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AS DECISÕES ADITIVAS EM SEDE DE CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE E UM CASO DE SUA APLICAÇÃO COM RELAÇÃO A LEI INTERPRETATIVA

AS DECISÕES ADITIVAS EM SEDE DE CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE E UM CASO DE SUA APLICAÇÃO COM RELAÇÃO A LEI INTERPRETATIVA

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O ARTIGO DISCUTE SOBRE RECENTE DECISÃO DO STF COM RELAÇÃO A MP 966.

AS DECISÕES ADITIVAS EM SEDE DE CONTROLE  DA CONSTITUCIONALIDADE E UM CASO DE SUA APLICAÇÃO COM  RELAÇÃO A LEI INTERPRETATIVA

 

Rogério Tadeu Romano

 I – AS DECISÕES ADITIVAS EM SEDE DE CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE

A doutrina entende que nas decisões aditivas(também ditas modificativas ou manipuláveis) a inconstitucionalidade detectada não reside tanto naquilo que a norma preceitua quanto naquilo que ela não preceitua; ou, por outras palavras, a inconstitucionalidade acha-se na norma na medida em que não contém tudo aquilo que deveria conter para responder aos imperativos da Constituição. E, então, o órgão de fiscalização acrescenta (e, acrescentando, modifica) esse elemento que falta.

Uma lei ao atribuir um direito ou uma vantagem(como exemplo, uma pensão) ou ao adstringir a um dever ou ônus(por exemplo, uma incompatibilidade), contempla certa categoria de pessoas e não prevê todas as que se encontram na mesma situação, ou acolhe diferenciações infundadas. Como irá se resolver? Eliminar os preceitos que, qualitativa ou quantitativamente violem o princípio da igualdade? Ou, ainda, pelo contrário, invocando os valores e interesses constitucionais que se projetam nessas situações, restabelecer a igualdade? Decisões aditivas são, em especial, as que adotam o segundo termo da alternativa.

Nas decisões aditivas há um segmento ou uma norma que se acrescenta com idêntico fim.

Canotilho(Direito constitucional e teoria da Constituição, 4ª edição, pág. 990) advertiu que através de sentenças desse tipo o tribunal: a) alarga o âmbito normativo de um preceito, declarando inconstitucional a disposição na parte em que não prevê certas situações que deveria prever(sentenças aditivas); b) declara a inconstitucionalidade de uma norma na parte ou nos limites em que contém uma prescrição em vez de outra(sentença substitutiva).

Anotou a propósito Canotilho:

“Não obstante as categorias das sentenças aditivas e substitutivas serem originárias da doutrina e jurisprudência italianas, sugestivamente, utilizam o conceito geral de sentenças manipulativas para designar as técnicas de decisão transformadoras do significado da lei”.

Os italianos falavam em “sentenze additive. Em Portugal houve decisões do Tribunal Constitucional que produziram efeitos normativos semelhantes aos das sentenças manipulativas italianas.

Observe-se o Acórdão do Ac. 143/85(caso de exercício da advocacia por docentes), na medida em que alargou a exceção à incompatibilidade com o exercício da advocacia a todos os docentes(e não apenas, como prescrevia o Estatuto da Ordem dos Advogados aos docentes de disciplinas de direito. No Ac. 203/86, houve o caso dos beneficiários de pensões, pois ao julgar-se inconstitucional a norma que mandava aplicar a disposição menos favorável aos beneficiários das pensões fixadas antes da de uma certa data, acabou por estender o âmbito da aplicação do regime mais favorável, como se lê de Nunes de Almeida e ainda de Rui Medeiros(A decisão de inconstitucionalidade páginas 456 e seguintes).

Das decisões aditivas distinguem-se as decisões integrativas, através das quais se interpreta certa lei(com preceitos insuficientes e, nessa medida, eventualmente inconstitucionais) complementando-a com preceitos da Constituição sobre esse objeto que lhe são aplicáveis e porque diretamente aplicáveis. Em Portugal, tem-se por exemplo os acórdãos n. 329/99 e 517/99 do Tribunal Constitucional de 2 de junho e de 22 de setembro(sobre licenças de loteamentos, de obras de urbanização e de construção).

Como ensinou Jorge Miranda(Teoria do Estado e da Constituição, 2003, pág. 514), a diferença está em que nas decisões aditivas o órgão de fiscalização formula, implícita ou indiretamente, uma regra, ao passo que nas decisões integrativas ele vai apoiar-se diretamente numa regra constitucional.

O Tribunal Constitucional de Portugal enfrentou decisões aditivas nos seguintes casos, como exemplo: Acórdão nº 143/85, de 30 de julho(sobre atividades docentes e advocacia), Acórdão 191/88 de 20 de outubro(sobre pensões por morte em caso de acidentes do trabalho), dentre outras.

Escreveu Rui Medeiros(citado por Jorge Miranda, obra mencionada, às folhas 515) que tais decisões brigariam, com o princípio democrático e com o da separação de poderes. Ainda que se admitisse que a proibição do retrocesso pudesse impedir a decisão de inconstitucionalidade de uma lei que concretizasse em termos discriminatórias uma norma constitucional, daí não se retiraria uma legitimidade geral dessas decisões, pois não se vislumbraria como uma lei inconstitucional poderia condicionar a atuação futura do legislador legitimado democraticamente. Substituindo a vontade do legislador por outra, elas só em casos excepcionais seriam de aceitar e deveriam ser limitadas na medida do possível, como entendeu Gomes Canotilho(Jurisdição constitucional e intranquilidade discursiva, in Perspectivas constitucionais, obra coletiva, Coimbra, 1996, páginas 882 e seguintes).

Nessa orientação, a modificação da lei proposta pelo Tribunal Constitucional não seria vinculativa para o tribunal a quo na fiscalização concreta e na fiscalização abstrata não beneficiaria da força obrigatória geral da declaração de inconstitucionalidade.

Todavia, Jorge Miranda(obra citada, pág. 515) não segue tal posição. Disse ele: “Embora reconhecendo a necessidade de divisas estreitas e de se não menosprezarem os condicionalismos financeiros, à luz do postulado da “reserva econômica do possível”, não vemos como recusar esse tipo de decisões perante discriminações ou diferenciações infundadas, frente as quais a extensão do regime mais favorável se favorece, simultaneamente, como a decisão mais imediata para a sensibilidade coletiva e a mais próxima dos valores constitucionais. Há imperativos materiais que se sobrepõem a considerações orgânico-funcionais.”

Como disse Jorge Miranda, o órgão de fiscalização não se comporta como legislador, no caso, pois que não age por iniciativa própria, nem segundo critérios políticos; age em processo instaurado por outrem e vinculado aos critérios de interpretação e construção jurídica inerentes à hermenêutica constitucional.

Dito isso observo recente pronunciamento do ministro Roberto Barroso quanto de interpretação que deu com relação a edição da Medida Provisória 960/2020.

A MP do governo estabelece que as autoridades só poderão ser responsabilizadas se ficar comprovado o dolo (ação intencional) ou “erro grosseiro”. No entanto, estipula que o chamado “erro grosseiro" só estará configurado a partir de cinco variáveis, o que, na prática, torna muito restritivo o enquadramento de autoridade por essa conduta.

Por nove votos a um, o Supremo Tribunal Federal (STF) restringiu o alcance da medida provisória (MP) do presidente Jair Bolsonaro que livra qualquer agente público de processos civis ou administrativos motivados por ações tomadas no enfrentamento à pandemia do novo coronavírus. Segundo os ministros da Corte, medidas que possam levar à violação aos direitos à vida e à saúde ou sem o embasamento técnico e científico adequado poderão ser punidas. No julgamento, houve críticas a ações que ignorem a ciência e, mesmo sem citar nomes, à gestão do governo na área da saúde.

Em seu voto, o ministro Barroso estabeleceu que erro grosseiro é ato administrativo que “ensejar violação ao direito à vida, à saúde ou ao meio ambiente equilibrado por inobservância: i) de normas e critérios científicos e técnicos; ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção”.

O ministro Barroso também propôs que “a autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente as normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria tais como estabelecidos por o e entidades médicas e sanitárias nacional e internacionalmente e sanitárias reconhecidas, e da observação dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos”.

O ministro Luís Roberto Barroso, propôs que, na interpretação da MP, seja considerado como erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação do direito à vida, à saúde ou ao meio ambiente equilibrado em razão da inobservância de normas e critérios científicos e técnicos.

Trata-se, portanto, de um exemplo de decisão aditiva que vem a ser proposta.

A MP deveria inserir em seu texto, na interpretação do voto do ministro, alguns critérios que  nela não estariam explicitamente acentuados.

Mas outros princípios ali deveriam ser citados: o da isonomia, da razoabilidade, o da proporcionalidade.

II – A MEDIDA PROVISÓRIA 966 NÃO FUNCIONA COMO MEDIDA INTERPRETATIVA

Deveria se esgotar naquele pronunciamento o fato da MP 966/2020 o fato de que se tentou instituir norma interpretativa ao contexto da Lei nª Lei nº 13.655 de 2018 que  trouxe profundas divergências entre os estudiosos do direito.

Afora ser uma lei, com dispositivos na Lei de Introdução às Normas Jurídicas, que poderia ser objeto de uma norma à parte, sendo considerada com dispositivos heterogêneos àquela norma, ela trouxe discussão com relação a interpretação de conceitos ali instalados.

É o que se observa dos artigos 20 a 24 que foram introduzidos na Lei de Introdução.

Os artigos 20 a 24 instauraram um novo corolário do princípio do devido processo legal, qual seja, o princípio do devido processo decisório. Apesar de o legislador almejar a segurança jurídica, percebeu-se que ele foi além, uma vez que traduziu nuances de certeza jurídica. Paulo Nader (Introdução ao estudo do direito) trata da questão estabelecendo a diferença entre a segurança jurídica e a certeza jurídica, a saber:

“Os conceitos de segurança jurídica e de certeza jurídica não se confundem. Enquanto o primeiro é de caráter objetivo e se manifesta concretamente através de um Direito definido que reúne algumas qualidades, a certeza jurídica expressa o estado de conhecimento da ordem jurídica pelas pessoas. Pode-se dizer, de outro lado, que a segurança possui um duplo aspecto: objetivo e subjetivo. O primeiro corresponde às qualidades necessárias à ordem jurídica e já definidas, enquanto o subjetivo consiste na ausência de dúvida ou de temor no espírito dos indivíduos quanto à proteção jurídica”.

O que é uma lei interpretativa?

Interpretativas são as normas paracoercitivas que dão a o verdadeiro sentido e alcance da normas legais ou contratuais preexistentes. Como observou Del Vecchio(Lezioni di filosofia del diritto, pág. 224) quando disse que visam ao “aclaramento de uma vontade que as partes tinham expresso do modo incompleto e obscuro – em matéria contratual – mas, ainda, em assunto legislativo, o verdadeiro sentido e alcance das leis preexistentes. Por exemplo, a Lei nº 105, de 12 de maio de 1940, que veio interpretar alguns artigos do Ato Adicional à Constituição do Império(Lei de 12 de agosto de 1834) e a Lei nº 211, de 7 de janeiro de 1948, que deu o verdadeiro sentido e alcance do parágrafo 13 do artigo 141 da Constituição Federal de 1946, declarando extinto o mandato de membros do Legislativo eleitos por partido com registro cassado.

Sabe-se que foi editada a MP 966/2020, que se apresentou como norma para dar interpretação com relação ao conceito de erro grosseiro.

É essencial o debate em relação às extrapolações trazidas pela MP referenciada e  Lei nº 13.655/18.

Afora ser uma lei, com dispositivos na Lei de Introdução às Normas Jurídicas, que poderia ser objeto de uma norma à parte, sendo considerada com dispositivos heterogêneos àquela norma, ela trouxe discussão com relação a interpretação de conceitos ali instalados.

Estamos diante de normas declarativas que são as normas paracoercitivas que enunciam um princípio ou estabelecem um programa. As primeiras denominam-se enunciativas, e as segundas programáticas. Hermes Lima(Introdução à ciência do direito, pág. 87) inclui-as entre as “normas elásticas”, que se constituem de conceitos ou princípios.

Estamos diante de uma norma declarativa de espécie enunciativas.

É o que se observa dos artigos 20 a 24 que foram introduzidos na Lei de Introdução.

Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados. (Regulamento)

§ 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente. (Incluído pela Art. 2º Para fins do disposto nesta Medida Provisória, considera-se erro grosseiro o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.

Estaríamos diante de uma norma que visa a interpretar artigos específicos citados na Lei de Introdução das normas jurídicas?

Não. Ela é inconstitucional, por afronta direta aos princípios da igualdade, razoabilidade, proporcionalidade. Ela foge de parâmetros científicos, da lógica da ciência, que deveriam ser aplicados. O voto do ministro relator para o caso já traz sinais disso.

Uma norma que se diga interpretativa deve empregar um método lógico ainda denominado de racional.

Ela baseia-se na ratio legis.

Ela foge a método sistemático de interpretação.

O método sistemático considera o caráter estrutural do direito, pelo que não interpreta isoladamente as normas, porém, ao contrário, aproxima-as, partes que são de um só todo. 

Explica ainda a doutrina de Eros Grau(Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 78) que a interpretação é:

“É um processo intelectivo através do qual, partindo de fórmulas lingüísticas contidas nos textos, enunciados, preceitos, disposições, alcançamos a determinação de um conteúdo normativo. (…) Interpretar é atribuir um significado a um ou vários símbolos lingüísticos escritos em um enunciado normativo. O produto do ato de interpretar, portanto, é o significado atribuído ao enunciado ou texto (preceito, disposição)” (…) “As disposições são dotadas de um significado, a elas atribuído pelos que operaram no interior do procedimento normativo, significado que a elas desejaram imprimir. Sucede que as disposições devem exprimir um significado para aqueles aos quais são endereçadas. Daí a necessidade de bem distinguirmos os significados imprimidos às disposições (enunciados, textos), por quem as elabora e os significados expressados pelas normas (significados que apenas são revelados através e mediante a interpretação, na medida em que as disposições são transformadas em normas). (grifos nossos). “

Adiante, acrescenta que:

A interpretação, destarte, é meio de expressão dos conteúdos normativos das disposições, meio através do qual pesquisamos as normas contidas nas disposições. Do que diremos ser – a interpretação – uma atividade que se presta a transformar disposições (textos, enunciados) em normas. Observa Celso Antônio Bandeira de Mello (…) que ‘(…) é a interpretação que especifica o conteúdo da norma. Já houve quem dissesse, em frase admirável, que o que se aplica não é a norma, mas a interpretação que dela se faz. Talvez se pudesse dizer: o que se aplica, sim, é a própria norma, porque o conteúdo dela é pura e simplesmente o que resulta da interpretação. De resto, Kelsen já ensinara que a norma é uma moldura. Deveras, quem outorga, afinal, o conteúdo específico é o intérprete, (…)’. As normas, portanto, resultam da interpretação. E o ordenamento, no seu valor histórico-concreto, é um conjunto de interpretações, isto é, conjunto de normas. O conjunto das disposições (textos, enunciados) é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, um conjunto de normas potenciais. O significado (isto é, a norma) é o resultado da tarefa interpretativa. Vale dizer: o significado da norma é produzido pelo intérprete. (…) As disposições, os enunciados, os textos, nada dizem; somente passam a dizer algo quando efetivamente convertidos em normas (isto é, quando – através e mediante a interpretação – são transformados em normas). Por isso as normas resultam da interpretação, e podemos dizer que elas, enquanto disposições, nada dizem – elas dizem o que os intérpretes dizem que elas dizem (…)”

A doutrina de Miguel Reale(Lições preliminares de direito27. ed. 2. tir. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 96-99) também classifica as normas interpretativas como sendo interpretação autêntica, dispondo que:

“(…) As normas interpretativas representam uma categoria de grande alcance, especialmente quando se entra em uma época de fluxo incessante de legislação, Há certos textos legais que provocam tamanha confusão no mundo jurídico que o próprio legislador sente a necessidade de determinar melhor o seu conteúdo.

Quando tal fato se verifica, dizemos que há interpretação autêntica. Interpretação autêntica é somente aquela que se opera através de outra lei. A lei não fica, entretanto, presa à personalidade do legislador que participou, com seu voto ou com a sua inteligência, na sua elaboração.”

Norma interpretativa, portanto, é norma que não irá alterar qualquer conteúdo ou elemento da norma interpretada, mas, apenas, traduzir o seu significado. Norma que altera o sentido, conteúdo ou o alcance da norma interpretada não mais estará interpretando, mas modificando a regra, criando nova norma, instituindo novos direitos, deveres e obrigações. Esta, portanto, será introduzida no ordenamento jurídico em obediência a todos os princípios que regem a matéria e, como veremos adiante, respeitados o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. E, mesmo quando considerada norma meramente interpretativa, esta também deverá respeitar os direitos adquiridos sob a vigência da norma interpretada. Neste sentido, explica novamente Carlos Maximiliano:

(…) Opera-se a exegese autêntica, em regra, por meio de disposição geral, e, ainda que defeituosa, injusta, em desacordo com o verdadeiro espírito do texto primitivo, prevalece enquanto não a revoga o Poder Legislativo; é obrigatória, deve ser observada por autoridades e particulares (1). Entretanto, só se aplica aos casos futuros, não vigora desde a data do ato interpretado, respeita os direitos adquiridos  em consequência da maneira de entender um dispositivo por parte do Judiciário, ou do Executivo. Nos países onde o princípio fulminador da retroatividade das leis se acha inserto na Constituição, ele adquire excepcional amplitude, expunge as restrições comuns entre os povos que adotam a mesma regra como doutrina para ser observada pelos tribunais, ou preceito positivo, porém ordinário, sem força para vincular o parlamento. No Brasil e nos Estados Unidos nem as próprias Câmaras se isentam do dever imperioso de não entender texto algum em sentido retroativo.

III – DEMAIS VOTOS

Já votaram os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Rosa Weber e Cármen Lúcia, totalizando seis de um total de 11 ministros. Todos eles concordaram com a restrição proposta por Barroso. O ministro Moraes sugeriu uma restrição maior ainda, mas, até agora, apenas Cármen endossou sua proposta.

O ministro Moraes quis retirar um trecho da MP que isentava de punição medidas de "combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da covid-19". Segundo ele, mantido esse texto, ações tomadas daqui a alguns anos poderão ser justificadas como relacionadas à pandemia e, com isso, ficarão livres de responsabilização.

— Isso pode justificar medidas relacionadas a planos econômicos, segurança pública, estaríamos aqui a permitir uma cláusula tão aberta, que se perpetuaria ao longo dos anos, que, a meu ver, inverteria a ordem, a lógica. Regra é a responsabilização, que nós transformaríamos em exceção. A partir dos próximos anos, todas as medidas terão alguma ligação, algum nexo com os efeitos gerados pela pandemia — disse  o ministro Moraes.

Correta a posição traçada pelo ministro Alexandre Moraes. Mister que se retire um trecho da MP que isentava de punição medidas de "combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da covid-19.

O ministro Barroso argumentou:

— O que me preocupou, é por exemplo, o ministro da Economia [Paulo Guedes] cogitou de emitir papel moeda para acudir a emergência. Eu, que não sou economista, e isso não é da minha alçada, me arrepio com a ideia de emitir papel, porque associo isso com a escalada da inflação. Porém, há algumas decisões, puramente técnicas, em que você vai ter opiniões legítimas de um lado e de outro. Nestes casos, eu acho que você precisa de um erro grosseiro.

Em seu voto, Barroso também propôs: "a autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente as normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria tais como estabelecidos por o e entidades médicas e sanitárias nacional e internacionalmente e sanitárias reconhecidas, e da observação dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos."

O julgamento  de pedidos de medida cautelar  se dá no âmbito de sete Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs 6421, 6422, 6424, 6425, 6427, 6248 e 6431), ajuizadas contra a Medida Provisória (MP) 966/2020, que restringe a possibilidade de responsabilização dos agentes públicos durante a pandemia da Covid-19 aos casos de dolo ou erro grosseiro.

Realmente, o fato de se estar diante de uma emergência diante de uma grave  pandemia no Brasil, não justifica que regras e princípios norteadores da moralidade administrativa, impessoalidade, eficiência, seja esquecidos e vilipendiados.

O ministro Gilmar Mendes, por exemplo, fez uma referência à fala de Bolsonaro de que "quem for de direita toma cloroquina, quem for de esquerda toma tubaína". O presidente vem sendo acusado de ignorar cientistas e técnicos ao minimizar a pandemia e defender medidas como a prescrição dos remédios cloroquina e hidroxicloroquina em pacientes com sintomas leves da Covid-19. Na última quarta-feira, por exemplo, por pressão de Bolsonaro, saiu o novo protocolo do Ministério da Saúde que ampliou a recomendação do uso dos medicamentos.

Ficaram vencidos em parte os ministros Alexandre de Moraes e Cármen Lúcia, que acompanharam o relator em relação à tese, mas concediam o pedido em maior extensão para suspender parcialmente a eficácia do artigo 1º e afastar do alcance da norma os atos de improbidade administrativa e os objetos de fiscalização dos tribunais de contas. Os dois também votaram pela concessão da cautelar para suspender integralmente a eficácia do inciso II do artigo 1º, que trata das medidas de combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia. Para os ministros, o dispositivo estabelece “uma verdadeira excludente de ilicitude civil e administrativa”.

Também ficou vencido o ministro Marco Aurélio, que votou pela suspensão da eficácia da MP. A seu ver, a norma, ao prever a responsabilização do agente público apenas em relação atos cometidos com dolo ou erro grosseiro, traz restrição não prevista na Constituição Federal.

 


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