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A APLICAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NO ÂMBITO ESCOLAR

A APLICAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NO ÂMBITO ESCOLAR

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O presente trabalho teve como foco a aplicação da justiça restaurativa no âmbito escolar. Para isso, analisou-se a proteção à criança e ao adolescente, com a utilização desse instituto nas esferas judicial e extrajudicial.

 

      A APLICAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NO ÂMBITO ESCOLAR

THE APPLICATION OF RESTORATIVE JUSTICE IN THE SCHOOL SETTING

  

Jessielane Jarder Coelho da Silva [1]

Tarsis Barreto Oliveira [2]

 

 

RESUMO: O presente trabalho teve como foco a aplicação da justiça restaurativa no âmbito escolar. Para isso, analisou-se a proteção à criança e ao adolescente, com a utilização desse instituto nas esferas judicial e extrajudicial, demonstrando a viabilidade de sua aplicação no espaço escolar e concomitantes reflexos na construção de respeito mútuo e melhoria das relações desses jovens com a sociedade.

Palavras-chave: Justiça restaurativa; criança e adolescente; âmbito escolar.

 

ABSTRACT: This work focused on the application of restorative justice in the school setting. To this end, the protection of children and adolescents was analyzed, with the use of this institute in the judicial and extrajudicial spheres, demonstrating the feasibility of its application in the school space and concomitant reflexes in the construction of mutual respect and improvement of the relations of these young people with society.

Keywords: Restorative justice; child and teenager; school setting.

 

1. INTRODUÇÃO

 

O sistema penal brasileiro tem como fundamento a justiça retributiva, em que o Estado, visando a punição do agressor, é o responsável por repreender o acusado, afastando a vítima e a sociedade da resolução do conflito. Não obstante, faz-se necessário buscar meios restaurativos que não visem a mera punição, mas que busquem também conceder humanização às sanções e dignidade aos envolvidos no conflito.

Nesse contexto, meios alternativos para a resolução de conflitos vêm sendo cada vez mais considerados no meio jurídico. A justiça restaurativa se apresenta como um meio complementar ao atual sistema de resolução de conflitos, possibilitando mais participação da vítima, do ofensor e da comunidade, colocando o diálogo e o respeito como preceitos fundamentais.

Por se encontrarem em fase de desenvolvimento, as crianças e adolescentes recebem tratamento diferenciado das pessoas maiores de idade, conforme a Lei nº 8.069/1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Ao cometerem atos infracionais, a esses indivíduos são aplicadas medidas socioeducativas, visando a reeducação e reinserção social dos infratores.

Pontua-se no presente estudo a justiça restaurativa, seu conceito e fundamentos, a importância frente ao sistema retributivo vigente na justiça brasileira, bem como a possibilidade de aplicação extrajudicial desse método.

Será analisada a aplicação da justiça restaurativa no âmbito dos atos infracionais cometidos por crianças e adolescentes, em especial no âmbito escolar, como forma de prevenir que esses menores venham a reincidir na prática de ilícitos, preservando, tanto quanto possível, a dignidade dos adolescentes em conflito com a lei.

Desse modo, busca-se observar a aplicação de métodos restaurativos no ambiente escolar como forma de prevenir violências sociais e auxiliar no desenvolvimento dos menores. Serão apresentados ainda exemplos de aplicação desse modelo no Brasil nas Varas da Infância e da Juventude, bem como a aplicação do instituto em ambientes extrajudiciais, demonstrando a viabilidade de projetos de inclusão em escolas.

 

2. DA PROTEÇÃO ÀS CRIANÇAS E ADOLESCENTES

 

As crianças e adolescentes são mais predispostos a serem influenciados, uma vez que a fase da adolescência é marcada por instabilidades tanto psicológicas quanto sociais. É nessa fase que ocorre a formação da personalidade do indivíduo e o desenvolvimento pessoal e social que lhes acompanhará no decorrer da vida. Por essa razão, busca-se nacional e internacionalmente a proteção especial aos adolescentes infratores, sendo eles objeto de tutela constitucional específica pelo legislador.

Em 1830 foi sancionado o Código Criminal, primeiro Código Penal Brasileiro, mencionando no art. 10, §1º que “Também não se julgarão criminosos: 1º Os menores de quatorze annos”. Em regra, não seria possível punir esses menores, mas os seus bens estavam sujeitos à satisfação do mal causado, nos termos do art. 11. No entanto, se estes tivessem cometido o crime com discernimento, deveriam ser recolhidos às casas de correção, pelo período determinado pelo juiz, desde que não excedesse a dezessete anos. Nesse sentido, Soares (2003, p. 259-260) menciona:

 

O código fixou a imputabilidade penal plena aos 14 anos de idade, estabelecendo, ainda, um sistema biopsicológico para a punição das crianças entre sete e quatorze anos. Entre sete e quatorze anos, os menores que agissem com discernimento poderiam ser considerados relativamente imputáveis, sendo passíveis de recolhimento às casas de correção, pelo tempo que o Juiz entendesse conveniente, contanto que o recolhimento não excedesse a idade de dezessete anos (...).

 

O Código de Menores, também conhecido como Código Mello Matos, Decreto nº 17.943-A, de 12 de outubro de 1927, apresentou aos menores abandonados ou deliquentes algumas medidas, a cargo da autoridade judiciária, por se encontrarem estes em situação de ausência de proteção.

Posteriormente, esse código foi substituído pelo Código de Menores (Lei nº 6.697/1979), no qual a proteção às crianças e adolescentes tinha como doutrina a situação irregular, já subentendida no Código anterior, sendo esta restrita e não universal, pois tratava somente dos menores que se enquadravam nas formas de situação irregular definidas no art. 2º do Código de Menores:

 

Art. 2º Para os efeitos deste Código, considera-se em situação irregular o menor:

I - privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de:

a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável;

b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las;

Il - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável;

III - em perigo moral, devido a:

a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes;

b) exploração em atividade contrária aos bons costumes;

IV - privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável;

V - Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária;

VI - autor de infração penal.

 

Devido às limitações da presente doutrina, Amin (2015, p. 56) preleciona não ser ela uma doutrina garantista, pois não eram definidos direitos; somente eram definidas situações e quais seriam as consequências, não se atuando na causa do problema. Tratava-se de um direito do menor, tutelando-o como objeto de proteção, e não como sujeito de direitos.

Em 1988 foi promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88), também conhecida como Constituição Cidadã por ter ampliado direitos fundamentais. O artigo 227 da CRFB/88 prevê que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, os direitos fundamentais, assim previstos no art. 5º da Constituição.

Posteriormente, em 20 de novembro de 1989 a Convenção sobre os Direitos da Criança foi adotada pela Assembléia Geral da ONU e ratificada no Brasil em 24 de setembro de 1990, entrando em vigor aos 23 dias do mês de outubro de 1990.

No Decreto nº 99.710/1990 (Convenção sobre os direitos da criança) foram mencionados os direitos fundamentais, também presentes na CRFB/88, bem como a proteção que o Estado deve dispensar para as crianças no tocante à adoção, proteção contra as formas de violência, dentre outros.

Em seguida foi promulgada no Brasil a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, dispondo sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), considerando, no art. 2º, que criança é a pessoa de até doze anos e adolescente é a pessoa entre doze e dezoito anos. O ECA adotou a doutrina da proteção integral [3], sendo previstos, além dos direitos e prevenções, medidas de proteção às crianças e adolescentes infratores.

Com a referida lei, rompeu-se o padrão pré-estabelecido e absorveram-se os valores insculpidos na Convenção de Direitos da Criança. Pela primeira vez as crianças e os adolescentes tornaram-se titulares de direitos fundamentais, passando-se a ter um Direito da Criança e do Adolescente em substituição ao Direito do Menor, amplo, abrangente, universal e exígivel. (AMIN, 2010,  p. 14).

Fernandes (2018, p. 21) menciona que o ECA adotou princípios de natureza penal e processual, concedendo aos menores diversas garantias, como presunção de inocência, direito de defesa por intermédio de advogado constituído, direito ao duplo grau de jurisdição, direito de conhecer plenamente a acusação que é ofertada pelo representante do Ministério Público, dentre outros.

O Estatuto prevê, no artigo 136, que o poder de fiscalização da proteção e efetivação das garantias às crianças e adolescentes será do Conselho Tutelar, possuindo suas competências elencadas no presente Estatuto.

 

 

3. A JUSTIÇA RESTAURATIVA

 

O sistema penal brasileiro busca proteger a convivência em sociedade por meio da tutela de bens jurídicos considerados essenciais. Assim, o Direito penal utiliza a justiça retributiva, tendo a pena como meio para controlar esse convívio, punindo quando e na medida necessária para manter o controle social, de modo a retribuir o mal causado pelo ofensor.

O Estado é o responsável por realizar a punição após o devido processo legal, assegurando que os direitos de outrem não sejam atingidos e fiquem sem reparação, evitando que seja realizada justiça com as próprias mãos. No entanto, o sistema ora mencionado não tem atendido às expectativas, uma vez que este visa tão somente encontrar o culpado e puni-lo, fato que tem gerado superlotação nas cadeias e reincidência dos detentos.

Nucci (2016, p. 78) menciona que o sistema retributivo volta-se à punição do criminoso, como se outros valores não existissem. Porém, com a evolução de ideias e a aproximação do Direito Penal dos direitos e garantias fundamentais, o sistema de normas penais e processuais tem se preocupado não somente com a punição, mas também com a proteção do indivíduo de eventuais abusos por parte do estado.

 Dessa forma, a justiça restaurativa tem se instalado no sistema brasileiro visando a mudança do enfoque mencionado, dando visibilidade a outros meios na resolução de conflitos, tais como a conciliação, transação e mediação, relativizando os interesses, transformando-se de coletivos em individuais com vistas à restauração da paz social.

Zehr (2012, p. 53) pontua que o conceito e a filosofia da justiça restaurativa surgiram durante as décadas de 70 e 80 nos Estados Unidos e no Canadá, juntamente com o Programa de Reconciliação Vítima-Ofensor (Victim Offender Reconciliation Program- VORP).

O manual Restorative justice: a vision for healing and change, de Susan Sharpe, apresentou o objetivo dos programas de justiça restaurativa, quais sejam: colocar as decisões-chave nas mãos daqueles que foram mais afetados pelo crime; fazer da justiça um processo mais curativo e, idealmente, mais transformador, e reduzir a probabilidade de futuras ofensas. (SHARPE apud ZEHR, 2012, p. 49).

Pinto apud Nucci (2016, p. 78-79) compara a justiça retributiva com a restaurativa da seguinte forma:

 

Justiça Retributiva

Justiça Restaurativa

O crime é ato contra a sociedade, representada pelo Estado

O crime é ato contra a comunidade, contra a vítima e contra o próprio autor

O interesse na punição é público

O interesse em punir ou reparar é das pessoas envolvidas no caso

A responsabilidade do agente é individual

Há responsabilidade social pelo ocorrido

Há o uso estritamente dogmático do Direito Penal

Predomina o uso alternativo e crítico do Direito Penal

Utiliza-se de procedimentos formais e rígidos

Existem procedimentos informais e flexíveis

Predomina a indisponibilidade da ação penal

Predomina a disponibilidade da ação penal

A concentração do foco punitivo volta-se ao infrator

Há uma concentração de foco conciliador

Há o predomínio de penas privativas de liberdade

Existe o predomínio da reparação do dano causado ou da prestação de serviços comunitários

Existem penas cruéis e humilhantes

As penas são proporcionais e humanizadas

Consagra-se a pouca assistência à vítima

O foco de assistência é voltado à vítima

A comunicação do infrator é feita somente por meio do advogado

Comunicação do infrator pode ser feita diretamente ao Estado ou à vítima.

 

Nucci (2016, p. 79) entende que a justiça restaurativa pode ser um ideal válido para o Direito Penal Brasileiro, pois há crimes que devem ser voltados mais à retribuição, enquanto que outros admitem a possibilidade de pensar-se primeiramente na restauração. No entanto, não se deve pensar em migrar completamente para o sistema restaurativo, pois nenhum dos dois sistemas deve ser absoluto, ou seja, precisam ser considerados conjuntamente.

O art. 2º da Resolução nº 225, de 31 de maio de 2016, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), dispõe sobre a Política Nacional de justiça restaurativa no âmbito do Poder Judiciário:

 

Art. 2º São princípios que orientam a Justiça Restaurativa: a corresponsabilidade, a reparação dos danos, o atendimento às necessidades de todos os envolvidos, a informalidade, a voluntariedade, a imparcialidade, a participação, o empoderamento, a consensualidade, a confidencialidade, a celeridade e a urbanidade.

§ 1º Para que o conflito seja trabalhado no âmbito da Justiça Restaurativa, é necessário que as partes reconheçam, ainda que em ambiente confidencial incomunicável com a instrução penal, como verdadeiros os fatos essenciais, sem que isso implique admissão de culpa em eventual retorno do conflito ao processo judicial.

§ 2º É condição fundamental para que ocorra a prática restaurativa, o prévio consentimento, livre e espontâneo, de todos os seus participantes, assegurada a retratação a qualquer tempo, até a homologação do procedimento restaurativo.

§ 3º Os participantes devem ser informados sobre o procedimento e sobre as possíveis consequências de sua participação, bem como do seu direito de solicitar orientação jurídica em qualquer estágio do procedimento.

§ 4º Todos os participantes deverão ser tratados de forma justa e digna, sendo assegurado o mútuo respeito entre as partes, as quais serão auxiliadas a construir, a partir da reflexão e da assunção de responsabilidades, uma solução cabível e eficaz visando sempre o futuro.

§ 5º O acordo decorrente do procedimento restaurativo deve ser formulado a partir da livre atuação e expressão da vontade de todos os participantes, e os seus termos, aceitos voluntariamente, conterão obrigações razoáveis e proporcionais, que respeitem a dignidade de todos os envolvidos.

 

Assim, a justiça restaurativa exige consentimento da vítima e do menor infrator, devendo esta indagação ser feita primeiramente ao ofensor. Segundo Bremm (2015, p. 6), por experiência dos facilitadores, caso fosse questionada primeiramente a vítima sobre o interesse de participar do processo restaurativo, obtendo desta aceitação, e, posteriormente, fosse questionado o ofensor e este negasse, o ofendido poderia se sentir revitimizado. Desse modo, somente após o ofensor concordar com a composição, seria solicitado ao Juízo a suspensão do procedimento para realizar a composição, sendo possível ainda a retratação antes da homologação do procedimento restaurativo.

Logo após, inicia-se o processo restaurativo. Primeiramente é realizado o pré-círculo, consistente em apresentar aos envolvidos como estes foram afetados pela situação. Em seguida, é realizado o círculo restaturativo, onde se tenta construir juntamente com os envolvidos, e com auxilio dos facilitadores restaurativos, um acordo de reparação dos danos causados. Caso seja realizado o acordo, em data posterior é promovido o pós-círculo, a fim de confirmar se a composição realizada no círculo foi exitosa. (BREM, 2015, p. 7).

Além da presença do ofensor e da vítima, a Resolução nº 225/2016 do CNJ, a ser observada pelos Tribunais ao realizarem projetos de justiça restaurativa, preleciona que é necessária também a participação das suas famílias e dos demais envolvidos no fato danoso, bem como a presença dos representantes da comunidade direta ou indiretamente atingidos pelo fato, e de um ou mais facilitadores restaurativos.

 

3.1 Howard Zehr e  a Justiça Restaurativa

 

Zehr é reconhecido mundialmente como um dos pioneiros da justiça restaurativa. No livro Lentes restaurativas, o autor menciona que o processo penal se utiliza da lente retributiva, em que o processo negligencia as vítimas e fracassa na coibição ao crime e responsabilização do ofensor. Nesse sentido, para encontrar soluções, deve-se buscar formas alternativas. Zehr, citando o professor Kay Harris, especialista em sentenciamento, preleciona que se trata de adotar valores diferentes, e não tecnologias de punição diferentes. (ZEHR, 2008, p. 8).

Duas lentes poderiam ser descritas. A primeira, retributiva, tem como foco as dimensões sociais, ou seja, a comunidade, definindo o Estado como vítima, sendo irrelevante a relação entre a verdadeira vítima e o ofensor. Por sua vez, na lente restaurativa, as ofensas são definidas como danos pessoais, de modo que o crime é violação das pessoas e dos relacionamentos. Zehr entende que o primeiro objetivo da justiça deveria ser a reparação e cura para a vítima, e, logo após, a reconciliação entre vítima e ofensor. (ZEHR, 2008, p. 12-13).

Nesse viés, Zehr menciona:

 

O primeiro passo na justiça restaurativa é atender às necessidades imediatas, especialmente as da vítima. Depois disso a justiça restaurativa deveria buscar identificar necessidades e obrigações mais amplas. Para tanto o processo deverá, na medida do possível, colocar o poder e a responsabilidade nas mãos dos diretamente envolvidos: a vítima e o ofensor. Deve haver espaço também para o envolvimento da comunidade. Em segundo lugar, ela deve tratar do relacionamento vítima-ofensor facilitando sua interação e a troca de informações sobre o acontecido, sobre cada um dos envolvidos e sobre suas necessidades. Em terceiro lugar, ela deve se concentrar na resolução dos problemas, tratando não apenas das necessidades presentes, mas das intenções futuras. (ZEHR, p. 24).

 

Assim, Zehr (2012, p. 34-36) conclui que a justiça restaurativa se ergue sobre três pilares ou conceitos centrais: danos e necessidades (o objetivo é oferecer reparação a todos os envolvidos), engajamento ou participação (de quem tem interesse no caso e na solução – vítima, ofensor e comunidade-, os quais precisam receber informações uns sobre os outros e se envolver na decisão) e obrigações (o ofensor deve entender as consequências do seu comportamento e corrigir a situação).

Zehr (2012, p. 48) menciona ainda haver um único valor básico e de suprema importância, o respeito:

 

Entretanto, no final das contas, um único valor básico é de suprema importância: o respeito. Se me fosse pedido para resumir a Justiça Restaurativa em uma palavra, escolheria “respeito” – respeito por todos, mesmo por aquelles que são diferentes de nós, mesmo por aqueles que parecem ser nossos inimigos. O respeito nos remete à nossa interconexão, mas também a nossas diferenças. O respeito exige que tenhamos uma preocupação equilibrada com todas as partes envolvidas. (...) Quando não respeitamos os outros, não há Justiça Restaurativa, mesmo se adotarmos fielmente os seus princípios.

 

Por fim, a verdadeira justiça nasce do diálogo e considera as necessidades e tradições locais, não havendo justiça enquanto o foco permanecer exclusivamente da forma como tem ocorrido no sistema judicial atual, observando somente que leis foram infringidas, o seu causador e o que este merece em troca. (ZEHR, 2012, p. 76).

 

4. A APLICAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NO ÂMBITO ESCOLAR

 

As infrações entre crianças e adolescentes têm aumentado consideravelmente no Brasil, respondendo os seus autores por medidas socioeducativas, de caráter pedagógico-protetivo, e buscando a prevenção e a reparação do cometimento de atos infracionais pelas crianças e adolescentes.

Por ato infracional entende-se a conduta descrita como crime ou contravenção penal, praticado por menores de 18 anos, não havendo diferenciação entre ambos, sendo todas as condutas praticadas por menores consideradas como ato infracional, nos termos do art. 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

As medidas socioeducativas são utilizadas para reeducar e ressocializar os infratores na sociedade. Assim, as crianças e adolescentes respondem pelas infrações nos termos do art. 112 do ECA,  prevendo-se a aplicação das seguintes medidas: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, inserção em regime de semi-liberdade e internação em estabelecimento educacional.

No artigo ora mencionado encontra-se ainda a previsão de aplicação das medidas previstas no art. 101, I a VI, quais sejam: encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade, orientação, apoio e acompanhamento temporários, matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental, inclusão em serviços e programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio e promoção da família, da criança e do adolescente, requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial e inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos.

Visando dar maior efetividade e concretizar a proteção dirigida às crianças e adolescentes, foi aprovada a Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012, instituindo o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) e regulamentando a execução das medidas socioeducativas.

Ainda que existam regulamentações acerca do tratamento diferenciado destinado às crianças e adolescentes, é importante reforçar que estes menores estão em fase de formação da personalidade e desenvolvimento, sendo influenciados diariamente pelo seio familiar, ambiente escolar, locais em que convivem, e pela sociedade. Por essa razão, é necessário procurar novas maneiras de auxiliar na reinserção social desses infratores, de modo que não sejam ocasionados traumas, bem como seja possível compreender os seus atos e as consequências.

No âmbito judicial, Tiveron (2014, p. 379) menciona que “em que pese não terem sido projetadas para funcionarem como penas em si mesmas (mas supostamente com o cunho educativo), é inegável que as sanções impostas aos adolescentes carregam o componente retributivo, em nítido desvirtuamento da proposta original”.

No mesmo sentido, Melo apud Tiveron (2014, p. 380) pontua que a resposta restaurativa se apresenta de forma intermediária, uma vez que seus objetivos são semelhantes à finalidade das medidas socioeducativas (mal interpretadas), pois preserva os vínculos familiares e comunitários, empodera as partes para sua emancipação, possibilitando, ainda, outros benefícios.

Nesse diapasão, a justiça restaurativa apresenta-se como a maneira adequada para auxiliar na execução das medidas socioeducativas, tornando-as mais adequadas para as crianças e adolescentes, pois o artigo 126 do ECA prevê a possibilidade de exclusão, extinção ou suspensão da apuração do ato infracional, mediante a imposição de medidas socioeducativas ou outras condições que se revelem apropriadas àquele conflito ou que melhor atendam às partes envolvidas. (TIVERON, 2014, p. 380).

No Brasil, foram implantadas práticas restaurativas para auxiliar na aplicação das medidas socioeducativas em poucos estados. No Rio Grande do Sul, o Conselho da Magistratura editou a Resolução nº 822/2010, que “declara a existência da central de práticas restaurativas junto ao Juizado da Infância e Juventude da comarca de Porto Alegre, estabelecendo indicadores para o monitoramento do trabalho desenvolvido”. No entanto, 5 anos antes da resolução, o programa restaurativo já estava sendo executado em caráter experimental.

Milazzo (2013, p. 132-133) menciona que a Central de Práticas Restaurativas atua a favor da inserção social, do ingresso no trabalho e acompanha o rendimento escolar dos adolescentes que participam do projeto. Além disso, são realizados círculos de compromisso envolvendo os infratores, a família e a comunidade de apoio.

Na Vila Cruzeiro, bairro carente e considerado um dos mais violentos de Porto Alegre, estão sendo utilizadas formas alternativas de solucionar os conflitos da comunidade, destacando-se o âmbito escolar. (MILAZZO, 2013, p. 133).

No Centro Judiciário de Solução de Conflitos (Cejusc) de Ponta Grossa- Paraná, aos menores infratores estava sendo oportunizado participar de oficinas de Filosofia, em reflexão aos atos infracionais que praticaram e o mundo do crime. Há também círculos restaurativos envolvendo os famílias dos menores, a vítima, o agressor e a sociedade, não se restringindo a justiça restaurativa aos processos judiciais, e adotando uma visão transdisciplinar desse método, abrangendo outras áreas, como Psicologia, Letras e Filosofia (CNJ, 2015, online).

Ainda que os métodos restaurativos estejam sendo aplicados no Judiciário de alguns estados, também podem ter cunho extrajudicial, agindo de modo preventivo. Dessa forma, diante das escolas e ambientes frequentados pelos adolescentes, mostra-se plenamente possível e adequada a aplicação desses métodos para resolver conflitos. Dentre as medidas apresentadas no art. 101, I a VI, essas são direcionadas aos familiares, com a obrigatoriedade de frequentar a escola, devido à importância que essa possui no desenvolvimento do menor.

Conforme o Governo Municipal de Guapiaçi, na Vara da Infância e Juventude de São José do Rio Preto (São Paulo), em 2016 foram registrados cerca de 40 casos de violência escolar nos municípios. Assim, foi implantado o projeto Mediação Escola e Justiça Restaurativa, incluindo técnicas para auxiliar na prevenção e resolução de conflitos no ambiente escolar através de trabalhos que desenvolvam o diálogo, a reflexão e a responsabilidade. (GUAPIAÇU, 2016, online).

As famílias são as primeiras educadoras dos jovens e a escola é o segundo lugar em que os menores aprendem sobre os valores e o convívio em sociedade. Algumas vezes os problemas familiares acabam refletindo nas relações na escola, ocasionando maus comportamentos e indisciplinas. Por essa razão, a escola é um ambiente em que é possível prevenir a violência e auxiliar no comportamento dos adolescentes.

A violência decorre de diversos fatores, destacando-se problemas sociais, familiares e estatais, conforme elencado no art. 98 do ECA, a saber:

 

Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:

I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;

II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;

III - em razão de sua conduta.

 

Assim, a escola deve agir de forma preventiva, envolvendo os educadores, alunos, pais e a sociedade na inclusão desse jovem na sociedade. Ao utilizar os métodos restaurativos desde os primeiros conflitos e situações de violência pelos quais as crianças passam, seria possível reduzir ações judiciais. Nesta ótica, a escola poderia resolver conflitos dentro do próprio ambiente, gerando menos danos à sociedade e ao menor, de forma a possibilitar ao adolescente entender a responsabilidade dos seus atos de forma menos prejudicial ao seu desenvolvimento psicológico e social.

 

 

5. CONCLUSÃO

 

O Código do menor e o Código Mello Matos não apresentavam diferenças quanto a crianças e adolescentes, apenas algumas medidas a serem tomadas para determinado grupos, não estando previstas formas preventivas; do contrário, meras consequências dos atos de determinado grupo. Somente após o Estatuto da Criança e do Adolescente, tendo como base os art. 227 e 5º da CRFB/88, vigorou a doutrina da proteção integral, sendo previstos direitos, prevenções e proteção às crianças e adolescentes.

Ainda que as medidas socioeducativas sejam mais brandas, percebeu-se a importância de buscar formas restaurativas de resolução de conflitos. Nesse viés, a justiça restaurativa tem se mostrado maneira viável de, juntamente com o sistema retributivo que vigora atualmente, solucionar materialmente os conflitos, utilizando-se do diálogo e do relacionamento entre a vítima, o ofensor, a comunidade e os facilitadores, atingindo pontos não alcançados quando da aplicação exclusiva do sistema retributivo.

Por fim, foi possível analisar as medidas socioeducativas e a aplicação desse método restaurativo em alguns estados do Brasil, o que evidencia as vantagens apresentadas pelo instituto. Ademais, percebeu-se a necessidade de implantação e fortalecimento de projetos que estimulem o diálogo entre as partes e acordos, reduzindo a visão da punição e reconhecendo que os adolescentes estão em momento de formação, ou seja, é mais visualizável a não reincidência tendo em vista o potencial da medida para o desenvolvimento da personalidade.

Ao falar-se em justiça restaurativa, atualmente esta é associada ao Judiciário; porém, é plenamente possível a expansão desta para outros grupos sociais, como a escola. Adotar esse método para a resolução de conflitos ocorridos no âmbito escolar é uma forma de prevenir que problemas mais graves envolvendo menores ocorram, pois a escola atua como uma extensão ao aprendizado repassado pela família, buscando-se o respeito mútuo e o convívio mais sadio em sociedade.

 

 

REFERÊNCIAS

 

AMIN, Andrea Rodrigues. Doutrina da proteção integral. In: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

 

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em 16 out. de 2019.

 

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 15 de out. de 2019.

 

BRASIL. Lei de 16 de dezembro de 1830. Manda executar o Codigo Criminal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM-16-12-1830.htm>. Acesso em: 13 nov. 2019.

 

BRASIL. Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979. Institui o Código de Menores. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/L6697.htm>. Acesso em: 15 de out. de 2019.

 

BRASIL. Decreto nº 17.943-A, de 12 de outubro de 1927. Consolida as leis de assistência e proteção a menores. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1910-1929/D17943A.htm>. Acesso em: 15 de out. de 2019.

 

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BRASIL. Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional; e altera as Leis nºs 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente); 7.560, de 19 de dezembro de 1986, 7.998, de 11 de janeiro de 1990, 5.537, de 21 de novembro de 1968, 8.315, de 23 de dezembro de 1991, 8.706, de 14 de setembro de 1993, os Decretos-Leis nºs 4.048, de 22 de janeiro de 1942, 8.621, de 10 de janeiro de 1946, e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12594.htm>. Acesso em: 03 nov. de 2019.

 

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[1] Pós graduada em Educação, Sociedade e Violência. Pós graduanda em Direito Civil e Processo Civil. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Tocantins. E-mail: [email protected].

[2] Doutor e Mestre em Direito pela UFBA. Professor Adjunto de Direito da Unitins. Professor Associado de Direito da UFT. Professor do Mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos da UFT/ESMAT. Membro do Comitê Internacional de Penalistas Francófonos e da Associação Internacional de Direito Penal. E-mail: [email protected].

[3] De Paula apud Ishida (2009, p. 7) entende por proteção integral o sistema em que as crianças e adolescentes figuram como titulares de interesses subordinantes frente à família, à sociedade e ao Estado; ou seja, é a imposição de obrigações aos mesmos entes, colocando a criança e o adolescente como sujeitos ativos das relações jurídicas.

 


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