida será a se­guinte: a assunção de um risco pelo Poder Público tem um custo[41], mas reduz a contraprestação; se a decisão for correta, a redução na contraprestação será maior que os custos incorridos. Por outro lado, a imputação de um risco ao privado exonera (ao menos, em tese) o Poder Público de absorver o custo de gestão daquele risco, mas gera um acréscimo na contraprestação a ser paga; nesse caso, o desafio será mostrar que a despesa com o acréscimo da contraprestação é in­ferior ao custo que o Poder Concedente teria com a gestão do risco.

Não se ignora que se está adentrando aí esfera de intensa subjetivi­dade e que qualquer decisão do Poder Público, ainda que patente­mente equivocada, poderá ser justificada pela adoção de premissas convenientes. Em outras palavras, há o risco de as premissas se ajus­tarem às decisões em vez de ocorrer o contrário.

Mesmo nessa hipótese, ter-se-á obtido um progresso não desprezí­vel: a exposição, clara e objetiva, das razões consideradas pelo Poder Público para suas decisões. E o acerto dessas razões não só poderá ser questionado no período anterior ao processo licitatório, como também, sendo o VfM utilizado como ferramenta para acompa­nhamento do contrato, sua aderência ou afastamento da realidade servirá ao aprendizado dos gestores públicos e, como consequência direta, ao aprimoramento dos modelos contratuais.

 


[1] Embora muitas das análises empreendidas neste estudo possam também ser pertinen­tes aos contratos de concessão comum, regidos pela Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, o artigo foi desenvolvido com escopo em contratos de PPP.

[2] Apesar de o tema da alocação de riscos estar hodiernamente associado à cláusula comu­mente denominada de matriz de riscos, o tratamento de riscos perpassa diferentes cláusu­las contratuais; citem-se, por exemplo, os riscos de extinção prematura do contrato, cujas consequências são tratadas em capítulo contratual específico. É nesse sentido mais abran­gente que o termo matriz de riscos – utilizado repetidas vezes – é adotado neste artigo.

[3] Marcos Nóbrega registra que a essência do risco “é caracterizada por três aspectos fun­damentais: o evento que significa a possível ocorrência de algo que poderia impactar o investimento; a probabilidade que significa a chance do evento de risco ocorrer em de­terminado período de tempo e, por fim, o impacto que corresponde ao valor financeiro resultante da incidência do risco”. (NÓBREGA, 2010, p. 3).

[4] Com alguma frequência, os contratos estabelecem que os riscos relativos ao caso fortui­to e à força maior são compartilhados entre as partes.

[5] Há intenso debate doutrinário acerca da possibilidade de se imputar ao privado o risco relacionado à álea extraordinária, discussão que se baseia na compulsoriedade ou não da apli­cação do art. 65, inciso II, alínea “d” da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, às PPPs. Para a de­fesa da incidência desse dispositivo às PPPs, ver Ribeiro (2016). Para a posição contrária, ver Guimarães (2013). O Tribunal de Contas da União (TCU) tem precedente adotando a pri­meira posição, tendo o ministro relator se manifestado no seguinte sentido: “Veja-se que a Lei 8.666/1993, aplicável às licitações e aos contratos para concessão de serviços públicos por força de seu art. 124, ao tratar sobre reequilíbrio econômico-financeiro, assim dispõe: ‘Art. 65. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos: (...) II - por acordo das partes: (...) d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos impre­visíveis, ou previsíveis porém de conseqüências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual. Fica claro, portanto, que o risco não atribuível ao contratado é aquele que, genericamente, está fora da capacidade tí­pica de previsão ou gestão do particular e/ou configura álea econômica extraordinária e extracontratual. Ainda que o conceito traga luz sobre a matéria, reconheço que em muitos casos é difícil discernir sobre o que seria álea contratual ou extracontratual, configurando linha tênue e subjetiva entre os dois campos jurídicos’.” (BRASIL, 2018). Para mitigar riscos e dubiedades dessa natureza e separar de forma objetiva as responsabilidades contratuais de cada parte, é preciso aperfeiçoar a redação da regra, tornando-a mais clara, previsível, justa e eficiente, à luz dos princípios regentes da Administração Pública, amoldando-a ao disposto art. 65, inc. II, alínea “d”, da Lei 8.666/1993. A despeito da interpretação legal, o Poder Pú­blico já vem tomando algumas iniciativas para relativizar essa alocação de riscos genérica ao concessionário. Em suas últimas concessões rodoviárias, estruturadas com apoio técnico da International Finance Corporation (IFC) no âmbito do programa SP Roads 1, a Agência de Transportes do Estado de São Paulo (Artesp), apesar de manter a lógica de alocação residual dos riscos à concessionária, aloca ao Poder Concedente a responsabilidade pelos riscos relacionados a “fatores imprevisíveis, fatores previsíveis de consequências incalculáveis, caso fortuito ou força maior que, em con­dições normais de mercado, não possam ser objeto de cobertura de seguro oferecido no Brasil e, à época da materialização do risco, este não seja segurável há pelo menos 2 (dois) anos no mercado brasileiro, por pelo menos duas empresas seguradoras, ou com relação à parcela que supere média dos valores indenizáveis por apólices normalmente praticados no mercado, independentemente de a CONCESSIONÁRIA as ter contratado, nos termos da subcláusu­la 19.1, XXVI”. Parece uma mitigação relevante à prática usual, conferindo maior razoabilidade à alocação de riscos contratual.

[6] Nesse sentido, tem-se que, “quanto mais detalhada é a matriz, menores são as possibi­lidades de se negligenciarem aspectos relevantes na correta alocação dos riscos” (ITÁLIA, 2018, p. 140 – tradução livre).

[7] Maurício Portugal Ribeiro considera que o sistema de equilíbrio econômico-financeiro tem três funções: “a) desestimular a realização de alterações oportunistas pelo governante, exigindo que qualquer alteração seja devidamente compensada; b) proteger, estabilizar e dar cumprimento ao cerne do contrato, permitindo que seja dado cumprimento adequado à matriz de riscos ao longo do tempo; c) possibilitar a realização de alterações no objeto (...) e em outros aspectos do contrato para adequá-lo às necessidades e mudanças conse­quentes da passagem do tempo” (RIBEIRO, 2011, p. 105).

[8] “Embora a legislação não detalhe o assunto de modo tão evidente, o equilíbrio econô­mico-financeiro vale igualmente em benefício do Estado e, por conseguinte, da coletivida­de de usuários do serviço público delegado. É possível conceber uma série de situações em que a equivalência inicial se quebra em desfavor do polo público” (MARRARA; SOUZA, 2016, p. 310).

[9] No entanto, ainda aqui, como já mencionado anteriormente, é possível surgir a discus­são acerca do enquadramento ou não de determinado risco como “inerente” à concessão.

 

[10] Por força do art. 21, XII, alínea “b” da Constituição Federal, os serviços de distribuição de energia elétrica são de competência da União, razão pela qual não podem constituir objeto de concessão municipal (BRASIL, [2016]).

[11] O exemplo foi retirado da minuta de contrato do projeto de PPP de iluminação pú­blica levado à consulta pública pelo município de Teresina (PI) em dezembro de 2018 (TERESINA, 2018).

[12] Tradução livre do original: “Having defined these terms, we can state the following principle of risk allocation: Each risk should be allocated, along with rights to make related decisions, so as to maximize total project value, taking account of each party’s ability to (1). Influence the corresponding risk factor. (2). Influence the sensitivity of total project value to the corresponding risk factor – for example, by anticipating or responding to the risk factor. (3). Absorb the risk”.

[13] A propósito, Yescombe (2002, p. 138) afirma categoricamente que “it is no use allocating risk to a party who cannot sustain the financial consequences if the risk materializes”.

[14] Brasil (1995, art. 9º, §3º, aplicado supletivamente às PPPs).

[15] Brasil (1995, art. 25, aplicado subsidiariamente às PPPs).

[16] Moreira (2016, p. 79) registra uma aproximação recente entre o Direito Administrati­vo e as ciências econômica e financeira: “(...) o Direito Administrativo não se preocupava com quaisquer raciocínios econômicos quando de sua aplicação. A economia e as finanças eram assuntos para economistas, financistas e contadores – mantidos do lado de fora do positivismo jurídico. Felizmente, hoje se sabe que tais questões precisam ser motivo de preocupações jurídicas”.

[17] Entenda-se impropriedades como discrepâncias aos standards teóricos apresentados na subseção “Diretrizes teóricas para alocação de riscos”.

[18] Neste relatório, já se podem antever algumas das críticas que levaram à crise recente de credibilidade do programa. Por sua relevância, transcreve-se a seguir a conclusão do comitê sobre a análise da alocação de riscos nos contratos: “Allocating risk to the private sector is only worthwhile if it is better able to manage the risk and can pass on any subsequent savings to the client. The main benefit highlighted to us by PFI providers was the transfer of construction risk. However a PFI contract which lasts for 30 years is not necessary to transfer this risk. There are also other methods such as turnkey contracts which can be used for the same ends. We have seen evidence that PFI has not provided good value from risk transfer – in some cases inappropriate risks have been given to the private sector to manage. This has resulted in higher prices and has been inefficient. Some of the claimed risk transfer may also be illusory – the government is ultimately accountable for the delivery of public services. Therefore it would not be able to allow a number of services provided under a PFI contract to cease for any length of time”.

[19] Cite-se, como exemplo, a decisão do Conselheiro Relator do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul que suspendeu a licitação de PPP de iluminação pública do município de Venâncio Aires, seguindo recomendação da área técnica do Tribunal, “até que o Executivo Municipal demonstre novo cálculo de viabilidade, (...), além de com­provar o inciso I, alínea ‘a’, do artigo 10 da Lei Federal nº 11.079/2004, no que se refere à conveniência e oportunidade da contratação, mediante identificação das razões que justi­fiquem a opção pela forma de parceria público-privada e a demonstração da vantagem do projeto para a administração pública com a apresentação do Value for Money (VfM)...”. (RIO GRANDE DO SUL, 2018).

[20] Embora não seja essa a postura usual dos órgãos de controle em relação à fundamen­tação das cláusulas de alocação de riscos, como será visto adiante.

[21] Utilizou-se a expressão compartilhamento de risco específico para se referir ao trata­mento de divisão proporcional da gestão de determinado risco. Focalizando-se o conjunto dos riscos contratuais, o compartilhamento estará sempre presente.

[22] Arrisca-se dizer que há uma percepção de certos gestores, obviamente sem qualquer fundamento jurídico, de que números precisam ser justificados no processo administrati­vo com maior rigor que outras decisões não quantitativas.

[23] Como este artigo foca exclusivamente em PPPs e sua utilização pelo Governo Federal é quase nula, volta-se a presente análise essencialmente para a atuação dos órgãos de entes subnacionais.

[24] Os tribunais de contas são os órgãos de controle que assumem maior relevância em projetos de PPP.

[25] Ressalva-se, novamente, que as conclusões dos autores deste artigo não se amparam em estudos estatísticos rigorosos do universo de decisões de tribunais de contas e que, portanto, todas as conclusões e considerações esposadas devem ser lidas nesse contexto.

[26] Yescombe (2002, p. 127) registra que este não é um “mal” exclusivo dos processos de modelagens de PPPs, mas que aflige a estruturação de contratos de project finance em geral: “Insurance requirements in project finance are demanding, and as a result insurance costs are high, but this tends to be a neglected area of project development. This can lead to an underestimation of project costs because all required insurances have not been taken into account or to the financing being held up because the insurances required by the lenders are not in place” (grifos nossos).

[27] Segundo Ribeiro (2011, p. 126), afigura-se indispensável “a consulta a especialista no mercado securitário para definição do teor das exigências relativas a seguros”.

[28] Os conhecimentos necessários à estruturação de um projeto de PPP são diversos e específicos. Epec (2014, p. 7) assinala, a propósito: “The expertise commonly needed spreads over various fields such as technical, finance, legal, market/demand, tax, accounting and insurance. The “theoretical” knowledge required also needs to be complemented with practical deal-making experience in areas such as project management or contract negotiation”.

[29] Sendo o risco inversamente proporcional ao retorno, à atribuição de maior risco deve ser aumentado o retorno exigido pelo investidor.

[30] Em geral, despesas com seguros, conforme mencionado anteriormente.

[31] Cite-se um exemplo banal em que é atribuído ao parceiro privado o risco de defeitos em determinados equipamentos. Uma forma de tratar esse risco na projeção seria consi­derar que ele irá adquirir produtos de melhor qualidade ou com garantia mais extensa (e, portanto, mais caros) do que faria caso não suportasse esse risco.

[32] VfM pode significar tanto a metodologia de análise do valor gerado pelo projeto por meio da aplicação de critérios quantitativos e qualitativos quanto o resultado dessa análi­se. No decorrer do texto, utiliza-se o termo nos dois sentidos.

[33] Ver discussão relatada na nota 6.

[34] Essa maximização ampliaria a diferença entre o modelo de PPP e outras formas de contratação.

[35] A percepção que se imputou aos gestores públicos neste parágrafo parece ser, triste­mente, realista: é mais fácil ser questionado sobre os elementos específicos de determinada análise do que pela pura e simples ausência de análise.

[36] Abordando outro aspecto positivo da padronização setorial dos contratos de conces­são comum e PPP, Maurício Portugal Ribeiro ressalta que a familiaridade dos potenciais parceiros privados com as regras constantes desses padrões “facilita a compreensão e dis­cussão do projeto” (RIBEIRO, 2011, p. 79-80).

[37] É preciso deixar claro que não se está defendendo a absoluta independência entre ma­triz de riscos e obrigações contratuais. Ao contrário: a matriz de riscos deve ser construída com base no conjunto de direitos e obrigações das partes e com este deve harmonizar-se, mas merece um tratamento próprio e distinto, unificada em uma cláusula que reúna todos – e apenas – os riscos.

[38] Vêm imediatamente à mente os exemplos das PPPs do Centro Administrativo de Brasília, da Linha 6-Laranja do Metrô de São Paulo e do Maracanã, mas, infelizmente, poderiam ser dados muitos outros exemplos.

[39] Não se ignora a existência de iniciativas estatais municipais (foi até citado um guia do município do Rio de Janeiro na segunda seção), estaduais, nacionais, supranacionais (o Banco Mundial oferece modelos de cláusulas de alocação de riscos para diferentes setores) e de demais organizações da sociedade. Entende-se, apenas, que tais iniciativas, quer no que toca à padronização de cláusulas, quer no que diz respeito a metodologias de avaliação de riscos, ainda não se tornaram uma referência “obrigatória” para os profissionais envol­vidos na estruturação de projetos: tal lugar ainda está vago.

[40] Nóbrega (2010) adverte acertadamente acerca do tamanho do desafio inerente à iden­tificação (detecção) de riscos: “Se não bastasse a dificuldade para classificar os riscos, há grandes obstáculos para a sua detecção. Em primeiro lugar, existem dificuldades cognitivas que advêm da dificuldade do tomador de decisão de discernir sobre o valor e a correspon­dente probabilidade de cada estado de natureza sobre cada possível ação. Há problemas no julgamento das probabilidades e existe uma tendência a superestimar a extensão na qual o presente foi previsível no passado (highsight bias)”.

[41] Calculado, por exemplo, como um autosseguro.


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