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Uma lei estadual afrontosa

10/02/2021 às 13:36
Leia nesta página:

O artigo discute sobre a inconstitucionalidade de lei estadual de Roraima que libera o uso de garimpo com o uso de mercúrio.

1. O FATO

O governador Antonio Denarium sancionou uma lei que libera o garimpo no estado de Roraima - e com o uso de mercúrio.

A lei libera o garimpo e o uso de escavadeiras para extrair o ouro, e de mercúrio, substância altamente poluente que garimpeiros empregam para separar o metal de dejetos.

46% do território de Roraima são de terra indígena e 150 quilômetros de faixa de fronteira com a Venezuela e com a Guiana. E grande parte das jazidas encontra-se dentro de terra indígena e faixa de fronteira”.


2. A COMPETÊNCIA EXPRESSA DA UNIÃO FEDERAL PARA TRATAR DO TEMA

A lei é flagrantemente inconstitucional e ainda, de forma censurável, libera o uso de mercúrio para a exploração mineral colocando em risco o meio ambiente.

O artigo 20, inciso IX, da Constituição Federal, traz à baila que entre os bens da União encontram-se “os recursos minerais, inclusive os do subsolo.

Somando-se, o Art. 22, inciso XII, também da Carta Magna, expõe que “compete privativamente à União legislar sobre jazidas, minas, outros recursos minerais e metalurgia”. Ou seja, apesar da competência concorrente para legislar sobre meio ambiente, especificamente sobre recursos minerais, a União conta com competência privativa.

A disposição expressa do Artigo 176, do mesmo regramento, vem corroborar: “As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra”.

Ainda neste artigo, o § 1º apresenta imprescindível redação ao prescrever que o exercício da atividade minerária exige autorização ou concessão da União, relativamente a cada caso.

Em síntese, quanto à forma(ou o processo de sua distribuição), a competência poderá ser enumerada ou expressa, quando estabelecida de modo explícito, direto, pela Constituição para determinada entidade, como quer aquele artigo 22 da Constituição trazido à colação.

Na legislação infraconstitucional também são encontradas disposições que ratificam todo o exposto, como se denota do artigo 1º, do Decreto-Lei n. 227/67 (Código Minerário), que dispõe competir “à União administrar os recursos minerais, a indústria de produção mineral e a distribuição, o comércio e o consumo de produtos minerais.”.

Sendo assim cabe apenas à União Federal legislar sobre tal matéria envolvendo exploração de minerais.


3. OS PERIGOS DO MERCÚRIO

O mercúrio metálico é metal pesado, massa atômica relativa 200-59, número de oxidação 1,2, que, no estado elementar apresenta propriedade de bioacumulação.

O mercúrio é um metal pesado que, sob condições normais, é encontrado em baixas concentrações no ambiente, sendo naturalmente liberado devido a processos erosivos e erupções vulcânicas.

A contaminação ambiental por mercúrio é, portanto, resultado de ações antrópicas, ou seja, de ações humanas que envolvem este elemento. As principais fontes antropogênicas de mercúrio são:

  • Queima de carvão, petróleo e madeira: o processo emite, na atmosfera, o mercúrio contido nesses materiais;

  • Fabricação de produtos que utilizam o mercúrio como matéria-prima, como termômetros e lâmpadas fluorescentes;

  • Descarte inadequado do mercúrio após sua utilização em processos industriais, como produção de cloro-soda;

  • Descarte incorreto de produtos eletroeletrônicos contendo mercúrio;

  • Mineração do ouro, na qual o mercúrio é usado para facilitar o processo de separação de partículas.

Em matéria de política mineral e outorga de Direito Minerário, não há espaço para outra unidade federativa, a União Federal, legislar sobre a matéria.

Daniela Souza de Oliveira e outros(Impactos do mercúrio no meio ambiente e na saúde) expõem que:

“A toxicidade do mercúrio varia nos seus diferentes compostos. A forma orgânica é extremamente tóxica, não apenas para o ser humano, mas para toda a biota. Devido ao radical orgânico, este composto pode entrar rapidamente na corrente sanguínea, causando danos irreparáveis ao sistema nervoso central. O metilmercúrio, por exemplo, pode ligar-se aos grupos sulfidrilas existentes nas proteínas dos seres humanos. Uma vez no organismo, ele rapidamente se converte em um complexo protéico, mantendo grande mobilidade através dos tecidos animais. Segundo os estudiosos, o mercúrio apresenta duas características que o torna único como agente tóxico e contaminante para o ambiente. Sua volatilidade, por apresentar uma espécie química estável na atmosfera, o vapor de mercúrio pode ser transformado em escala global, afetando áreas remotas longe de fontes pontuais de contaminação; e a capacidade de sofrer transformações processadas por bactérias para compostos alquilmercuriais de cadeia curta, que são lipossolúveis e muito bem absorvidos pelas membranas biológicas de praticamente todas as cadeias alimentares. A complexação com compostos orgânicos dissolvidos possibilita a manutenção de concentração relativamente elevadas na coluna d’água e acesso preferencial à biota. Segundo estudiosos, alguns ambientes e condições ambientais contribuem para aumentar os mecanismos de metilação e complexação orgânica do mercúrio levando a processos diferenciados de contaminação.”

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E concluem:

“O mercúrio e um dos metais mais tóxicos lançados na natureza por atividades humanas, acarretando perdas para o ambiente como contaminação dos peixes consumidos pela população. O mercúrio inorgânico e orgânico tem sido associados á falta de coordenação motora. Responsabilizados por causar uma série de disfunções no sistema nervoso central e sistema nervoso periférico, com sintomas variados, dentre os quais podemos assinalar: perda de memória, diminuição dos níveis de inteligência, tremores anormais, falta de coordenação motora. O meio ambiente está sofrendo degradação, é necessário uma conscientização política, econômica e cultural para o restabelecimento de um desenvolvimento sustentável entre o homem e o meio ambiente.”


4. A EXPLORAÇÃO MINERAL EM TERRAS INDÍGENAS

A determinação do governo federal de permitir a exploração mineral em terras indígenas tem potencial para afetar quase um terço das reservas no País. Prevista na Constituição de 1988, a atividade em territórios demarcados nunca foi regulamentada e é alvo de discussão no Congresso há décadas. O assunto vem sendo tratado com insistência pelo presidente Jair Bolsonaro, declaradamente favorável à mineração nessas áreas.

A Constituição Federal estabelece, no parágrafo terceiro do artigo 231, a participação das comunidades indígenas nos resultados econômicos da exploração mineral do subsolo de suas terras. Porém, restam dúvidas quanto ao melhor modo de fixar o coeficiente dessa participação, assim como as bases sobre as quais ele deve incidir.

A Constituição prevê que a mineração em territórios indígenas pode ser realizada a partir da aprovação de uma lei pelo Congresso Nacional. A Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que é lei no Brasil desde 2004, estabelece que os povos indígenas devem ser consultados em todas as etapas sobre eventual projeto de mineração “a fim de se determinar se os interesses desses povos seriam prejudicados, e em que medida, antes de se empreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes em suas terras”.

Dir-se-á, ab initio, que o artigo 15 da Convenção da OIT 169 assim acentua:

“Em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos minérios ou dos recursos do subsolo, ou de ter direitos sobre outros recursos, existentes na terras, os governos deverão estabelecer ou manter procedimentos com vistas a consultar os povos interessados, a fim de se determinar se os interesses desses povos seriam prejudicados, e em que medida, antes de se empreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras. Os povos interessados deverão participar sempre que for possível dos benefícios que essas atividades produzam, e receber indenização equitativa por qualquer dano que possam sofrer como resultado dessas atividades.”

Sabe-se que aqui reside um tema deveras controvertido, porque interesses econômicos gravitam em torno dele. Mas isso depende de norma expressa. Trata-se de norma constitucional de eficácia contida.

A questão da mineração em terras indígenas é algo extremamente sensível, como se disse.

Por essa razão o diploma normativo deve vir por lei material e formal, originada pelo Parlamento. Por outro lado, não cabe a edição de medida provisória. A Lei que se fala é uma Lei Complementar, que terá de ter o quorum especial previsto na Constituição. Não será, por isso, cabível falar-se em medida provisória emanada da presidência da República, pois que se está diante de uma reserva de Parlamento.

Na matéria há disposição no artigo 231, § 3º, da Constituição, que dispõe que o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só pode ser efetivado com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades indígenas afetadas, ficando-lhe assegurado participação nos resultados na lavra, na forma da lei. Ao Congresso Nacional se imputou o julgamento de cada situação concreta, para sopesar os direitos e interesses dos índios e a necessidade da prática daquelas atividades reconhecido que o princípio é da prevalência dos interesses indígenas, pois a execução de tais atividades, assim como a autorização do Congresso Nacional, só pode ocorrer nas condições específicas estabelecidas em lei (artigo 176, parágrafo primeiro); nem mesmo se admite a atividade garimpeira, em cooperação ou não mencionada no artigo 174, §§ 4º, salvo, evidentemente, a atividade garimpeira dos próprios índios, que tenham a posse legal da terra.


5. PROVIDÊNCIAS A TOMAR

Concluo por dizer que essa nefanda experiência vinda de Roraima dever ser objeto, com urgência devida, de ação direta de inconstitucionalidade no sentido de fazer cessar o ilícito ali cometido, seja à Constituição, seja ao meio ambiente e aos direitos indígenas.

Independente disso, há direitos difusos a serem defendidos. Será o caso de ajuizamento de ações civis públicas dentro de tutelas inibitórias e ressarcitórias para tanto exercidas.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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