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A prorrogação do direito ao crédito com relação ao material de uso e consumo do ICMS é constitucional, diz o STF

A prorrogação do direito ao crédito com relação ao material de uso e consumo do ICMS é constitucional, diz o STF

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A lei complementar, ao postergar o direito ao crédito com relação à aquisição de mercadorias destinadas ao uso e consumo, extrapolou a sua vocação disciplinadora, estabelecendo restrições no direito constitucional da não cumulatividade.

Seguindo o voto do ministro Alexandre de Moraes, o STF julgou constitucional as sucessivas prorrogações do direito ao crédito do ICMS com relação às aquisições de mercadorias destinadas ao uso e consumo no estabelecimento do  contribuinte, no julgamento do RE 601.967, em rito de repercussão geral.

Por maioria de voto, o plenário virtual firmou a seguinte tese:

Não viola o princípio da não cumulatividade (art. 155, §2º, incisos I e XII, alínea “c”, da CF/1988) lei complementar que prorroga a compensação de créditos de ICMS relativos a bens adquiridos para uso e consumo no próprio estabelecimento do contribuinte.

Foram vencidos os votos dos ministros Marco Aurélio e Luiz Edson Fachin, os quais  viram na medida uma restrição indevida ao princípio da não cumulatividade do imposto.

Para examinar a matéria com melhor apuração técnica e os reflexos da decisão judicial, é necessária uma análise da disposição legal pertinente.    

A Constituição Federal reservou à lei complementar a competência para “disciplinar” o sistema de compensação do imposto. (art. 155, II, § 2º, XII).

Art. 155 [...]

[...]

II – Operações  relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação [...];

[...]

§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá o seguinte:

[...]

XII – Cabe à lei complementar:

[...]

c) disciplinar o regime de compensação do imposto. 

Este complemento constitucional está a cargo da Lei Complementar nº 87/96, que dispõe sobre o ICMS no plano nacional. Esta lei, ao tratar sobre o sistema de creditamento, optou por um modelo ampliado, admitindo o denominado crédito financeiro, segundo a doutrina, conforme se verifica no artigo 20.

Art. 20. Para a compensação a que se refere o artigo anterior, é assegurado ao sujeito passivo o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha resultado a entrada de mercadoria, real ou simbólica, no estabelecimento, inclusive a destinada ao seu uso ou consumo ou ao ativo permanente, ou o recebimento de serviços de transporte interestadual e intermunicipal ou de comunicação.

Ocorre que a eficácia normativa deste dispositivo com relação às entradas de mercadorias destinadas ao uso e consumo está sendo prorrogada sucessivamente, através de leis complementárias próprias. A prorrogação mais recente ocorreu através da LC 171/19, prevendo o crédito para o ano de 2033. A decisão judicial tinha por objeto a LC 122/06, que veiculava uma destas prorrogações.

A decisão do supremo, por maioria de votos, legitimou estas prorrogações, não as considerando uma afronta ao princípio da não cumulatividade do imposto, ao decidir pela sua constitucionalidade.

No entanto, há espaço para divergir desta decisão, a partir de uma análise da vocação  específica da norma complementar, restrita a disciplinar o sistema de compensação, sem inovação normativa. A questão é compreender o real sentido da atribuição de “disciplinar” o sistema. Até que ponto a norma disciplinadora pode intervir na norma disciplinada.

A  LC 87/96, ao estabelecer o regime de creditamento, reconhecendo o direito ao crédito com relação às aquisições de mercadorias destinadas ao uso e consumo, interpretou os desígnios da Constituição Federal, regulamentando e disciplinando o seu uso, sem inovação normativa. Ou seja, não foi a legislador complementar que concedeu este crédito, mas apenas reconheceu este direito autorizado constitucionalmente. A Constituição Federal é norma introdutora deste crédito no sistema, cabendo à norma complementar apenas disciplinar ou regulamentar a sua operacionalidade.   

A não cumulatividade é preceito constitucional e não pode sofrer limitações por normas subalternas. O que o constituinte reservou à lei complementar é a atribuição de disciplinar o sistema de creditamento, não lhe sendo facultado instituir norma modificativa. Disciplinar é estabelecer os procedimentos, as condições, a regulamentação,  incluindo a própria interpretação da norma disciplinada. Disciplinar é amoldar a norma abstrata aos casos concretos, para dar efetividade ao princípio da não cumulatividade e não criar norma autônoma, intervindo no estabelecimento de limites neste direito de compensação.

Por esta perspectiva, as leis complementares supervenientes que prorrogaram o direito ao crédito com relação às aquisições de mercadorias destinadas ao uso e consumo, extrapolaram a vocação disciplinadora e interferiram no sistema como norma inovadora. Na verdade, impuseram restrição ao direito do crédito antes reconhecido pelo ordenamento jurídico competente, tanto pela Constituição Federal, como pela LC  87/96. A lei complementar superveniente prorrogou um direito constitucional, sem competência para tanto. O legislador complementar somente poderia veicular esta prorrogação de direito se fosse competente para dispor sobre o mesmo, o que não é o caso. Disciplinar o direito não é dispor do direito. 

Portanto, mesmo reconhecendo o efeito jurídico da decisão em comento, os votos dos ministros vencidos mais se alinham aos preceitos constitucionais, os quais reconheceram a inconstitucionalidade da prorrogação, através de lei complementar subsequente, do direito ao crédito do ICMS com relação à aquisição de mercadorias destinadas ao uso e consumo no estabelecimento, contribuinte do imposto.

Ademais, esta questão do crédito com relação às mercadorias adquiridas para uso e consumo tem sido uma das principais causas de contencioso administrativo e judicial. A LC 87/96 não oferece uma definição do que venha ser “uso e consumo”; os tribunais judiciais não formularam uma jurisprudência consolidada; o STJ caminha por uma posição não acolhida pelo STF; os Estados defendem posições díspares. Existe uma enorme variedade destes produtos usados e consumidos das mais variadas formas, o que dificulta um tratamento homogênio quanto ao sua definição. Tudo isso gera uma enorme insegurança jurídica para o contribuinte. Melhor seria autorizar o crédito com relação a estes produtos e buscar uma compensação tributária alternativa, talvez uma majoração da alíquota do ICMS, o que seria muito mais produtivo no plano da administração tributária. 


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