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BREVE ENSAIO SOBRE A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA FALÊNCIA

BREVE ENSAIO SOBRE A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA FALÊNCIA

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trata do art. 82-A, que dispõe sobre desconsideração da personalidade jurídica na falência.

A reforma introduzida no microssistema da insolência, ocorrida via Lei 14.112/2020, apresenta alguns dispositivos deveras importantes; outros, nem sequer deveriam constar do texto legal, por totalmente despiciendos.

Um exemplo está no art. 82-A[1], ao dispor que é vedada a extensão da falência e seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida.

Ora, não se tem lembrança de que sócio participante de sociedade limitada poderia ser considerado juridicamente “falido” para todos os fins, estando estampado de forma expressa no Código Civil (art. 1052) que sua responsabilidade é restrita ao valor de suas quotas sociais[2] [3]; de igual forma, a de acionista se restringe ao preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas (Lei 6.404/75, art. 1º).  Além da disposição legal, dificilmente alguém, em sã consciência, participaria de sociedade empresária ciente de que, em caso de abertura de falência da entidade - mesmo que o participante tivesse cumprido rigorosamente suas obrigações legais e contratuais -, os efeitos jurídicos poderiam ser estendidos à sua pessoa. Há, em resumo, por força das leis civis, delimitação expressa de responsabilidade de participante da sociedade empresária, responsabilidade essa que não passa pela eventual extensão da falência de sócio ou acionista[4].

                 Realmente, difícil imaginar uma pessoa física ser considerada juridicamente falida[5] [6], de modo que dispensável o dispositivo legal, ante o óbvio ululante de que, via de regra, no sistema jurídico nacional descabe a falência de pessoa física, via de regra.

Nessa esteira, quanto aos controladores e administradores de sociedade falida, também não se vê o porquê de a lei ser expressa no sentido de que inexiste extensão da falência ou de seus efeitos a tais pessoas. Ora, no que diz com os administradores, as responsabilidades estão expressas na lei civil[7]; no tocante aos controladores, suas responsabilidades estão expressas no art. 117 da Lei 6.404/76, por exemplo.  Em resumo, a responsabilidade de sócio, controlador e administrador de sociedade falida será apurada perante o Juízo Falimentar, por força do art. 82 da Lei 11.101/05. Este dispositivo já é expresso, de modo que não há razão de incluir o art. 82-A. A lei já contém enunciado no sentido de que, no máximo, haverá responsabilização, mas não falência dessas pessoas.

No que se refere à desconsideração da personalidade jurídica, não cabe gastar tinta a respeito de relevante instituto, porquanto há muita doutrina abalizada que trata do tema. Destaque-se, na linha do que se sustenta há anos, que a abertura judicial da falência, necessariamente não implica a desconsideração da personalidade jurídica para fins de direta responsabilização de sócio ou acionista. Com efeito, há muitas petições nos mais variados foros requerendo a aplicação da Doutrina, discorrendo em várias laudas sobre a retirada do véu da personificação jurídica, mas não esclarecem o que de fato sócio ou acionista praticaram, com efeitos deletérios ao consumidor[8] [9]. Insista-se, pois, que a falência[10] não implica necessariamente na desconsideração da personalidade jurídica e responsabilização pessoal de sócio/acionista. Em tempos de crise sanitária mundial, óbvio ululante, não foram poucas as entidades brasileiras que encerraram suas atividades e/ou faliram, retirando-se do mercado competitivo. Esse ato [saída espontânea ou falência], necessariamente, não implica em infração de lei, violação de contrato social ou mesmo abuso de direito, por parte dos titulares da entidade.

A interpretação hermenêutico-teleológica que mais se coaduna à realidade, salvo melhor entendimento, em relação ao caput do art. 82-A, é no sentido de que: não cabe extensão da falência ou de seus jurídicos efeitos aos componentes da entidade, via de regra; a desconsideração da personalidade jurídica pode ocorrer, observado o regramento processual civil aplicável à espécie[11]. No tocante ao parágrafo único de tal dispositivo, a desconsideração da personalidade jurídica, caso de fato ocorra, somente acarretará a responsabilização pessoal de terceiros sem, contudo, extensão da falência ou de seus efeitos jurídicos a tais pessoas.

Há um precedente deveras importante da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP, com voto condutor do Des. Grava Brasil:

Agravo de Instrumento – Falência – Decisão que julgou procedente incidente de desconsideração da personalidade jurídica, para responsabilizar as agravantes, sócia direta (pessoa jurídica) e indiretas (pessoas físicas), pelas dívidas da sociedade falida, em toda a sua extensão, com a integralidade de seus patrimônios – Inconformismo – Acolhimento – Sociedade falida constituída sob a forma de sociedade anônima e, anteriormente, sociedade limitada – Desconsideração da personalidade jurídica que não se confunde com extensão dos efeitos da falência (art. 81, da Lei n. 11.101/05), nem com a ação autônoma de responsabilidade, pelo procedimento comum, prevista no art. 82, da Lei n. 11.101/05 – Desconsideração da personalidade jurídica para responsabilizar sócio ou administrador da sociedade falida por obrigações desta que exige prova do preenchimento dos requisitos do art. 50, do CC, e do benefício econômico, direto ou indireto, experimentado por tal sócio ou administrador, como consequência da confusão patrimonial ou do desvio de finalidade perpetrados com o propósito de fraudar credores – Doutrina e jurisprudência do STJ –Eventual responsabilização pela via do incidente de desconsideração da personalidade jurídica que se limita ao benefício comprovadamente experimentado pelo sócio ou administrador em questão – Administradora judicial, que ajuizou o incidente e a quem incumbe, portanto, comprovar a presença daqueles requisitos, que não comprovou o benefício direto ou indireto experimentado pelas agravantes como decorrência da confusão patrimonial e do desvio de finalidade apurados nos autos da recuperação judicial e da falência – Consequente improcedência do incidente, com levantamento da medida cautelar de indisponibilidade dos bens das agravantes anteriormente decretada – Decisão agravada reformada – Recurso provido[12]

Portanto, referido acórdão é paradigma, bem demonstrando a diferenciação entre os institutos, sendo certo que extensão da falência ou de seus efeitos pode, em tese, ocorrer, apenas em relação a sócios de responsabilidade ilimitada; a desconsideração da personalidade jurídica há de ser processada em incidente próprio e implicará, eventualmente, em responsabilização de sócio de responsabilidade limitada; no incidente, inexiste, via de regra, abertura judicial da falência de sócio, a não ser que seja de responsabilidade ilimitada.

 

 

 


[1] Art. 82-A. É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida, admitida, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica. O dispositivo legal trata de questões díspares, quais sejam, responsabilidade pessoa de sócio/acionista, extensão da falência e de seus efeitos jurídicos a participantes da entidade empresária e, por fim, a desconsideração da personalidade jurídica.  

[2] Também não se olvida que poderá responder de forma solidária pela integralização do capital social (ver Cód. Civil, arts 990, 1058; Decreto 3708/1919, arts. 2º e 9º).

[3] Nessa esteira, os sócios ou acionistas não respondem pelas obrigações sociais; a responsabilidade é limitada ao valor de suas quotas ou ações.

[4] Aqui não se está discorrendo acerca de sócio com responsabilidade ilimitada (sociedade em nome coletivo, por exemplo). A respeito, art. 81 da Lei 11.101/05.

[5] Ainda em vigor o CPC de 1973 (art. 748 e seguintes [CPC atual, art. 1052]), no que diz com a insolvência civil, mas essa questão não está relacionada ao que aqui se pondera, que trata da extensão dos efeitos jurídicos da falência.

[6] Evidente que administradores judiciais, na busca de ativos, considerando que estes inexistem no âmbito da falência, se poderiam aventurar em requerer a extensão da falência ou de seus efeitos jurídicos a sócios ou acionistas, antes de vigência do art. 82-A. De fato, tal proceder ocorria. Caso tal pleito fosse deferido, o que se admite apenas em tese, o agravo de instrumento seria remédio adequado. Certamente o tribunal afastaria a decisão, a fim de não considerar “falido” a pessoa do sócio/acionista. Antes da Lei 14.112/2020 também era muito comum o síndico ou administrador judicial pedir a extensão da falência e seus efeitos no âmbito da própria principal, à vista de regramento próprio a respeito.  

[7] V.g., arts.1016, 1017.

[8] Não raro, os escritos são falhos quanto a indispensável inferência que deve ocorrer no âmbito do discurso jurídico - relação premissa-conclusão entre ideias – não é verificada em muitos casos. Assim, a inexistência de raciocínio lógico e linear, calcado em argumentação jurídica válida, sólida e consistente, pode levar ao indeferimento do pleito, manejado em incidente próprio, observado o devido processo legal substantivo. Há de se distinguir entre raciocínio dialético [premissas plausíveis, persuasão, convencimento do auditório] e o raciocínio analítico [premissas verdadeiras]. Sobre o tema específico, confiram-se: Aristóteles, Retórica. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012; PERELMAN, Chaïm, Retóricas. São Paulo: Martins Fontes, 1999; PERELMAN, Chaïm, Lógica jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2004; LUHMANN, Niklas, O direito da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2016, especialmente p. 450; ADEODATO, João M. Ética & Retórica. Para uma teoria da dogmática jurídica. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010; FERRAZ JR. Tércio S. Argumentação jurídica. 2ª edição. São Paulo: Manole, 2016.

[9] Eros Roberto Grau pondera: Em outra ocasião, sintetizando a exposição de Gadamer, um de nós observou que aquele que tenta compreender está exposto aos erros de opiniões prévias, de preconceitos que marcam seu perfil existencial. A compreensão apenas alcança suas possibilidades plenas quando as opiniões prévias com as quais ela se inicia não são arbitrárias. Por isso é importante que o intérprete não se dirija aos textos diretamente desde as opiniões prévias que em si subjazem, porém examine tais opiniões no que respeita a sua legitimação, isto é, quanto a sua origem e validade. GRAU, Eros R.; FORGIONI, Paula. O Estado, a empresa e o contrato. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 313.

[10] Lei 8.078/90, art. 28.

[11] Aliás, Newton De Lucca e Renata Mota Maciel Dezem entendem que a desconsideração da personalidade, a extensão dos efeitos da falência e a responsabilidade de sócios não podem ser tratados da mesma forma. O que é mais grave, a aplicação dos requisitos da desconsideração da personalidade jurídica, sem o cuidado com o texto da insolvência, pode ser ainda mais prejudicial aos credoresO Moderno Direito Empresarial do século XXI (Estudos em homenagem ao Centenário do Professor Rubens Requião). FACHIN, Edson; ABRÃO, Carlos H.; REQUIÃO, Rubens E. (coords.). Rio de Janeiro: GZ Editora, 2018, p. 285.

[12] Agravo de Instrumento n. 2078990-10.2019.8.26.0000,  julg. 10/09/2019.


Autor

  • Carlos Roberto Claro

    Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

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