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A Constituição brasileira proíbe a eutanásia?

A Constituição brasileira proíbe a eutanásia?

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1.Introdução

Quinta-feira, 31 de março de 2005. A vida da norte-americana Terri Schiavo chegou ao fim após duas semanas sem receber a sua alimentação devido à retirada da sonda que lhe fornecia nutrientes, retirada essa autorizada pelo Judiciário daquele país [01]. O assunto dividiu a opinião pública.

Em 15 de janeiro de 1998 o ex-marinheiro espanhol Ramón Sampedro foi encontrado morto na sua cama. Era tetraplégico desde os 26 anos, quando se acidentou durante um mergulho. Tentou durante cinco anos tentou obter autorização da Justiça espanhola para que seus amigos o auxiliassem a morrer. Foi-lhe negada, porque a Justiça entendeu que se tratava de homicídio o que ex-marinheiro pedia. Ramón se envenenou com uma dose letal de cianeto preparada pelos amigos. [02]

Esses dois famosos casos são suficientes para demonstrar a importância do tema. Existe um "direito a morte"? A vida é um bem absoluto e indisponível? O Estado deve autorizar que pacientes em situação médica desalentadora possam decidir pôr termo a própria existência quando assim desejarem? Ou deve proibir sempre e utilizar o aparato institucional para punir os que ajudarem?

Nesse breve ensaio, tentarei fornecer uma justificativa plausível para legitimidade da eutanásia no Brasil à luz da Constituição de 88, defendendo, então, uma interpretação que não é vista com bons olhos por boa parte da doutrina jurídica, como, por exemplo, José Afonso da Silva:

"É, assim mesmo, uma forma não espontânea de interrupção do processo vital, pelo que está implicitamente vedada pelo direito à vida consagrado pela Constituição, que não significa o indivíduo possa dispor da vida, mesmo em situação dramática. Por isso, nem mesmo o consentimento lúcido do doente exclui o sentido delituoso da eutanásia no nosso Direito." [03]

No mesmo sentido, Alexandre de Moraes:

"O ordenamento jurídico-constitucional não autoriza, portanto, nenhuma das espécies de eutanásia, quais sejam, a ativa ou passiva (ortonásia).Enquanto a primeira configura o direito subjetivo de exigir de terceiros, inclusive do próprio Estado, a provocação de morte, para atenuar sofrimentos (morte doce ou homicídio por piedade), a segunda é o direito de opor-se ao prolongamento artificial da própria vida, por meio de artifícios médicos, seja em caso de doenças incuráveis e terríveis, seja em caso de acidentes gravíssimos (o chamado direito à morte digna)." [04]

O esforço será feito para convencer de que a Lei Suprema de nosso país permite a eutanásia e, por conseqüência, o Estado não pode punir esse tipo de prática. Num primeiro momento, será feita uma interpretação dos incisos IV, VI e VIII do art. 5º da Constituição para reconhecermos um importante direito entre os direitos de primeira geração. Num segundo momento, será feita uma conexão entre esse direito, a teoria dos direitos fundamentais contemporânea, as hipóteses permissivas de supressão da vida no Direito Penal, a eutanásia e as situações em que ela é plenamente exigível, acarretando, assim, o reconhecimento das únicas formas de eutanásia do nosso direito. Num terceiro momento, veremos como podem ser removidos obstáculos na teoria do crime para a concessão desse direito, tendo como base a teoria constitucional. E, finalmente, num quarto momento, analisaremos argumentos que são freqüentemente utilizados contra a eutanásia.


2. O que diz a Constituição?

2.1 O princípio da autodeterminação moral do indivíduo

No art. 5º da Constituição temos:

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

.......................

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

........................

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

O primeiro inciso garante a chamada liberdade de pensamento. Os outros dois, a liberdade de consciência e crença religiosa. Juntos, eles são manifestações do princípio da autodeterminação moral do indivíduo ou princípio da independência moral. Em linhas gerais, toda pessoa tem o direito de pensar o que quiser e como quiser, bem como exercer esse ou aquele credo, ter essa ou aquela convicção política ou filosófica, assim como pautar a sua conduta com base nos princípios que escolheu para si, sem ter medo de punição por parte do Estado por assim pensar ou por assim agir. Creio que é extremamente clara a formulação feita por Ronald Dworkin:

"As pessoas têm o direito de não sofrer desvantagem na distribuição de bens e oportunidades sociais, inclusive desvantagem nas liberdades que lhes são concedidas pelo Direito criminal, apenas porque suas autoridades ou concidadãos acham que as suas opiniões a respeito da maneira certa de levarem suas próprias vidas são ignóbeis ou erradas." [05]

Também tal importante direito vem expresso da na Declaração Universal de Direitos Humanos:

Artigo 18. Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.

Artigo 19. Todo o homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras.

O texto da Declaração Universal de Direitos Humanos, ao contrário do texto constitucional pátrio, menciona a prática da crença ou consciência. É sobre essa última dimensão do princípio, a prática de consciência e crença religiosa, que um exame mais detido merece ser feito.

Edílson Farias expõe de maneira bem sintética, mas clara, o significado daqueles dois últimos incisos constitucionais transcritos:

"Sob este aspecto, em torno das dimensões internas e externas da liberdade de consciência e de crença, gravitam a liberdade de crer ou de não crer (liberdade de religião e a liberdade ideológica), a liberdade de manifestação pública das crenças ou convicções pessoais (a liberdade de culto) e o direito de se comportar de acordo com as suas crenças religiosas e convicções pessoais (direito de objeção de consciência)." [06]

Essa última parte é importante. É uma pena que ele não tenha abordado esse último desdobramento do princípio, posto que há implicações extremamente importantes para a nossa ordem constitucional e para o problema que está em questão neste texto, como a seguir veremos.

Assim, a autodeterminação moral só pode ser realmente usufruída pelos destinatários do direito se lhes for permitido agir de acordo com suas idéias. Daí a importância que foi dada acima a essa faceta do direito. Sem essa dimensão, a liberdade de consciência e crença religiosa restará completamente inútil. Para que serviria a crença de uma pessoa em uma determinada religião se o Estado ou a sociedade proibisse que ela a exercesse? Qual sentido teria permitir a livre escolha de posições filosóficas se não fosse permitido exercê-las? É nítido como o princípio tem ligação com o princípio da dignidade humana (inciso III, art. 1º da CF/88). Seria tratar desumanamente as pessoas se fosse permitido a elas fazer seus julgamentos morais a respeito de determinadas questões, mas não permitir que elas agissem nesses problemas de acordo com as decisões morais que tomaram.

Precisamos ter cuidado nesse ponto. O princípio tal qual está sendo abordado está sendo tomado de forma extremamente abstrata e genérica, o que não significa que seja absoluto, isto é, que o indivíduo possa agir de acordo com toda e qualquer espécie de idéia a todo e qualquer instante. Na verdade, ele assegura um espaço de livre autodeterminação das pessoas. Assim, um católico pode perfeitamente achar equivocada uma crença evangélica ou ateísta, mas daí não segue que ele pode forçar quem assim pensa e age a seguir seu padrão católico de conduta. Pode haver o livre espaço para discussões em torno das divergências das duas crenças, é claro, mas não para o uso da força em decorrência dessas divergências. Do mesmo modo devem agir os políticos no Congresso Nacional e os torcedores de futebol no bar da esquina.

Daqui surge uma outra importante conseqüência do princípio que é o princípio da tolerância: minha autodeterminação encontra limite na autodeterminação dos outros. Cada um pode seguir suas condutas de acordo com o que lhe achar conveniente ou moralmente correto, desde que essas condutas não tenham efeitos maléficos sobre os outros. Posso discordar de qualquer credo religioso, qualquer opção sexual ou crença filosófica de alguém, mas tenho que assegurar o respeito a essa diferença quando vou me relacionar com quem é diferente. Segue-se que temos que ter muito cuidado com os efeitos de nossas atitudes. A autodeterminação também implica uma dose séria de responsabilidade. Seria absurdo garantir a autodeterminação de uma pessoa, com base na sua dignidade, e permitir que ela depois a use para prejudicar outras pessoas. Desse importante direito, decorre, ao mesmo tempo que o reconhecemos, um dos mais importantes deveres para a vida em sociedade. Não é a toa que podemos reconhecer nele os fundamentos para a responsabilidade civil e para a responsabilidade penal no nosso Direito.

Talvez tenha sido nessa ordem de ponderações que John Stuart Mill, no seu famoso livro On liberty, tenha elaborado seu princípio que serviu como cerne para o liberalismo e, nitidamente, teve influência sobre a formação dos direitos de primeira geração:

"Esse princípio é o de que o único fim para o qual a humanidade está justificada, individualmente ou coletivamente, em interferir na liberdade de ação de qualquer de um de seu gênero é a auto-proteção. Esse único propósito pelo qual o poder pode ser corretamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é o de prevenir dano aos outros. Seu próprio bem, seja físico ou moral, não é uma justificativa suficiente. Ele não pode ser corretamente compelido a fazer ou se abster porque será melhor para ele agir assim, porque fará ele mais feliz, porque, na opinião dos outros, fazer isso seria sábio ou até mesmo correto. Estas são boas razões para reclamar com ele, ou argumentar com ele, ou persuadi-lo, ou implorar para ele, mas não para compeli-lo ou ameaça-lo com algum mal no caso de ele agir de outro modo. Para justificar isso, a sua conduta que se quer desencorajar deve ser calculada para produzir algum mal a alguém mais. A única parte da conduta de alguém pela qual ele é responsável perante a sociedade é aquela que diz respeito aos outros. Na parte que meramente diz respeito a si próprio, sua independência é, de direito, absoluta. Sobre si próprio, sobre seu próprio corpo e mente, o indivíduo é soberano." [07]

Aqui pode muito bem surgir uma crítica por parte dos menos atentos. Como pode ser afirmado que o direito de autodeterminação é relativo, uma vez que leva em consideração os outros, e Mill afirma que a independência que diz respeito a si próprio é absoluta? A crítica é apenas aparente. A confusão é feita entre o uso do verbete "absoluto" em relação ao seu uso como sentido "aberto e irrestrito" e seu sentido como "livre dentro de uma esfera delimitada". Quando Mill afirma que é absoluta a independência, está dizendo que dentro dessa esfera não há que se cogitar de limitações por parte da sociedade ou do Estado. Em outras palavras, quando ele propõe que o direito à autodeterminação é absoluto está falando que é livre e desimpedido dentro da esfera que foi construída, ou, dito de outra forma, se não há razões plausíveis para que limitemos as ações de uma pessoa, então não temos legitimidade para impedi-la. Não está afirmando no sentido de que seja aberto e irrestrito, permitindo ao individuo agir como quiser em toda em qualquer situação. Seria o caos social o Direito permitir uma coisa desse tipo.

Um exemplo bem claro pode ilustrar mais ainda o funcionamento do princípio. Na CF/88 está escrito:

art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

Pois bem. Imaginemos um caso: em algum bairro uma determinada seita religiosa é constantemente frustrada, por outros membros de outra religião, para realizar sua liberdade de culto. Eles argumentam que aquela seita profana os princípios mais fundamentais de sua religião e acham que seria errado deixa-los exercer suas crenças naquela comunidade. Se o Ministério Público ou aquele grupo minoritário entrasse na Justiça pedindo proteção do livre culto, estaria violando o inciso acima? É claro que não. Aquela minoria esta sendo frustrada no seu exercício de culto sem nenhuma justificativa plausível para tanto, pois o que o grupo está fazendo é impondo seu próprio modo de agir a outras pessoas, com base no pressuposto de que sua religião vale mais ou é mais correta do que aquela seita. Por outro lado, o Estado, prestando a tutela jurisdicional nessa situação e, dessa forma, impedindo que o grupo da religião adversa aja dessa maneira, está é protegendo a liberdade de culto de forma justificada.

2.2 Contra a eutanásia: a vida é absoluta.

Um dos primeiros problemas que aparecem em torno da questão é o seguinte: é a vida um bem indisponível? Ou ela é absoluta? Ao que parece, temos mais razões para crer que a vida é algo que não prevalece em todos os casos.

Para sustentar isso, primeiro veremos o atual estágio da teoria constitucional, focalizada na questão dos direitos fundamentais. Em seguida, veremos como nosso direito reconhece, por clara influência dos direitos fundamentais, essa relativização do direito a vida na esfera penal.

2.2.1 Teoria dos direitos fundamentais

É assente na teoria constitucional que os direitos não são absolutos. A teoria dos princípios aplicada aos direitos fundamentais nos leva fatalmente a essa conclusão. Tomemos a definição princípios de Dworkin ou a de Alexy.

Na definição de Dworkin, os princípios apresentam duas características básicas [08]:

a)no aspecto deontológico: os princípios não prescrevem, diante de circunstâncias concretas, qual a conduta, de imediato, é devida. Eles são abstratos demais. Devem sempre levar em consideração não só outros princípios, como também as circunstâncias do caso concreto para que possamos definir qual a conduta é devida;

b)no aspecto do peso: correlacionada com a característica acima, os princípios possuem uma dimensão no peso ou na importância que desempenham no Direito. Quando entram em conflito, um deles deve deixar de prevalecer, cedendo lugar ao princípio contrário que, segundo a interpretação feita, reputa-se mais importante. Mas pelo fato de um princípio não prevalecer num determinado caso, não necessariamente ele deixará de valer. Pode muito bem ocorre que, em outras circunstâncias, ele adquira mais peso ou seja mais importante aquele outro princípio que o venceu no caso anterior.

Na definição de Alexy, os princípios são mandados de otimização, isto é, devem ser cumpridos dá melhor maneira possível, tendo como limites a esse cumprimento as possibilidades fáticas e jurídicas. [09]Qualquer princípio que incida em um caso concreto deve ser levado em consideração e deve, na medida do possível, ser cumprido, mas sempre respeitando os limites estabelecidos pelas condições factuais e pela incidência de outros princípios. De que maneira podemos traçar uma espécie de linha que demarca a área até a qual os princípios podem se expandir, é problema que é avaliado no bojo do caso concreto.

Pois bem. Partindo de qualquer das duas perspectivas, a conclusão a que chegamos é inevitavelmente essa: não há direito absoluto. Haverá casos, portanto, em que um determinado direito deve ceder ao outro a outra política, no caso da perspectiva dworkiniana, ou deve ser restringido para dar espaço para a otimização do outro, na perspectiva alexyana.

Tal conclusão é que faz erigir o princípio da proporcionalidade como grande princípio orientador para a solução da problemática dos direitos fundamentais na nossa ordem constitucional. O STF endossa a tese de que não há direitos absolutos e, por tabela, a idéia de proporcionalidade na exegese constitucional. Eis vários julgados:

"A questão posta não é de inviolabilidade das comunicações e sim da proteção da privacidade e da própria honra, que não constitui direito absoluto, devendo ceder em prol do interesse público. (Precedentes). Ordem denegada." [10]

"Inexiste a alegada inconstitucionalidade do artigo 235 do CPM por ofensa ao artigo 5º, X, da Constituição, pois a inviolabilidade da intimidade não é direito absoluto a ser utilizado como garantia à permissão da prática de crimes sexuais." [11]

"Se é certo que o sigilo bancário, que é espécie de direito à privacidade, que a Constituição protege art. 5º, X não é um direito absoluto, que deve ceder diante do interesse público, do interesse social e do interesse da Justiça, certo é, também, que ele há de ceder na forma e com observância de procedimento estabelecido em lei e com respeito ao princípio da razoabilidade." [12]

2.2.2 No Direito Penal

Tomemos como exemplo a legítima defesa. Todos os países, praticamente, consagram tal direito. Qualquer pessoa que esteja prestes a ser agredida injustamente, e não dispondo de outro meio menos danoso, pode repelir a agressão, mesmo que para isso tenha que, de alguma forma, ferir o seu agressor, até mesmo o matando, se necessário. Nosso Código Penal o consagra no art. 25 [13], mas mesmo que não viesse expresso no nosso direito, ainda assim poderíamos facilmente sustentar tal direito com base na própria proteção da vida que a Constituição reconhece no caput do seu art. 5º.

Além disso, o Código Penal ainda reconhece um importante dilema moral e, por via reflexa, a importância da independência moral de cada um de nós. Refiro-me ao inciso II do art. 128: aborto por razões de estupro [14]. Uma mulher que for vítima de estupro e quiser abortar, com a devida ajuda de um médico, estará legitimamente possibilitada para tal. Vemos como o Código deixa a cargo dela uma importante decisão, dando mais sustentação para o fato de que a vida não é algo absoluto. Diante de uma questão moral tão difícil como essa, a mulher deve ter o direito de tomar a decisão de acordo com suas mais íntimas convicções. [15] Deve escolher entre ter gerar uma criança gerada por um fato extremamente danoso a sua dignidade ou praticar o aborto. A legislação andou bem nesse ponto e, sem dúvidas, é mais uma manifestação da independência moral. Se fosse disposto que toda e qualquer mulher deveria abortar, porque a maioria da sociedade pensasse que é deplorável ter uma criança originada nessas circunstâncias, então seria extremamente aviltante para com algumas mulheres que, mesmo tendo uma gravidez gerada por um estupro, ainda assim deixariam a criança nascer, por pensarem, de acordo com as suas convicções morais, que a vida deveria ser preservada nesse caso, seja porque a criança não teve nada a ver com o estupro, porque são tementes a Deus ou outras coisas do gênero. Mas também seria extremamente danoso para as mulheres se elas não pudessem abortar nesse caso, pois algumas sequer tolerariam uma criança que fosse concebida de uma forma extremamente humilhante e traumatizante como o estupro. O Direito Penal, assim, deixa a mulher livre para escolher.

Dessa forma, percebemos como há razões para que tornemos o direito à vida um direito relativo e que, inevitavelmente, deve levar em considerações outras questões e argumentos igualmente relevantes.

Mas então o problema da eutanásia assume a seguinte forma: que razão temos para aceitá-la?

2.2.3 Uma importante razão

Antes de apresentar essa forte razão, um pequeno esboço da teoria da argumentação em matéria de direitos fundamentais é necessário.

Para efeito teórico, usarei uma distinção feita por Dworkin entre direitos abstratos e direitos concretos [16], a qual se aproxima da (se não for funcionalmente idêntica a) idéia de prioridades prima facie [17] ou direitos prima facie [18] de Alexy. Um direito abstrato é, pelo próprio nome, algo extremamente vago e estabelecido prima facie, estabelecendo uma carga de argumentação ou razão que aponta num determinado sentido, sem prescrever o resultado a que alguém está obrigado. Nas palavras de Alexy:

"A proposição de direitos prima facie é uma proposição bastante débil. Não se decide nada a cerca do que está definitivamente obrigado. Um socialista, sempre que não seja um fanático, pode aceitar um direito geral a liberdade como um direito prima facie. Podemos ter a esperança de que o acomode, através de um processo de ponderação, dentro de seus ideais políticos. Um liberal, considerando de novo que não é um fanático, pode aceitar o direito social geral a assistência social como um direito prima facie. Aqui, também, podemos esperar que o reduza através de um processo de ponderação de acordo com seus ideais políticos, por exemplo, que o transforme em um direito definitivo com um conteúdo mínimo." [19]

Por exemplo: a nossa ordem constitucional nos garante o direito de propriedade, mas não diz como esse direito será exercido ou em que termos é juridicamente exigível. Temos, assim, um direito à propriedade prima facie, mas que dependerá de outras circunstâncias ou outros argumentos para torná-lo plenamente exigível. Já um direito concreto leva em conta justamente a incidência dos direitos abstratos e outros tipos de argumentos como forma de argumentação em um caso concreto.

Dessa forma, suponha que eu queira construir uma simples calçada na minha casa. O direito de propriedade, assim, é um argumento no sentido de que eu posso fazê-lo e não há nenhum outro argumento que aponte na direção contrária. Mas no momento em que eu amplio o tamanho da minha calçada de modo a interromper o fluxo de automóveis na rua, não há mais direito, posto que estou atrapalhando política básicas de tráfego de automóveis, que permite que os bairros possuam um fluxo de carros para melhor servir a coletividade (é a tão importante função social da propriedade estabelecida no inciso XXIII do art. 5º da CF). No entanto, se o governo do meu Município decide que não posso construir minha calçada de forma a possibilitar que meu carro entre na garagem e não apresenta nenhuma razão para tanto ou invoca apenas o fato de que o fluxo de automóveis terá um ganho de 1% em eficiência, meu direito de propriedade funciona como um vigoroso argumento em prol do meu interesse contraposto ao um argumento de interesse público de caráter extremamente dúbio.(O exemplo é tosco, mas serve apenas para ilustrar como funciona a argumentação jurídica)

Assim, cumpre agora saber quais argumentos podemos ter para sustentar um direito concreto a eutanásia. O princípio da autodeterminação é o direito abstrato que temos prima facie. Ele sustenta uma razão fortíssima. A eutanásia envolve uma questão de alta relevância ético-filosófica e, assim sendo, possui uma conexão íntima com o princípio. Envolve a questão de sabermos qual o verdadeiro significado da vida, se ela é o que é apenas pelo simples fato de estarmos respirando nesse momento ou se envolve algo mais, como poder abraçar uma pessoa que amamos ou conversar normalmente com os amigos numa mesa de bar, ou, como no caso de Ramón Sampedro, poder dar um mergulho na praia. Se reconhecemos esse respeito à autodeterminação de uma pessoa, devemos, portanto, respeitar sua decisão nessa questão que envolve o significado da vida, da morte e do sofrimento.

Ao mesmo tempo em que o princípio funciona como argumento, ele também estabelece um pressuposto inafastável para o caso em questão: a decisão só deve caber ao indivíduo e a mais ninguém. Se permitíssemos o contrário, estaríamos anulando a autodeterminação de uma pessoa. O indivíduo deve manifestar sua vontade inequivocamente para tal questão. Não podem os parentes, ou quem quer que seja, tomar a decisão no lugar dessa pessoa simplesmente porque acham que isso ofende a Deus ou coisa parecida. Todos devem tolerar a decisão. Não é dado aos parentes ou aos médicos, por exemplo, pedirem para que sejam desligados os aparelhos de um paciente que está em coma simplesmente com base no maior ato de amor e generosidade do mundo ou porque manter o paciente naquela situação custa muito aos cofres públicos. Sem a manifestação da pessoa, nenhuma decisão é possível.

No entanto, surge uma dificuldade para a questão. Como estabelecer um critério ou uma espécie de linha a partir da qual temos uma circunstância que autoriza o direito? É como diz Dworkin:

"Porque deveria ser negado para pacientes tão frágeis ou paralisados que não conseguem sozinhos tomar pílulas e que imploram a um médico que injete uma droga letal dentro deles? Ou a pacientes que não estão morrendo mas enfrentando anos de intolerável dor física ou emocional, ou paralisia ou dependência aleijante? Mas se esse direito for estendido para tão longe, em que caso ele poderia ser negado para qualquer um que tenha formado um desejo de morrer – para um jovem de 16 anos sofrendo de um severo caso de amor não-correspondido, por exemplo?" [20]

Dessa forma, creio que temos três situações em que esse direito é plenamente exigível:

a)o direito é utilizado com o fito de acelerar a morte, pois ela é inevitável e o prolongamento da vida nessas circunstâncias seria inútil e extremamente doloroso. É o caso do paciente que pede a um médico que lhe ministre uma dose letal de algum medicamento para pôr logo termo à vida e, conseqüentemente, ao sofrimento. Trata-se de uma forma comissiva;

b)o direito é utilizado como uma maneira de evitar um tratamento médico que apenas retarda a morte e prolonga uma vida de extremo sofrimento. Trata-se de uma forma omissiva;

c)o direito é usado para pôr fim a uma vida que, embora não tenha um termo bem definido, é extremamente dolorosa ou foi severamente limitada, pelo resto da vida, por algum acontecimento, de modo que a pessoa, de acordo com suas mais íntimas convicções, crê que não há mais dignidade ou propriamente vida naquilo. Essa é, eu creio, a forma mais polêmica. Temos como exemplo paradigmático o caso do Ramón Sampedro ou o personagem de Denzel Washington no filme O colecionador de ossos [21]. O caso do rapaz de 16 anos do exemplo acima fica afastado, posto que embora talvez possamos reconhecer um sofrimento sentimental desse garoto, ele não irá durar por toda a vida, ainda mais se levando em conta a sua idade e a freqüência com que isso ocorre na adolescência.

Em todos três casos, é bom frisar, deve haver sempre o devido acompanhamento médico e um rigoroso e minucioso diagnóstico sobre a situação da pessoa.

Assim, temos três tipos de condições para o exercício desse direito: a situação fática (descrita logo acima); a vontade livre e consciente do indivíduo de tomar essa decisão, isto é, deve haver uma voluntariedade; e deve haver o devido acompanhamento médico. Em outras palavras, ocorrendo essas três condições, há o direito à eutanásia legal. Todas as outras situações que não se enquadram rigorosamente nesse esquema são inválidas, tais como a eutanásia eugênica ("é a eliminação indolor dos doentes indesejáveis, dos inválidos e velhos, no escopo de aliviar a sociedade do peso de pessoas economicamente inúteis") [22] ou eutanásia não-voluntária ("caracteriza-se pela inexistência de manifestação da posição do paciente em relação a ela") [23].

Portanto, constitucionalmente temos assegurado um importante argumento a favor da eutanásia, ao mesmo tempo em que nos permite construir alguns requisitos para seu reconhecimento. Contudo, não creio que aqueles requisitos fáticos para a exigibilidade do direito sejam suficientes. Na verdade, eles funcionam como base para uma melhor regulamentação por parte do Estado. Não obstante, creio que já é um grande passo.


3. A problemática na dogmática jurídico-penal

Um sério, pelo menos aparente, obstáculo à eutanásia é o crime de homicídio tipificado no art. 121 [24] do nosso Código Penal e o crime de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio tipificado no art. 122 [25]. Muitos doutrinadores de escol não vêem como é possível conceber a eutanásia frente a esses delitos. Em linhas gerais, o principal argumento que apresentam é o de que a pessoa que pratica a eutanásia se enquadra perfeitamente na figura típica descrita no art. 121 ou no art. 122 do Código Penal e dizem que não há nenhuma espécie de causa de exclusão de antijuridicidade. Quando muito, o agente se beneficiaria de uma causa de diminuição de pena no parágrafo 1º do artigo 121 (homicídio privilegiado) e não teria nenhum benefício no art. 122.

No entanto, creio que o Código Penal permite a eutanásia. Tomando os conceitos da teoria do crime, temos que o crime é uma ação típica, antijurídica e culpável [26]. Vamos analisar o conceito e ver se realmente há essa proibição.

Evidentemente, a ação de quem pratica a eutanásia é típica, isto é, há vontade livre e consciente de praticar o ato. Há o dolo, isto é, "a consciência e a vontade de realização da conduta descrita em um tipo penal". [27] Assim, quando a pessoa não têm condições de realizar a conduta sozinha e o médico pede para que assim o faça, estaríamos perante a hipótese do art. 121. Mas quando a pessoa tem condições de efetuar a conduta sozinha e o médico, por exemplo, dispõe-lhe uma determinada substância cuja dose é letal, estaríamos, assim, perante a hipótese de auxílio ao suicídio no final do caput do art. 122.

Não obstante a tipicidade da conduta, quando partimos para a questão da antijuridicidade, nos deparamos com o artigo 23 do CP:

Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato:

I - em estado de necessidade;

II - em legítima defesa;

III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Olhando para os três incisos e uma vez reconhecendo o direito à eutanásia como decorrência e expressão do direito à independência moral da pessoa, percebemos que temos sim uma causa de exclusão de antijuridicidade no final do inciso terceiro: o exercício regular de direito. Mais uma vez Bittencourt dá uma explicação:

"Qualquer direito, público ou privado, penal ou extrapenal, regularmente exercido afasta a antijuridicidade. Mas o exercício deve ser regular, isto é, deve obedecer a todos os requisitos objetivos exigidos pela ordem jurídica." [28]

Ora, no caso em questão, por força do princípio da supremacia da Constituição, o direito à eutanásia não é apenas um mero direito infraconstitucional de índole privada, mas sim um direito fundamental. Se temos como base de nosso direito uma Constituição, decorrendo daí o seu caráter de lei fundamental, é forçoso reconhecer, assim, um maior destaque nesse direito e sua conseqüente projeção na esfera penal, excluindo o caráter criminoso da conduta. Do contrário, estaremos rasgando nossa Constituição.

Quanto à questão da participação do médico, podemos estabelecê-la de acordo com o próprio Código Penal. Acima foi discutida a questão do aborto em gravidez decorrente de estupro. Como tanto nessa questão como na eutanásia há um sério e controverso problema moral, podemos muito bem estabelecer, por analogia, a participação do médico como condição sine qua non para o exercício do direito, garantindo um mínimo de regulação, de modo a evitar uma eutanásia "forçada" por parentes de um indivíduo ou coisa parecida.

Mas aqui podemos suscitar a seguinte pergunta: e o direito do próprio médico em relação as suas convicções morais? Se ele não concorda com a eutanásia, ele deverá ser forçado a participar?

É claro que não. Seria uma contradição absurda fazer reconhecer isso àquela pessoa que se encontra em umas das três situações hipotéticas descritas mais acima e não permitir que o médico, por questões religiosas ou filosóficas próprias, exerça também seu juízo moral e deixe de participar da eutanásia. Ele também tem o mesmo direito à autodeterminação moral.

Mas aqui poderia surgir uma vigorosa crítica. Se o médico não pode ser obrigado a participar, do jeito que o direito requer, então este não se tornaria impossível? A crítica peca por se basear no seguinte pressuposto: todos os médicos são contra a eutanásia. Mas, se pensarmos por um momento, percebemos claramente como esse pressuposto é infundado. É no mínimo absurdo acreditar que todos os médicos são contra a eutanásia. Evidentemente todos não são a favor, mas alguma parcela da classe médica é a favor e isso já o suficiente. O problema então se resume a convocar um médico cujas convicções éticas sejam iguais às do paciente, o que é, convenhamos, facilmente contornável.

Com certeza, há, ainda, uma maior necessidade de garantir a fiscalização de todo o processo. Creio que a instituição mais adequada seria o Ministério Público, posto que ele detém a legitimidade para a propositura da ação penal pública, sendo uma de suas funções institucionais (I, art. 129, CF/88).

Portanto, tendo em vista esses argumentos, temos razões suficientes, assim como as bases jurídicas necessárias, para reconhecermos a plena exigibilidade do direito à eutanásia. Talvez seja verdade que uma regulamentação mais pormenorizada seja necessária por alguma reforma no Código Penal, mas, em linhas gerais, nosso ordenamento jurídico não é contrário à eutanásia como sustentam os juristas e temos uma base legal mínima para garantir sua exigibilidade.


4. Os argumentos contrários

Chega, portanto, a hora de analisarmos os principais argumentos da tese de que a prática da eutanásia deve ser tratada como um crime e, como tal, o aparato estatal deve ser mobilizado para punir quem quer que a faça. É de fundamental importância analisarmos também os argumentos gerais contrários à eutanásia, para obter maior legitimidade para a nossa Constituição. [29]

4.1 O argumento teológico

"A vida é bem fundamental do ser humano, e há quer ser protegida pelo Direito. Para mim, ainda se põe o argumento de ordem religiosa - a vida é dom de Deus, e só a Ele pertence. O ser humano não pode dela dispor, nem para tirar a própria vida - mesmo porque a vida não é sua, mas de Deus, que a tirará consoante Seu projeto – nem muito menos para tirar a vida de outrem." [30]

"... confirmo que a eutanásia é uma violação grave da Lei de Deus, enquanto morte deliberada moralmente inaceitável de uma pessoa humana. Tal doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal. A eutanásia comporta, segundo as circunstâncias, a malícia própria do suicídio ou do homicídio." [31]

Essas são duas formas do mesmo argumento invocado por alguns opositores da eutanásia. Podemos resumi-lo: o homem não pode dispor da vida, porque ela não lhe pertence, e sim pertence a Deus.

Não quero atacar o argumento de forma direta, isto é, não quero dizer se tal argumento está é verdadeiro ou não, se Deus existe ou coisa parecida. Na verdade, quero me basear na incoerência dos que utilizam esse argumento como base para punição de quem efetua a eutanásia. Em outras palavras: creio que é equivocado utilizar princípios de uma determinada religião como fundamento da incriminação da eutanásia.

Em primeiro lugar, temos a seguinte questão: e os ateus e agnósticos? Será que seria coerente com a nossa ordem constitucional fundamentar a ilicitude da eutanásia com base num argumento de um determinado segmento religioso da sociedade, deixando de levar em consideração outras pessoas que divergem sobre isso? É evidente que não. Seria extremamente injusto se, partindo do pressuposto de que todos têm o direito a uma autodeterminação moral, impuséssemos isso. Afinal de contas, o direito da independência moral exige isso: não podemos punir alguém simplesmente porque se contrapõe aos princípios de uma religião dominante, uma vez que a ele está garantido o mesmo respeito que é garantido aos membros daquela. A questão é de respeito, isto é, o princípio da tolerância vai de encontro ao argumento teológico.

E em segundo lugar, partindo do pressuposto de que vivemos em uma sociedade profundamente religiosa e todos os seus membros partilham de alguma crença em comum, o argumento enfrenta uma séria dificuldade: a divergência interna. Mesmo no âmbito de uma mesma comunidade religiosa, ainda assim podemos encontrar, entre pessoas de boa-fé, pontos de vista antagônicos. Por exemplo, muitos católicos, não obstante a condenação veemente por parte da Igreja, não consideram o uso da camisinha uma prática condenável do ponto de vista moral. Eles crêem, assim, que o uso de preservativo se harmoniza perfeitamente com a concepção que eles têm de amor ao próximo e outros princípios. Mesmo do ponto de vista interno, o argumento ainda possui a mesma intolerância.

Destarte, vemos como argumento teológico é falho. A Sra. Ommati pode pensar assim. Tem todo direito. Mas deve se lembrar das outras pessoas também.

4.2 O argumento da ciência

Um outro argumento bastante utilizado é o do dogma da infalibilidade científica. Basicamente, segundo eles, a situação de extremo sofrimento pela qual passa alguém não é motivo para praticar eutanásia, posto que a ciência ainda poderá, algum dia, eliminar a dor que aflige essa pessoa. A medicina avança a cada dia. Vemos a todo instante a realização de façanhas que, em tempos atrás, jamais seriam imaginadas por alguém em sã consciência. "A ciência ainda não desvendou inteiramente o mistério e a estrutura vital" [32]. Destarte, há ainda muito a ser feito pelos cientistas.

Esse argumento parte de um dogma: a infalibilidade científica. Ora, isso, por si só, já é extremamente controverso. O positivismo filosófico, do qual decorre, creio eu, a crença na infalibilidade da ciência, há muito tempo que é questionável. A vetusta concepção do conhecimento científico como isento de subjetividade e, portanto, passível de igual apreensão por todos em qualquer época e lugar, dando origem ao dogma da expansão ou sedimentação do conhecimento científico não mais ocupa um lugar sério ou, pelo menos, já é cada vez mais contraditada por um exame sério e atento dos fatos. Cada vez mais vem ganhando espaço na filosofia da ciência a tese da sucessão dos paradigmas [33]: a ciência, de tempos e tempos, renova-se, adota novas posturas e dogmas que explicam a natureza, acarretando uma outra postura de enxergar o mundo, solucionando problemas que a concepção anterior não conseguiu responder, derrocando-a. Não quero entrar no cerne de tal discussão. Apenas usei esse exemplo dos paradigmas para ilustrar como uma concepção de ciência como "a resposta para todas as perguntas da humanidade" é extremamente questionável no mundo em que vivemos. É, no final das contas, uma questão genuinamente filosófica e, portanto, controvertida.

Mas se estamos frente uma questão filosófica extremamente controvertida, poderíamos utilizar isso como razão para a incriminação da eutanásia? Mais uma vez o princípio da autodeterminação aponta na direção contrária. Seria extremamente insensato, reconhecendo tal prerrogativa a cada pessoa, fundamentar a proibição da eutanásia com base em uma convicção filosófica específica.

No entanto, vou seguir mais em frente e considerar que realmente a ciência possuirá realmente a solução para o problema de determinados pessoas que se encontram na situação que dá ensejo a eutanásia. Ainda dessa forma, o argumento perde grande parte de sua força pelo seguinte: quando essa descoberta se dará? Amanhã? Depois? Daqui a quinze minutos? Daqui a um século? Como não temos certeza de quando isso irá acontecer, fica extremamente complicado sustentar o argumento. Estaríamos obrigando a pessoa a se manter em situação por anos a fio, oxalá ocorra realmente a tão almejada descoberta científica antes da morte dela! A decisão a respeito de se agarrar à esperança de um dia acontecer isso é, mais uma vez, pessoal.

4.3 O argumento da "morte encomendada"

Segundo esse argumento, se a eutanásia for permitida, correríamos um sério risco: ela poderia muito bem ser usada como escudo para a prática do homicídio. Suponhamos um herdeiro extremamente ganancioso e inescrupuloso. Ele poderia muito bem usar a eutanásia de forma a "antecipar" o recebimento da tão cobiçada herança. Se abrirmos a malha do Direito para a eutanásia, daremos oportunidades para situações desse jaez.

Mas esse argumento é infundado. Devemos fazer a seguinte pergunta: o Direito e aqueles que o manuseiam estão preparados, em todos os casos, para atos de extrema má-fé como o do nosso herdeiro ambicioso? O aparato do Estado (Judiciário, Ministério Público, Administração Pública etc) consegue evitar por completo desvios de conduta desses?

Vamos refletir. O que faz você, leitor, deitar em uma mesa de cirurgia e deixar que uma pessoa, que você nunca viu na vida, abra-lhe com um bisturi? Ou: porque presumimos que a carne ou o pão que compramos todo dia para comer não estão envenenados ou que passaram por um rígido controle sanitário?

A resposta é simples: confiamos uns nos outros. Desde o momento em que levantamos da cama até o momento em que deitamos para dormir, vivemos tendo como base uma série de presunções ou dogmas. Presumimos a todo instante, pois não podemos demonstrar, verificar minuciosamente se Fulano que está dizendo a verdade ou não; ou se aquela estrada, que nunca vimos na vida, é perigosa ou segura; ou se, no seu caso leitor, esse ensaio foi escrito realmente pelo dono do nome que aparece no título. Enfim, vivemos com base em aparências, pois, do contrário, não poderíamos viver normalmente, sempre assustados e acuados como animais. Vivemos, portanto, sempre com base na presunção de que as pessoas com as quais convivemos todos os dias irão agir de boa-fé.

Com o Direito não é diferente. Qualquer que seja o nível de regulação por parte do Estado, por mais pormenorizado e abrangente que seja, por mais totalitário que possa ser um Estado, não há como regular minuciosamente e abrangentemente todas as condutas, de forma a evitar espertalhões como o nosso herdeiro ambicioso. Quando uma lei é promulgada, ela regula a sua situação-alvo, mas não há como ela evitar, por completo, que pessoas de má-fé a usem ou burlem suas regras. Temos, por exemplo, a própria situação de aborto em gravidez decorrente de estupro. Essa causa de exclusão da punibilidade pode muito bem ser usada como manto para a prática de aborto criminoso. Basta termos as pessoas certas, com os desvios éticos apropriados para tanto, e um Promotor de Justiça jamais saberá que houve o crime. Não obstante esse risco, o Direito permite essa modalidade de aborto.

Mas aqui devo fazer uma observação. Pelo fato de que não há como se conseguir um Direito perfeito ou impermeável, não se segue daí que não devemos nos esforçar para municiar o Direito de modo a tornar difícil, a quem age de má-fé, que ele seja usado para fins escusos. Ele depende também muito, isso é inegável, das posturas éticas que advogados, juízes e promotores têm. Não obstante, seria insensato abrirmos mão de uma tentativa de regular a sociedade apenas porque não conseguiremos um êxito definitivo nisso.

Há ainda um outro aspecto do argumento que o torna mais frágil. De fato, a prática da eutanásia tem sido bastante difundida entre o meio médico e sem nenhuma forma de controle. "Apesar de ilegal, a eutanásia - apressar, sem dor ou sofrimento, a morte de um doente incurável - é ato freqüente e, muitas vezes, pouco discutido nas UTIs de hospitais brasileiros. Dezesseis médicos ouvidos pela Folha confirmam que hoje o procedimento é comum e vêem a eutanásia como abreviação do sofrimento do doente e da sua família." [34]

Dessa forma, uma regulamentação, é plausível supor, poderá muito bem oferecer um parâmetro de controle. Pessoas, como no exemplo do herdeiro citado acima, provavelmente devem estar se aproveitando dessa situação de ausência estatal e praticando justamente aquilo que o argumento da "morte encomendada" busca evitar. Isto é, o argumento atenta para o risco da legalização da prática, mas não considera que é mais sensato supor que o risco é mais alto se a prática continuar ocorrendo sem a tutela do Estado.

Portanto, se nos deixássemos levar pelo argumento do "hipocondríaco jurídico", seria impossível levar uma vida normal. Jamais sairíamos de nossas casas. Talvez nós nem levantaríamos da cama...


5. Conclusão

A eutanásia faz parte do debate ético-jurídico contemporâneo. Inúmeras são as discussões sobre o problema. Diversos setores da sociedade participam do debate, alguns acirrando ainda mais a discussão com uma retórica intolerante. Não é para menos. A questão envolve um dos mais truncados e fascinantes problemas que aflige o homem desde que ele tomou consciência de si: a sua própria vida.

No entanto, a intolerância não é o caminho apontado pela nossa ordem constitucional. Já passamos por isso nos anos de chumbo, apesar de ainda sentirmos os efeitos desse tempo negro de nossa história político-constitucional. Nossa Lei Suprema, projeto político que demonstra como nós aprendemos com o passado e que descortina um novo horizonte para o Brasil, garante uma série de direitos, tão importantes que os qualifica como cláusulas de eternidade (IV, § 4º, art. 60 da CF/88) e, dentre tais direitos, está o reconhecimento da capacidade de cada pessoa, independentemente de quem seja, poder pensar por si só e tomar decisões que digam respeito ao mais íntimo aspecto de sua vida, inclusive a decisão sobre a sua morte. Se não reconhecermos esse respeito a cada pessoa, estaremos desvirtuando o sentido dos direitos de primeira geração e dilapidando uma importante faceta da nossa Constituição: a proteção da pessoa contra o Estado e contra as maiorias políticas mal-intencionadas. Se realmente queremos fazer do Brasil um Estado de Direito, não podemos utilizar o sistema punitivo estatal, clara "técnica de poder" [35] sobre as pessoas, simplesmente porque alguém é diferente.


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Notas

01 GOLDIM, José Roberto. Caso Terri Schiavo: retirada de tratamento. Disponível em:< http://www.ufrgs.br/bioetica/terri.htm>. Acesso em: 1 maio 2006.

02 GOLDIM, José Roberto. Caso Ramón Sampedro: suicídio assistido. Disponível em:< http://www.ufrgs.br/bioetica/sampedro.htm>. Acesso em: 1 maio 2006.

03 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 201.

04 MORAES, Alexande de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 180.

05 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 525.

06 FARIAS, Edílson. Liberdade de expressão e comunicação: teoria e proteção constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 156-157.

07 MILL, John Stuart. On liberty. London: Penguin Classics, 1985. p. 68-69.

08 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 35-46.

09 ALEXY, Robert. Sistema jurídicos, princípios jurídicos y razón práctica. Doxa, n. 5, p. 143, 1988. Disponível em:< http://www.cervantesvirtual.com/servlet/sirveobras/12471730982570739687891/cuaderno5/doxa5_07.pdf>. Acesso em: 11 mar. 2006.

10 STF – HC n. 87341 – Paraná – Primeira Turma – Rel. Min. Eros Grau – DJU 03/03/2006 – p. 73.

11 STF – HC n. 79285 – Rio de Janeiro – Primeira Turma – Rel. Min. Moreira Alves – DJU 12/11/1999 – p. 91.

12 STF – RE n. 219780 – Pernambuco – Segunda Turma – Rel. Min. Carlos Velloso – DJU 10/09/1999 – p. 23.

13 Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

14 Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:

...............

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

15 Evidentemente, para que caracterize o dilema moral, estamos partindo do pressuposto de que a vida começa com a concepção intra-uterina, o que, outra vez, é outro importante dilema moral contemporâneo.

16 DWORKIN, Levando, p. 146-147.

17 ALEXY, Robert. Sistema jurídicos, p. 148.

18 ALEXY, Robert. Derechos, razonamiento jurídico y discurso racional. Isonomía: Revista de Teoria y Filosofia del Derecho, n. 1, p. 41, out. 1994. Disponível em:< http://descargas.cervantesvirtual.com/servlet/sirveobras/01338308644248274088802/isonomia01/isonomia01_03.pdf>. Acesso em: 12 mar. 2006.

19 Idem, p. 43.

20 RAWLS, John et alii. Assisted suicide: the philosophers´ brief. The New York Book Review, New York, volume 44, n. 5, 27 mar. 1997. Disponível em: <http://www.nybooks.com/articles/1237>. Acesso em: 18 de fevereiro de 2006.

21 O colecionador de ossos. Direção: Phillip Noyce. Produção: Martin Bregman, Michael Scott Bregman e Louis A. Stroller. Produtora: Universal Pictures / Columbia Pictures. Data de lançamento (EUA): 1999.

22 CARNEIRO, Antonio Soares; CUNHA, Maria Edilma et al. Eutanásia e distanásia. A problemática da Bioética. Jus Navigandi, Teresina, a. 2, n. 24, abr. 1998. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/1862>. Acesso em: 28 fev. 2006.

23 Idem.

24 Art. 121. Matar alguém:

Pena - reclusão, de seis a vinte anos.

25 Art. 122. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça:

Pena – reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave.

26 Não vou entrar na controvérsia doutrinária a respeito da culpabilidade como elemento integrante do conceito de crime.

27 BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: volume 1. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 210.

28 Idem, p. 273.

29 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1997.

30 OMMATI, Fides Angélica. "Eutanásia: homicídio ou ato de amor?", O Dia, Teresina, 10 de abril de 2005, Caderno debate, p. 5.

31 PAULO II, João. Evangelium vitae. Disponível em: . Acesso em: 5 de março de 2006. Capítulo III: não matarás.

32 OMMATI, Idem, p. 5.

33 KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1982.

34 COLLUCCI, Cláudia; GOIS, Antônio; LEITE, Fabiane. Médicos revelam que eutanásia é prática habitual em UTIs do país. Folha de S. Paulo. São Paulo, 20 fev. 2005. Disponível: < http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u105876.shtml> Acesso: 18 mar. 2006.

35 FOUCALT, Michel. Vigiar e punir. 29 ed. Petrópolis: Vozes, 2004.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREDERICO JÚNIOR, José Luizilo. A Constituição brasileira proíbe a eutanásia?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1053, 20 maio 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8408. Acesso em: 29 mar. 2024.