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As opções políticas do Estatuto de Roma e seu impacto em relação ao regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais no Brasil

As opções políticas do Estatuto de Roma e seu impacto em relação ao regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais no Brasil

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A criação do Tribunal Penal Internacional atendeu à necessidade histórica da sociedade internacional relativa à existência de um tribunal com competência para o julgamento de graves crimes contra os direitos humanos.

Sumário: 1.O Estatuto de Roma e o Tribunal Penal Internacional; 2.Alguns argumentos jurídicos e metajurídicos favoráveis à estrita observância do Estatuto de Roma. 3.O instituto da "entrega" e a extradição de nacionais;4.A pena de prisão perpétua;5.Vedação às reservas;6.Síntese das reflexões críticas acerca da problemática e nossa posição.7.Conclusão: o risco de desmoralização dos direitos e garantias fundamentais e das cláusulas pétreas.Referências bibliográficas.


1.O Estatuto de Roma e o Tribunal Penal Internacional.

Aprovado pelo Decreto legislativo n. 112 de 2002 e promulgado pelo Decreto presidencial n. 4.388, de 25.09.2002, o texto do denominado Tratado de Roma, instrumento internacional aprovado em 17.07.1998 e assinado pela República Federativa do Brasil em 07.02.2000, foi festejado pela comunidade jurídica, especialmente aquela mais estreitamente relacionada com os Direitos Humanos.

Com efeito, a criação do Tribunal Penal Internacional – International Criminal Court ou Cour Pénale Internationale – veio a atender a necessidade histórica da sociedade internacional relativa à existência de um tribunal com competência para o julgamento de graves crimes contra os direitos humanos [01], bem como corrigiu diversas distorções verificadas em relação a Tribunais criados precedentemente [02] com tal escopo.

O Estatuto de Roma divide-se em treze capítulos, os quais versam sobre a criação da Corte (Cap. I), sua competência, a admissibilidade e o direito aplicável (Cap. II), Princípios Gerais de Direito Penal (Cap. III), composição e administração do TPI (Cap. IV), inquérito e procedimento criminal (Cap. V), julgamento (Cap. VI), penas (Cap. VII), recurso e revisão (Cap. VIII), cooperação internacional e auxílio judiciário (Cap. IX), execução da pena (Cap. X), Assembléia dos Estados-partes (Cap. XI), financiamento (Cap. XII) e cláusulas finais (Cap. XIII).

A própria Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu texto original, já aderira à idéia da criação de um Tribunal Penal Internacional, dispondo expressamente que "o Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos." (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, art. 7º).

A Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004, veio a acrescer ao art. 5º do texto constitucional um § 4º, que dispõe expressamente que o Brasil "se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão."

A despeito da alvissareira novidade, o texto do Estatuto, por desconsiderar algumas peculiaridades jurídicas de parte considerável dos Estados-parte, oferece alguns problemas jurídico-constitucionais, os quais pretende-se examinar no presente ensaio.

As principais polêmicas em torno do mesmo foram deflagradas pelas disposições convencionais que instituíram a extradição, denominada entrega pelo documento, ainda que de nacionais, ao Tribunal, bem como as que instituíram a prisão perpétua como pena aplicável no âmbito deste, e ainda aquela que veda qualquer reserva ao texto por parte dos Estados-membros, conforme veremos.

É, portanto, sobre tais aspectos polêmicos do instrumento internacional e sobre as soluções preconizadas de forma corrente, na atualidade, a respeito dos mesmos, bem como sobre as relevantes implicações e conseqüências da tomada de posição em referência aos mesmos, que expender-se-ão os comentários que se seguem.


2.Alguns argumentos jurídicos e metajurídicos favoráveis à estrita observância do Estatuto de Roma.

A despeito das relevantes objeções levantadas por algumas vozes contra determinados aspectos do Estatuto de Roma, como os acima abordados, diversos tem sido os argumentos, alguns com maior grau de juridicidade, outros sem nenhum, em favor da estrita observância do referido instrumento internacional.

Alinhavemos alguns deles.

a) Quanto à extradição denominada entrega:

a1. Há previsão expressa no Estatuto distinguindo uma da outra.

O art. 102 do Estatuto de Roma distingue a extradição da entrega, pelo que, em tratando-se de institutos diversos, em conformidade com o Direito Internacional Público, não há que se aplicar o regime jurídico da extradição ao novo instituto denominado entrega.

a2. A natureza jurídica é diversa em face dos participantes na relação jurídica serem diversos na entrega e na extradição.

Àquelas objeções levantadas, em relação ao argumento anterior, ou seja, quanto à simples diferença terminologica instituída pelo instrumento internacional, advogam seus defensores que os institutos são distintos não apenas na denominação, mas também em seu conteúdo (natureza jurídica), haja vista participarem, na relação jurídica extradicional dois Estados soberanos, ao passo que na entrega (surrender ou remise), os participantes da relação jurídica seriam, de um lado, um Estado-parte do tratado e, de outro, um organismo internacional, a saber, a Cour Pénale Internationale.

a3. O Estatuto não admitia reservas, logo não havia alternativa que não fosse a adesão.

Não admitindo reservas o texto do tratado, não restava alternativa aos Estados-parte senão aquela de a ele aderir integralmente e, ademais, tendo havido consenso, não há que se objetar com o direito interno para recusar-se a adimplir as obrigações internacionais que do instrumento derivam.

a4. Era impossível o consenso em termos diversos.

Alega-se, ainda, que o consenso era impossível em outros termos, sendo que pontos como a entrega não seriam passíveis de adaptação, pelo que a própria conclusão dos trabalhos seria frustrada.

a5. A gravidade dos delitos e a quantidade de vítimas justificam a entrega, ainda que de nacionais e ainda que nos países em que o direito interno a proíbe.

Objeta-se ainda às críticas em relação a tal ponto do instrumento internacional que a gravidade dos delitos de competência do Tribunal Penal Internacional, bem como o número de vítimas das condutas ali tipificadas, estariam a justificar uma relativização no que se refere à aplicação das regras proibitivas da extradição de nacionais, através de um juízo de ponderação dos bens jurídicos em oposição (direitos humanos das vítimas violados contra os direitos fundamentais do(s) autor(es) dos ilícitos).

b) Quanto à pena de prisão perpétua:

b1. A gravidade dos delitos e a quantidade de vítimas justificam a adoção da pena perpétua.

Os mesmos argumentos expendidos linhas atrás no item a5, retro, justificariam ainda a adoção da privação perpétua de liberdade. A proibição constitucional ou legal, conforme o ordenamento jurídico em questão, deveria sofrer uma relativização, ser mitigada em seus rigores, permitindo, pelo juízo de ponderação, que os autores dos crimes de competência do TPI pudessem, ainda que excepcionalmente, receber a referida pena.

b2. Há previsão de revisão automática da pena.

Argumenta-se, ainda, que foi introduzido dispositivo convencional que prevê a revisão automática sobre a manutenção da prisão perpétua, após 25 anos de cumprimento de pena (art. 110, 3), hipótese em que poderá, eventualmente, ser reduzida, em preenchidos os requisitos ali previstos (art. 110, 4, "a", "b" e "c"), o que atenuaria o caráter severo da pena.

b3. O Estatuto não admite reservas.

Mesmas considerações expendidas no item a3, retro.

c) Quanto à vedação de reservas:

c1. A admissão de reserva comprometeria o funcionamento do TPI.

Quanto à proibição às reservas, argumenta-se que admitir reservas aos seus termos comprometeria o funcionamento do Tribunal e o exercício eficiente da jurisdição por este, que restaria esvaziado, caso fosse possível aos Estados-parte manifestarem reservas a determinados pontos do mesmo, como, por exemplo, a extradição (entrega) de nacionais.

c2. O Brasil caracteriza-se como um "Estado cooperativo", e não deve opor-se, de nenhuma forma, ao funcionamento do TPI, com o qual se comprometeu.

Os modernos teóricos do denominado Direito da Integração ou Direito Comunitário propugnam por uma concepção completamente nova do Estado, sempre dentro de um contexto de cooperação internacional ou integração regional, com um enorme abrandamento no conceito de soberania nacional [03].

No Brasil, buscam fundamento para vislumbrar o dito Estado cooperativo em dispositivos constitucionais como o do art. 4º, inciso IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade como princípio reitor da República – e parágrafo único – integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações -, o novel § 4º do art. 5º - sujeição do Brasil à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha aderido -, todos da Constituição Federal, bem como o art. 7º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – dever do Brasil de propugnar pela formação de um Tribunal Internacional de Direitos Humanos -.

Estes os principais e recorrentes argumentos daqueles que defendem a completa sujeição da República Federativa do Brasil ao Estatuto de Roma, independentemente dos ditames constitucionais daquela, com os quais, inclusive, como se vê, não vislumbram incompatibilidade substancial.

Convém investigar mais acuradamente no entanto, a compatibilidade dos institutos da entrega, da prisão perpétua e da proibição às reservas, para com o Direito Constitucional positivo brasileiro, o que se passa a fazer nos tópicos sucessivos.


3.O instituto da "entrega" e a extradição de nacionais.

Após consagrar os deveres de cooperação para seu adequado funcionamento, o Estatuto de Roma estabelece, em seu artigo 89, o instituto jurídico que denomina "entrega", conforme a tradução para a língua portuguesa, denominada surrender na versão inglesa, e remise na versão francesa, in verbis:

"Artigo 89 Entrega de Pessoas ao Tribunal

1. O Tribunal poderá dirigir um pedido de detenção e entrega de uma pessoa, instruído com os documentos comprovativos referidos no artigo 91, a qualquer Estado em cujo território essa pessoa se possa encontrar, e solicitar a cooperação desse Estado na detenção e entrega da pessoa em causa. Os Estados Partes darão satisfação aos pedidos de detenção e de entrega em conformidade com o presente Capítulo e com os procedimentos previstos nos respectivos direitos internos.

2. Sempre que a pessoa cuja entrega é solicitada impugnar a sua entrega perante um tribunal nacional com, base no princípio ne bis in idem previsto no artigo 20, o Estado requerido consultará, de imediato, o Tribunal para determinar se houve uma decisão relevante sobre a admissibilidade. Se o caso for considerado admissível, o Estado requerido dará seguimento ao pedido. Se estiver pendente decisão sobre a admissibilidade, o Estado requerido poderá diferir a execução do pedido até que o Tribunal se pronuncie.

3. a) Os Estados Partes autorizarão, de acordo com os procedimentos previstos na respectiva legislação nacional, o trânsito, pelo seu território, de uma pessoa entregue ao Tribunal por um outro Estado, salvo quando o trânsito por esse Estado impedir ou retardar a entrega.

b) Um pedido de trânsito formulado pelo Tribunal será transmitido em conformidade com o artigo 87. Do pedido de trânsito constarão:

i) A identificação da pessoa transportada;

ii) Um resumo dos fatos e da respectiva qualificação jurídica;

iii) O mandado de detenção e entrega.

c) A pessoa transportada será mantida sob custódia no decurso do trânsito.

d) Nenhuma autorização será necessária se a pessoa for transportada por via aérea e não esteja prevista qualquer aterrissagem no território do Estado de trânsito.

e) Se ocorrer, uma aterrissagem imprevista no território do Estado de trânsito, poderá este exigir ao Tribunal a apresentação de um pedido de trânsito nos termos previstos na alínea b). O Estado de trânsito manterá a pessoa sob detenção até a recepção do pedido de trânsito e a efetivação do trânsito. Todavia, a detenção ao abrigo da presente alínea não poderá prolongar-se para além das 96 horas subseqüentes à aterrissagem imprevista se o pedido não for recebido dentro desse prazo.

4. Se a pessoa reclamada for objeto de procedimento criminal ou estiver cumprindo uma pena no Estado requerido por crime diverso do que motivou o pedido de entrega ao Tribunal, este Estado consultará o Tribunal após ter decidido anuir ao pedido."

O conceito legal do referido instituto extrai-se de disposição expressa do instrumento, a saber, o art. 102, que busca estabelecer uma distinção entre o instituto da extradição e o da entrega("remise" ou "surrender"):

"Artigo 102 Termos Usados

Para os fins do presente Estatuto:

a) Por ‘entrega’, entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal nos termos do presente Estatuto.

b) Por ‘extradição’, entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado a outro Estado conforme previsto em um tratado, em uma convenção ou no direito interno."

Como se pode ver, o único e exclusivo traço que se pretende distintivo dos institutos, além da denominação, é aquele da entrega da pessoa a um Estado estrangeiro singularmente ou ao Tribunal Penal Internacional.

Com efeito, a questão da entrega de pessoas pelos Estados para o TPI foi tormentosa em face de determinados ordenamentos que determinam a impossibilidade de extradição de nacionais, como é o caso da ordem jurídica brasileira.

Sobre o particular, KLAUS KREβesclarece:

"Tal ponto remanesceu aberto até o fim das negociações. Mesmo entre os Estados que aderiram ao Estatuto e desejavam um Tribunal Penal Internacional eficiente houve contestação tomando como base as normas nacionais de proibição de extradição de nacionais. Era evidente que a oposição de entrega de nacionais inviabilizaria a eficiência da Corte." [04]

O mesmo autor, prosseguindo, nos informa como se procurou superar – ou contornar – tal ponto indigesto:

"Primeiro, foi apontado que, com base no princípio da complementaridade, os Estados poderiam efetivar a persecução aos seus nacionais sem a necessidade de entregá-los à Corte. Segundo, deveria ficar claro que a entrega de nacionais não se confundia com o processo de extradição entre Estados, não apenas quanto à terminologia mas, também, em substância. Por mais fortes que fossem as razões para não-extradição de nacionais, elas seriam menores no que tange à entrega de nacionais à Corte. Finalmente, estes argumentos prevaleceram: o Estatuto de Roma não daria aos Estados-partes um grau de recusa com relação aos seus nacionais. Como muitas delegações enfatizaram a diferença entre entrega (para a Corte) e extradição (para outro Estado), facilitou-se o consenso e as duas definições foram incluídas no art. 102." [05]

Assim, resta claro que a distinção entre a entrega e a extradição foi uma criação ditada pela necessidade de se acomodarem dispositivos normativos conflitantes, vale dizer, os de direito interno dos Estados-partes, proibitivos da extradição de nacionais [06], e os do Estatuto, que, de um lado reclamava a extradição (entrega), ainda em tais casos, e, ao mesmo tempo, proibia reservas (art. 120).

Portanto, é preciso que se diga e que desde logo fique claro, as razões para tal distinção, até certo ponto engenhosa, foram as implicações de ordem prática da identificação da entrega com a extradição. Neste sentido, ANDRÉ DE CARVALHO RAMOS:

"A extradição, instituto jurídico tradicional na cooperação judicial internacional, possui limites bem assentados em nossa Constituição, na lei interna e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Assim, equiparar a entrega (surrender) à extradição pode acarretar a impossibilidade do Brasil cumprir seus deveres de cooperação com o Tribunal Penal Internacional." [07]

E prossegue o doutrinador:

"A Delegação brasileira em Roma, como já apontado, ressaltou que a Constituição brasileira proíbe a extradição de nacionais. Entretanto, essa não é a única limitação existente no procedimento de extradição. Pelo contrário, a Constituição e a lei aplicável brasileira (Lei 6.815/80) estabelecem outros requisitos que merecem ser aqui estudados para demostrar a necessidade de uma completa desvinculação do surrender (entrega) da extradição." [08]

Para, ao final, arrematar:

"Em relação à extradição de brasileiros, a interpretação pela compatibilidade entre um diploma internacional de direitos humanos (que é o caso do Estatuto de Roma, como vimos) e a Constituição leva à diferenciação entre a extradição e o ato de entrega (surrender)." [09]

Pelo exposto resta demonstrado que a distinção entre extradição e entrega deu-se com uma finalidade específica e concreta, qual seja, valendo-nos das palavras do doutrinador referido, desvincular a entrega da extradição.

Dito de outro modo, a disposição visou subtrair a extradição denominada de entrega pelo Estatuto do regime jurídico-constitucional já consolidado acerca do instituto da extradição. Furtar o Tribunal Penal Internacional do regime jurídico imposto aos procedimentos extradicionais pela Constituição Federal de 1988, no caso do Brasil.

Decisão esta que, precise-se desde logo, possui nítido caráter político, baseando-se em juízos de conveniência e oportunidade, adotada com uma finalidade concreta e específica, ou seja, visando o atingimento de um efeito prático e preciso, sem qualquer respaldo científico na distinção artificialmente estabelecida com tal fim, conforme demonstrar-se-á.

Com efeito, assegura a Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 5º, inciso LI:

"LI - nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei;"

E tal dispositivo, é de se lembrar, constitui cláusula pétrea, imodificável mesmo por emenda ou revisão à Constituição, conforme os precisos e inequívocos ditames do art. 60 § 4º IV.

Assim sendo, está posta a antinomia: de um lado, a Constituição Federal de 1988 veda a extradição do nacional nato ou naturalizado, o primeiro peremptoriamente, o segundo relativamente, e tal dispositivo de direito interno é imodificável [10].

De outro lado, o Estatuto de Roma, que estabelece a entrega, surrender ou remise, buscando convencer que se trata de instituto diverso da extradição, e que não admite reservas (art. 120). Eis o problema.

Para buscar resolvê-lo, vejamos em que se funda, ou pretende se fundar, a distinção entre ambos os institutos (extradição e entrega).

Ainda uma vez nos socorremos do magistério de ANDRÉ DE CARVALHO RAMOS, sobre o critério distintivo:

"De fato, o art. 102 do Estatuto expressamente diferencia a extradição do ato de entrega. A extradição é termo reservado ao ato de cooperação judicial entre Estados soberanos. Já o surrender é utilizado no caso específico de cumprimento de ordem de organização internacional de proteção de direitos humanos, como é o caso do Tribunal Penal Internacional. Logo, não haveria óbice constitucional ao cumprimento de ordem de detenção e entrega de acusado brasileiro ao tribunal, já que a Constituição brasileira só proíbe a extradição de nacionais. Como o brasileiro não estaria sendo remetido a outro Estado, mas sim a uma organização internacional (o Tribunal Penal Internacional) que representa a comunidade dos Estados, não haveria impedimento algum." [11]

E, para finalizar, buscando respaldo no art. 7º do ADCT, assevera o autor que

"De fato, este artigo dispõe que o Brasil deve favorecer a criação de um tribunal internacional de direitos humanos. Logo, a interpretação que se tem deste dispositivo é de que não podemos utilizar a própria Constituição para obstruir o funcionamento do Tribunal Penal Internacional, tribunal este criado justamente para combater graves violações de direitos humanos básicos ou fundamentais." [12]

Estes constituem, em síntese, a opinião corrente e generalizada da doutrina até o momento, que tem aceitado, tranqüilamente, a entrega de nacionais como coisa natural.

Algumas objeções aqui se impõem.

Pergunta-se: a natureza jurídica dos institutos de direito é definida pelos participantes da relação?

Exemplificando: contrato de venda e compra celebrado entre uma pessoa natural e outra pessoa natural, é, por acaso, instituto jurídico diverso (leia-se: ostenta natureza jurídica diversa) de contrato de venda e compra celebrado entre uma pessoa natural, e uma pessoa jurídica de direito público?

Ou ainda, contrato de venda e compra celebrado entre pessoa natural ou jurídica de direito privado, e pessoa jurídica de direito público deixa de ser contrato de venda e compra, pela simples mudança das partes na relação?

A resposta nos parece clara: uma vez preenchidos os requisitos legais, configurado está o ato, sendo desimportante, em princípio, as partes que dele tomam parte, nem tampouco a denominação que porventura se-lhe dê, no que se refere à sua natureza jurídica.

O exemplo é do direito privado, mas o mesmo verifica-se no direito público.

Quanto à denominação, recorrendo a outro exemplo: imposto chamado de taxa torna-se taxa somente por tal fato? Evidentemente não (CTN, art. 4º) [13]. Ou, em outra seara, o fato de equivocadamente, com sói ocorrer de maneira reiterada em nosso país, denominar o legislador citação por intimação e vice-versa transmuda a natureza jurídica dos institutos processuais referidos? Parece-nos evidente o princípio geral de Direito segundo o qual que nem a denominação nem as partes na relação são idôneas, por si sós, a alterar a natureza de uma relação jurídica.

Ora, proceder à prisão de um indivíduo e proceder à sua entrega a Estado estrangeiro era extradição, é extradição e extradição continua sendo, antes e depois do Estatuto de Roma, não importa o nome que se-lhe dê. O fato de a entrega ser feita a um organismo internacional não transmuda a natureza jurídica do instituto (e nem poderia fazê-lo, haja vista a existência de norma constitucional proibitiva da extradição do nacional que não pode ser simplesmente burlada).

O fato de existir uma nova hipótese de extradição, para fins de entrega a um órgão internacional não é idôneo a revogar dispositivo constitucional – tanto mais em se tratando de cláusula pétrea -, nem para subtrair o procedimento de todo o regramento jurídico-constitucional e do arcabouço jurisprudencial sobre o tema já consolidado em nossa Corte Constitucional, o Supremo Tribunal Federal. Ainda que o chamem por outra denominação.

A distinção do art. 102 do Estatuto é tão artificial quanto artificiosa e não é apta a burlar preceito cogente e imperativo de nossa Constituição, que prevalece, no particular, sobre o direito convencional, o qual aqui se revela inconstitucional. [14]

Assim não fosse, estaríamos admitindo que é possível, numa dose de formalismo incompatível com o atual estágio da ciência jurídica e do Direito, que o legislador ou administrador furtem-se dos ditames constitucionais sobre quaisquer matérias, bastando que intitulem as situações sujeitas a preceitos cogentes com denominações diferentes, ou criem distinções e sutilezas no intuito de furtar determinadas situações, pessoas ou grupos à incidência de normas imperativas.

Note-se que incompatibilidade semelhante não se verifica em relação a ordenamentos que regulem diferentemente a matéria. A Constituição Alemã, por exemplo, ao tratar da extradição do nacional, expressamente dispõe em seu artigo 16:

„Artikel 16 [Staatsangehörigkeit]

(1) Die deutsche Staatsangehörigkeit darf nicht entzogen werden. Der Verlust der Staatsangehörigkeit darf nur auf Grund eines Gesetzes und gegen den Willen des Betroffenen nur dann eintreten, wenn der Betroffene dadurch nicht staatenlos wird.
(2) Kein Deutscher darf an das Ausland ausgeliefert werden. Durch Gesetz kann eine abweichende Regelung für Auslieferungen an einen Mitgliedstaat der Europäischen Union oder an einen internationalen Gerichtshof getroffen werden, soweit rechtsstaatliche Grundsätze gewahrt sind." [15]
(destaques ausentes do original).

Da dicção da norma constitucional tedesca, no artigo retrotranscrito, parágrafo 2º, após a proibição da extradição do nacional (1), resta expressa a possibilidade de excepcionar o legislador a regra proibitiva [16], quando da regulamentação infraconstitucional da matéria, desde que a extradição seja para um Estado membro da União Européia ou para uma Corte Internacional e, ainda em tais casos, desde que os princípios do Estado de Direito sejam observados [17].

Em casos tais, nenhuma inconstitucionalidade se vislumbra. Diferentemente da situação brasileira, haja vista a incompatibilidade frontal entre o preceito constitucional e o preceito convencional.

Pelo exposto, esposamos entendimento no sentido de que, não é possível afastar eventual pedido de entrega pelo Tribunal Penal Internacional do regramento constitucional da extradição, sendo juridicamente impossível a entrega (leia-se extradição para o TPI) de nacionais, nos termos da Carta Excelsa.

Além disso, todo o regramento infraconstitucional a regular a matéria extradição, desde que não colidente com disposições expressas do Estatuto de Roma compatíveis com nossa Constituição, é aplicável à denominada "entrega".


4.A pena de prisão perpétua.

Além do problema da entrega de nacionais, abordado no tópico precedente, há que se observar que, dentre as penas aplicáveis pela Cour Pénale Internationale, institui o Estatuto aquela da prisão perpétua:

"Artigo 77 Penas Aplicáveis

1. Sem prejuízo do disposto no artigo 110, o Tribunal pode impor à pessoa condenada por um dos crimes previstos no artigo 5º do presente Estatuto uma das seguintes penas:

a) Pena de prisão por um número determinado de anos, até ao limite máximo de 30 anos; ou

b) Pena de prisão perpétua, se o elevado grau de ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado o justificarem,

2. Além da pena de prisão, o Tribunal poderá aplicar:

a) Uma multa, de acordo com os critérios previstos no Regulamento Processual;

b) A perda de produtos, bens e haveres provenientes, direta ou indiretamente, do crime, sem prejuízo dos direitos de terceiros que tenham agido de boa fé."

Como se vê, o art. 77, parágrafo 1º, alínea "b" do instrumento internacional institui a pena de prisão perpétua, subordinando tal imposição a critérios subjetivos como o elevado grau de ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado [18].

Como não poderia deixar de ser, a adoção de tal pena por uma Corte que visa à proteção dos direitos humanos, gerou controvérsia, em face da incompatibilidade de tal pena, de extrema gravidade, com o ordenamento jurídico interno de diversos Estados.

Mais uma vez, de forma contraditória com suas próprias finalidades e com os objetivos a que se propõe, o Estatuto de Roma foi mais severo e gravoso, em relação a direitos fundamentais, do que as próprias legislações internas precedentemente editadas.

Sobre o tema, KLAUS KREβ:

"Uma minoria significativa de delegações objetou quanto à inclusão da prisão perpétua argumentando com sua respectiva Constituição interna. A exclusão da pena de morte e de prisão perpétua significaria a impossibilidade de alcançar-se o consenso. O único caminho era o da aceitação desta última, com alguns requisitos, que acabaram por ser basicamente dois: primeiro, somente poderia ser imposta, justificada pela extrema gravidade do delito (art. 77 (1) (b)). Depois, de muito maior importância prática, a imposição dessa pena deve vir conjugada com a obrigatória revisão da sentença prevista na parte 10, de acordo com o art. 110 (3), segundo o qual a Corte fará a revisão após vinte e cinco anos verificará se deverá ou não ser a pena reduzida. Os fatores relevantes estão contidos no art. 110 (4). O mecanismo de revisão obrigatório foi crucial para a obtenção do consenso, tendo sido apoiado pela maioria dos Estados europeus cuja Constituição, de uma forma ou de outra, impedem a aplicação da prisão perpétua." [19]

Com efeito, dita incompatibilidade entre Direito Internacional e direito interno verificou-se, ainda uma vez, em relação à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que, em seu artigo 5º determina:

"XLVII - não haverá penas:

a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;

b) de caráter perpétuo;

c) de trabalhos forçados;

d) de banimento;

e) cruéis;"

A pena de prisão perpétua abomina. É extremamente gravosa, já denominada pena de morte permanente [20], e, curiosamente, embora tenha sido combatida durante tanto tempo pelas organizações de defesa dos direitos humanos parece ganhar fôlego renovado, justamente com o advento do tão sonhado Tribunal Internacional (o sonho pode vir a se tornar um pesadelo? Tentemos dar um prognóstico ao final do ensaio).

A pena de prisão perpétua é apenas aparentemente menos gravosa do que a pena de morte. Pode até ser menos cruenta, menos selvagem, mais é tão cruel quanto a última. Ambas aniquilam o ser humano igualmente. Certamente causa ainda mais sofrimento do que a pena capital, pela sua continuidade, perenidade e pela ausência de perspectiva para o condenado.

De se lembrar, inclusive, que, ao passo que nosso ordenamento prevê, ainda que excepcionalmente, uma reminiscência de pena de morte no direito militar, em tempo de guerra – CR, art. 5º, XLVII, "a", in fine, veda terminantemente e sem exceções a prisão perpétua – CR, art. 5º, XLVII, "b", o que poderia mesmo justificar uma interpretação juridicamente plausível de que esta última foi considerada, pelo Constituinte, ainda mais grave que a primeira, e que, se houvesse a possibilidade de exceção em relação à mesma, esta estaria prevista expressamente na Carta Política, como no caso da pena capital.

Esclareça-se que não se propugna aqui a sujeição do Direito Internacional Público ao direito interno. Ocorre que deveria ter sido levada em consideração, com o devido respeito à diferença proclamado em diversos instrumentos internacionais da própria Organização das Nações Unidas, o direito à diferença, à diversidade, assim como à autodeterminação dos povos, a qual passa, necessariamente, pelo respeito a seus ordenamentos jurídicos, especialmente no que se refere ao respeito aos direitos e garantias fundamentais.

Se a um determinado país a pena de morte e a de prisão perpétua podem parecer normais, como ocorre em certas unidades dos Estados Unidos da América, por exemplo,há que se levar em consideração, por outro lado, que penas de tal natureza, assim gravosas, podem parecer abomináveis em outros Estados, como o Brasil e uma miríade de outros Estados latino-americanos, particularmente. A juriscultura de cada povo ou nação é diferente, seu direito interno apresente particularidades que devem ser respeitadas [21].

E, ainda que se propale aos quatro ventos a reformulação do conceito de soberania, em face da globalização ou mundialização, há que se reafirmar que, ainda que se-lhe admita redefinida, a soberania não foi banida por tais teorias, e encontra-se expressa guarida na Constituição de 1988, gostem ou não os catedráticos, como fundamento da República, logo no inciso I do art 1º.

Eis uma das falhas capitais do Estatuto de Roma, a saber, a total desconsideração de situações particulares, a imposição de formas pré-definidas, verdadeiros contratos de adesão, sem qualquer espaço para um diálogo e uma reformulação – algo aqui lembra a Constituição Européia, rechaçada recentemente em França e na Holanda.

Nos parece no mínimo discutível a participação de país que proíba taxativamente em sua Constituição, em cláusula imodificável, penas de caráter perpétuo, em organismo internacional que a institucionalize, sem possibilidade de reserva.

Antes o Direito Internacional, com respeito a suas próprias normas que consagram o direito à diversidade, bem como a autodeterminação dos povos, tivesse previsto alternativas, as quais existem, conforme demonstrar-se-á. Ao invés, preferiu impor soluções unilateralmente ditadas, trazendo falhas de legitimidade e mesmo a inviabilidade do Tribunal.


5.Vedação às reservas.

Primeiramente cabe ressaltar, por imprescindível ao trato do tema que proíbe o Estatuto taxativamente a formulação de reservas por parte dos Estados que aderissem ao mesmo:

"Artigo 120

Reservas

Não são admitidas reservas a este Estatuto."

Tal disposição foi engendrada com a finalidade evidente de dar efetividade ao Tribunal e sua jurisdição, combatendo efeitos indesejáveis e por demais conhecidos das reservas por parte dos Estados-parte.

Não obstante, tal disposição gera embaraços, especialmente no que se refere a incompatibilidades entre certas disposições do Estatuto e os textos constitucionais dos Estados-parte, haja vista a natureza das penas e de determinados institutos contemplados pelo texto convencional.

JEAN-MARIE LAMBERT, com fulcro no artigo 2º da Convenção de Viena [22], assim define o instituto da reserva:

"O instituto é, assim, uma maneira de condicionar o consentimento. Através dela, o Estado pode desejar limitar as obrigações, interpretar algumas disposições de maneira a modificar seu efeito jurídico, ou ainda, aumentar ou diminuir o grau do compromisso assumido, tornando-o mais ou menos exigente." [23]

A definição de reserva encontra-se na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, que, em seu artigo 2º, alínea "d", assim a conceitua:

"Artigo 2 - Expressões Empregadas

[...]

d) ‘reserva’ significa uma declaração unilateral, qualquer que seja a sua redação ou denominação, feita por um Estado ao assinar, ratificar, aceitar ou aprovar um tratado, ou a ele aderir, com o objetivo de excluir ou modificar o efeito jurídico de certas disposições do tratado em sua aplicação a esse Estado; [...]" (destaques ausentes do original).

Assim, do texto expresso da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, verifica-se que a reserva é a oposição modificativa ou excludente de determinadas disposições convencionais feita quando da ratificação, aceitação, aprovação ou adesão, e não ulteriormente.

Conforme já assentado em precedentes do Supremo Tribunal Federal, o direito internacional não se encontra alheio ao controle de constitucionalidade, já tendo sido afirmada por aquela Corte, precedentemente, a supremacia das disposições constitucionais quando do conflito entre estas e disposições convencionais [24].

Com relação ao direito internacional e mesmo ao direito supranacional, no âmbito da União Européia, já afirmaram outros Tribunais Constitucionais a possibilidade, sempre presente, de controle de constitucionalidade dos referidos atos, como o fez, por exemplo, a Corte Constitucional Alemã (Bundesverfassungsgericht).

Assim sendo, embora do texto expresso do instrumento internacional em análise se infira, indubitavelmente, a impossibilidade de reservas, em sentido próprio e técnico, ao mesmo, resta sempre possível a recusa da execução de disposições do tratado porventura incompatíveis com a Carta Magna pelo próprio Poder Executivo, por malferimento aos preceitos constitucionais pátrios [25], bem como a declaração de inconstitucionalidade, pelo Poder Judiciário, em casos análogos.

Logo, defende-se que as disposições relativas à entrega de nacionais e à prisão perpétua, constantes do Estatuto, são inaplicáveis em face da Constituição brasileira de 1988, por entender-se, em virtude dos fundamentos até aqui expostos, serem incompatíveis com postulados cardeais desta.

A alegação de violação à Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, que, em seu art. 27, veda a alegação de direito interno como fundamento ao descumprimento de instrumentos internacionais não se sustenta, eis que, além de jamais ter sido ultimada a ratificação do mesmo pela República Federativa do Brasil [26], o problema deveria e poderia ter se resolvido em outra seara.

Com efeito, qualquer ato praticado pelos plenipotenciários além do permitido pela Constituição carece de higidez jurídica em face da ordem constitucional. Não é possível negociar o inegociável. A ponderação feita na ocasião carece de legitimidade, eis que fora feito previamente pelo Constituinte originário, bem como o consenso havido não possui aptidão jurídica para alterar a Constituição da República.

O impasse surgido entre o Direito Constitucional interno de um número considerável de países e o instrumento internacional em análise, deveria ter sido adotada solução mais adequada, de modo a não sacrificar totalmente nem a criação da Corte Internacional, nem a soberania e as Cartas Políticas dos Estados, ao menos em relação a Estados para os quais as incompatibilidades constituam cláusula pétrea, como no caso do Brasil.

Deveria o Estatuto de Roma ter sido elaborado de maneira mais flexível, ao menos em relação a reservas comprovadamente fundadas em direitos e garantias fundamentais incompatíveis com disposições convencionais.

A despeito do tão propalado redimensionamento da soberania nacional, não há que se falar em inteira sujeição do Estado aos ditames da sociedade internacional ou de organismos internacionais.

Conforme já apontado, adeque-se o fato às novas teorias ou não, a Constituição Brasileira define a soberania como fundamento da República (art. 1º, I), bem como define expressamente a República Federativa do Brasil como Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput), cujas características encontram-se bem melhor definidas pela doutrina do que o tão propalado Estado cooperativo, e dentre cujos fundamentos mais essenciais encontra-se o respeito aos direitos e garantias fundamentais.

O disposto nos artigos 86 e 88 do Estatuto – obrigação geral de cooperar e compatibilização dos procedimentos previstos no direito interno [27] – não constituem óbices idôneos às considerações e objeções aqui expostas.

Afinal, se o próprio Poder Constituinte derivado se encontra subordinado à observância, dentre outras, das cláusulas constitucionais relativas a direitos e garantias individuais [28], não podendo modificá-las em revisão constitucional em virtude de disposição constitucional expressa, tanto mais se encontra o Poder Executivo, não podendo violar, por via de ratificação de instrumentos internacionais, normas que lhe são intangíveis.

Por fim, mas não de menor importância, há que se considerar, no particular, o direito à autodeterminação dos povos e o direito à diversidade ou à diferença, ambos expressamente tutelados por instrumentos internacionais do Sistema Global ou onusiano.

Visitemo-los rapidamente.

A Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986, da ONU, adotada pela Resolução n. 41/128 da Assembléia Geral, de 04 de dezembro de 1986, proclama o direito dos povos à autodeterminação em seu art. 1º, parágrafos 1º e 2º:

"Artigo 1º

1. O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável, em virtude do qual toda pessoa e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados.

2. O direito humano ao desenvolvimento também implica a plena realização do direito dos povos à autodeterminação que inclui, sujeito às disposições relevantes de ambos os Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos, o exercício de seu direito inalienável de soberania plena sobre todas as suas riquezas e recursos naturais."

Como visto, pelo dispositivo, o direito ao desenvolvimento implica no direito dos povos à autodeterminação, e compreende diversos aspectos, inclusive o político. Ora, a decisão do Poder Constituinte originário em banir do ordenamento penas cruéis, desumanas e degradantes, dentre as quais as de morte e de prisão perpétua são das mais graves, é uma decisão política que gera uma norma jurídica consentânea com os direitos humanos, norma esta irretocável, por disposição expressa do próprio Poder Constituinte. Legis habemus.

Desconsiderar tal fato, dar-lhe as costas, implica em desconsiderar as particulades jurídicas do Estado, as decisões políticas em que se fundaram e, logo, a própria autodeterminação dos povos.

Ambos os Pactos a que se refere o dispositivo retrotranscrito homenageiam, logo em seu início, a autodeterminação:

Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos da ONU, de 1966:

"Artigo 1º - 1. Todos os povos têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito, determinam livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento econômicos, social e cultural. [...]"

Idêntica disposição encontra-se contida no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU de 1966, no art. 1º, parágrafo 1.

A diversidade e seu respeito, bem como a tolerância e a cultura da paz têm sido objeto de diversas declarações e instrumentos internacionais no âmbito da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO, como, por exemplo, da Declaração Universal da Unesco sobre a Diversidade Cultural, aprovada pela 31ª Sessão da Conferência Geral da UNESCO, em Paris, em 2001, e a Declaração de Princípios Sobre a Tolerância, adotada pela 28ª Reunião da Conferência Geral, em 1995, dentre outros numerosos documentos [29].

Nestes, restam sempre enfatizadas a identidade, diversidade e pluralismo (art. 1º da DUDC), bem como a importância da tolerância e do respeito à diversidade para a tão desejada cultura da paz. Diz o artigo 1º da Declaração de Princípios sobre a Tolerância:

"Artículo 1 Significado de la tolerancia

1.1 La tolerancia consiste en el respeto, la aceptación y el aprecio de la rica diversidad de las culturas de nuestro mundo, de nuestras formas de expresión y medios de ser humanos. La fomentan el conocimiento, la actitud de apertura, la comunicación y la libertad de pensamiento, de conciencia y de religión. La tolerancia consiste en la armonía en la diferencia. No sólo es un deber moral, sino además una exigencia política y jurídica. La tolerancia, la virtud que hace posible la paz, contribuye a sustituir la cultura de guerra por la cultura de paz.

1.2 Tolerancia no es lo mismo que concesión, condescendencia o indulgencia. Ante todo, la tolerancia es una actitud activa de reconocimiento de los derechos humanos universales y las libertades fundamentales de los demás. En ningún caso puede utilizarse para justificar el quebrantamiento de estos valores fundamentales. La tolerancia han de practicarla los individuos, los grupos y los Estados.

1.3 La tolerancia es la responsabilidad que sustenta los derechos humanos, el pluralismo (comprendido el pluralismo cultural), la democracia y el Estado de derecho. Supone el rechazo del dogmatismo y del absolutismo y afirma las normas establecidas por los instrumentos internacionales relativos a los derechos humanos.

1.4 Conforme al respeto de los derechos humanos, practicar la tolerancia no significa tolerar la injusticia social ni renunciar a las convicciones personales o atemperarlas. Significa que toda persona es libre de adherirse a sus propias convicciones y acepta que los demás se adhieran a las suyas. Significa aceptar el hecho de que los seres humanos, naturalmente caracterizados por la diversidad de su aspecto, su situación, su forma de expresarse, su comportamiento y sus valores, tienen derecho a vivir en paz y a ser como son. También significa que uno no ha de imponer sus opiniones a los demás."

Parece-nos que faltou observância a tais princípios morais, políticos e jurídicos, conforme salienta o próprio dispositivo transcrito, havendo uma injustificada recusa em harmonizar o nobre intuito de criar a Corte Penal Internacional com os preceitos constitucionais instituidores de direitos fundamentais no âmbito dos Estados-partes.

O respeito ao pluralismo, como bem salienta o instrumento, é fundamento da democracia e do Estado de Direito e pressupõe que se afaste o absolutismo, reafirmando o respeito aos direitos humanos.

Por todo o exposto resta demonstrado, pensamos, que melhor seriam concessões recíprocas que levassem em consideração situações jurídicas particulares e especificidades jurisculturais dos Estados-partes, compatibilizando-as com o melhor funcionamento possível do TPI, do que a imposição, pura e simples, de um formato pré-determinado.

Seria melhor, sem dúvida, o negociado ao imposto.


6.Síntese das reflexões críticas acerca da problemática e nossa posição.

Feitas as considerações precedentes, e embora já se tenha deixado entrever nosso entendimento sobre cada um dos temas, tentar-se-á realizar uma síntese das reflexões críticas acerca da problemática ora aventada, adotando uma posição em face da mesma.

Primeiramente, no que concerne à extradição denominada entrega, se buscará refutar um a um os argumentos jurídicos e metajurídicos favoráveis à subserviência completa perante o Estatuto de Roma, precedentemente vistos.

A distinção entre extradição e entrega não se sustenta juridicamente. O fato de haver previsão expressa no Estatuto distinguindo uma da outra não é apto a produzir o efeito pretendido.

Ora, a simples distinção de denominação provocada pelo Estatuto, como visto, não é idônea a transmudar a natureza jurídica do instituto extradição em algo diverso. A denominada entrega nada mais é do que modalidade de extradição e deve sujeitar-se aos ditames constitucionais, conforme já visto em tópico precedente.

FERDINAND LASSALE já revelava a importância da primazia da realidade sobre as formas, em outro contexto e com objetivo diferente, com palavras que podem, mutatis mutandis, ser aqui aproveitadas:

"Podem os meus ouvintes plantar no seu quintal uma macieira e segurar no seu tronco um papel que diga: ‘Esta árvore é uma figueira’. Bastará esse papel para transformar em figueira o que é macieira? Não, naturalmente. E embora conseguissem que seus criados, vizinhos e conhecidos, por uma razão de solidariedade, confirmassem a inscrição existente na árvore de que o pé plantado era uma figueira, a planta continuaria sendo o que realmente era e, quando desse frutos, destruiriam estes a fábula produzindo maçãs e não figos." [30]

Da mesma forma não se pode fugir ao preceito constitucional imperativo e imodificável por mero estratagema, ardil ou jogo de palavras (inconstitucionalidade ideológica [31]).

Por outro lado, já restou demonstrado que o entendimento segundo o qual a natureza jurídica é diversa em face dos participantes na relação jurídica serem diversos na entrega e na extradição também não merece melhor sorte. Como já visto anteriormente, a simples mudança dos participantes não é apta a alterar a natureza da relação jurídica.

O argumento de que o Estatuto não admitia reservas, logo não havia alternativa que não fosse a adesão é insuficiente e implica, em face do princípio da constitucionalidade ou primazia da Constituição, no reconhecimento da inconstitucionalidade do preceito, face o conteúdo materialmente incompatível das disposições convencionais e constitucionais.

O Estatuto de Roma possui seu pecado capital exatamente neste ponto. Deixa de levar em consideração as peculiaridades jurídicas de cada ordenamento, buscando fazer com que os Estados-partes alterem suas legislações de maneira mais gravosa em relação ao regime jurídico dos direitos fundamentais que atualmente consagram, obtendo resultado diametralmente oposto ao que justifica sua própria existência.

Poderiam ser criadas alternativas viáveis em que fossem levadas em considerações situações particulares em relação a ordenamentos jurídicos que não admitissem extradição. Como se pretendeu impor uma solução pré-formatada, impossibilitou-se de antemão o cumprimento dos dispositivos do instrumento por países como o Brasil, no qual a proibição de extradição de nacional é constitucional e ainda imodificável.

A alegação de que seria impossível o consenso em termos diversos somente é verdadeira se se considerar a posição de irredutibilidade com que o texto do instrumento foi proposto em relação a tais pontos. Seria possível a inclusão de situações diferenciadas, conforme propuseram inclusive algumas delegações em relação aos pontos controvertidos em análise, como as avançadas pela Dinamarca, Suécia e Suíça em relação à extradição de nacionais, por exemplo, levando-se em consideração os ordenamentos nacionais.

Àqueles que objetem que as soluções diferenciadas inviabilizariam o eficaz exercício da jurisdição pela Corte, lembramos que esta já está comprometida pelo princípio da complementaridade. O estatuto estabelece que somente poderá processar um indivíduo na inércia do Estado-parte em fazê-lo. Ora, para subtrair determinado indivíduo à jurisdição do Tribunal Penal Internacional bastará ao Estado processar o imputado, recusando a entrega, por conseguinte, ainda que referido processo absolva o imputado ou imponha-lhe penas muito amenas. E a Cour Internationale nada poderá fazer.

Assim, admitir a recusa da entrega de nacionais, com base em preceitos de direito interno imutável [32] não seria, por si só, causa de inoperância da Corte, cuja jurisdição pode ser contornada ardilosamente pelo simples exercício, ainda que simulado, da jurisdição interna.

O argumento baseado na gravidade dos delitos e a quantidade de vítimas, utilizado para justificar a adoção da pena perpétua, bem como a entrega de nacionais, carece, à toda evidência, da menor higidez jurídica.

Direitos fundamentais, em regimes de constituição rígida, como o brasileiro, acobertadas por cláusula de imodificabilidade, são pontos constitucionalmente inegociáveis.

Cláusulas pétreas não são ponderáveis. Temos sérias objeções à recorrente banalização das teorias de ponderação de princípios e relativização de direitos fundamentais [33], que serão objeto de estudo específico.

Outrossim, direitos fundamentais não se quantificam. O direito à vida de cem ou mil indivíduos não é mais ou menos importante do que o direito à vida de um indivíduo.

Este tipo de argumento em favor do Estatuto expõe, de forma crua, a falta de fundamentos jurídicos às teses que pregam a aplicação acrítica do instrumento. A comunidade jurídica deve procurar afastar-se dos perigosos juízos políticos que, de resto, embasam tais posições. Juízos de conveniência e oportunidade como estes não podem ser utilizados para burlar, através de discurso retórico, carente de cientificidade e juridicidade à toda evidência, princípios fundamentais da República e cláusulas pétreas.

Caso assim não seja, corre-se o risco de se passar a relativizar todo e qualquer preceito constitucional com base em juízos políticos de conveniência e oportunidade, rasgando-se, de uma vez por todas, a Constituição Federal.

Pense-se que argumentos de conveniência e oportunidade, como a gravidade dos delitos ou a quantidade de vítimas, ou ainda, a periculosidade dos imputados, em prosperando teses como as esposadas pelos defensores do Estatuto de Roma, podem muito bem ser utilizados, ato contínuo, para começar um debate inconstitucional sobre a conveniência e oportunidade de adotar-se ou não a pena de morte, a tortura e quejandos, à revelia do que diga a Carta Magna [34].

Aqui pousa o temor máximo em aceitar-se acriticamente o Estatuto de Roma: abrir um perigoso precedente pelo qual tudo é possível, ao arrepio da Constituição, desde que seja ditado por juízos políticos de conveniência e oportunidade, os quais podem tão bem ser manipulados pelo discurso retórico.

A previsão de revisão automática tampouco supera o problema posto. Em limitando a Constituição brasileira a pena no tempo, revela-se absolutamente incompatível com o sistema de valores adotado pela Carta Magna pátria a adoção, ainda que fosse em tese, de penas perpétuas.

Quanto às reservas, a alegação de que a admissão de reserva comprometeria o funcionamento do TPI sucumbe ante os mesmos argumentos expendidos em relação à extradição do nacional, em face do princípio da complementaridade que informa o TPI (melhor seria princípio da subsidiariedade).

Por fim, o argumento de que o Brasil caracteriza-se como um "Estado cooperativo", e não deve opor-se, de nenhuma forma e com nenhum fundamento, ao funcionamento do TPI também carece de idoneidade.

O artigo 4º, inciso IX preconiza a cooperação. Mas há que se fazer uma interpretação sistemática da Carta Política, e não isolada de um de seus dispositivos, fetichizando-o. Ao lado da referida disposição, e antes mesmo dela, há outros dispositivos constitucionais que não podem ser desconsiderados pelo exegeta.

Entre eles, o artigo 1º, caput, que caracteriza a República Federativa do Brasil como Estado democrático de Direito, para cuja caracterização, conforme é consabido, é exigência visceral a observância dos direitos e garantias fundamentais.

O mesmo artigo, em seu inciso I, reafirma a soberania nacional, de modo que fica demonstrado que, por maiores que sejam os esforços no sentido de diminuí-la e ignorá-la, ela ainda existe, de modo que não pode nenhum Estado estrangeiro, tampouco algum organismo internacional, impor modificações drásticas em nossos valores constitucionais fundamentais, o que é reforçado, ainda, pelo já citado artigo 4º, o qual, logo em seu inciso I, reafirma a independência nacional.

O Brasil é, antes de tudo e acima de outras classificações que lhe busque conferir a doutrina, um Estado democrático de Direito, sendo basilar o respeito aos direitos humanos e aos direitos e garantias fundamentais constitucionalmente assegurados, nos termos do art. 1º, III – dignidade da pessoa humana – e art. 4º, II – prevalência dos direitos humanos.

Não é legítima a intenção de se valer de juízos políticos para violar disposição expressa de cláusula pétrea, a qual é, conforme já afirmando, imponderável. Não se pode alterar o essencial disposto pelo Constituinte originário, devendo-se respeitar as regras do jogo (BOBBIO).

Sobre cláusulas pétreas, preleciona KONRAD HESSE:

"Os princípios basilares da Lei Fundamental não podem ser alterados mediante revisão constitucional, conferindo preeminência ao princípio da Constituição jurídica sobre o postulado da soberania popular." [35]

E, sobre o fundamento das mesmas, ensina GILMAR FERREIRA MENDES, em notas à sua tradução da obra "A Força Normativa da Constituição", de HESSE:

"A Lei Fundamental consagrou, no art. 79, III, cláusula pétrea que considera inadmissível qualquer reforma constitucional que pretenda introduzir alteração na ordem federativa, modificar a participação dos Estados no processo legislativo, ou suprimir os postulados estabelecidos nos arts. 1§ (inviolabilidade da dignidade humana) e 20§ (estado republicano, federal, democrático e social, divisão de poderes, regime representativo, princípio da legalidade). Segundo a jurisprudência da Corte Constitucional alemã (Bundesverfassungsgericht), essa disposição tem por escopo impedir que ‘a ordem constitucional vigente seja destruída na sua substância ou nos seus fundamentos, mediante a utilização de mecanismos formais, permitindo a posterior legalização do regime totalitário’ (BverfGE 30, 1 (24) (Cf. a propósito, nosso ‘Controle de Constitucionalidade’, São Paulo, 1990, p. 96, 100 s.)." [36]

Assim sendo, reafirma-se o respeito ao cerne imodificável da Constituição, como requisito à própria manutenção do Estado democrático de Direito.


7.Conclusão: o risco de desmoralização dos direitos e garantias fundamentais e das cláusulas pétreas.

Como visto, diversos foram aqueles que reputamos pecados capitais do Estatuto de Roma, dentre os quais destaca-se a completa desconsideração das particularidades jurídico-constitucionais de Estados-parte do mesmo.

Infelizmente o entendimento dominante até o momento sobre o Tribunal Penal Internacional tem passado ao largo de problemas cardeais como os aventados, limitando-se a admitir tudo conforme imposto, fazendo de conta que a Constituição nada dispõe sobre o particular.

Posição como a esposada neste trabalho evidentemente não escapará incólume às críticas, pois afronta alguns dogmas da pós-modernidade, como lembra TÉRCIO TOKANO:

"Esse conceito, que alguns autores designam mundialização, já há muito tornou-se um dogma, e como todo dogma – religioso, político ou econômico – traz em sim a característica da inevitabilidade. Se o fenômeno é recente, o truque é velho e consiste em desmoralizar, no nascedouro, qualquer tentativa de se analisar o objeto com outro olhar que não seja o da mera constatação e a conseqüente aprovação, ainda que tácita." [37]

Agora a conseqüência mais funesta da admissão do Estatuto de Roma, tal como se afigura, pela República Federativa do Brasil, em desconformidade com uma série de preceitos constitucionais expressos e imodificáveis pode ser a desmoralização completa dos direitos e garantias fundamentais e das próprias cláusulas pétreas.

Fundamental passa a ser dispensável ou relativo, pétreo passa a ser maleável. Tudo relativizado, num juízo de ponderação político, de conveniência e oportunidade, ditado pela ânsia de aceitar a jurisdição do tão aguardado Tribunal Penal Internacional, a qualquer preço, discurso este cujos argumentos estão mais próximos dos jornais sensacionalistas do que do meio acadêmico.

Um golpe mortal na tentativa de construção de uma cultura de respeito à Constituição e, sobretudo, aos direitos e garantias fundamentais e às cláusulas pétreas.

Em se verificando tal quadro, somente terá sido denunciada, ainda uma vez, quão esquálida era nossa vontade de constituição (wille zur Verfassung), expondo às claras a capitulação da Constituição diante do poder dos fatos (HESSE, op. cit., p. 32).

E, em tal quadro, cada vez mais servirão os argumentos retóricos, baseados em juízos políticos de conveniência e oportunidade ditados sempre pelo senso comum teórico, para negar vigência aos dispositivos fundamentais da Carta Magna, demonstrando a preponderância dos fatores reais de poder sobre aquela (LASSALE).

Eis o risco.

E tudo em nome de um hipotético crime contra a humanidade, de um hipotético julgamento de um hipotético ditador tirânico, que talvez nunca se verifique em nosso País.

A maior ironia em tudo parece ser que o Direito Internacional dos Direitos Humanos, em relação ao Brasil e aos demais países que não admitiam penas perpétuas, extradição de nacionais e quejandos, parece estar produzindo um efeito diametralmente oposto ao seu fim, qual seja, o de enfraquecer e desprestigiar os direitos humanos mais elementares, e o de debilitar uma já débil cultura de respeito à Constituição, o de fragilizar o sistema jurídico interno de proteção dos direitos fundamentais.

Conforme por nós já defendido em outras oportunidades, em sede de direitos humanos ou direitos fundamentais, o critério orientador deve ser, sempre, o da norma mais favorável à vítima. Neste sendido, FLÁVIA PIOVESAN:

"Logo, na hipótese de eventual conflito entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o direito interno, adota-se o critério da prevalência da norma mais favorável à vítima. Em outras palavras, a primazia é da norma que melhor proteja, em cada caso, os direitos da pessoa humana." [38]

E, no caso, trata-se dos direitos do hipotético ditador genocida, o qual, por maior gravidade da qual revistam-se seus atos, não resta destituído de seus direitos fundamentais.

O Direito Internacional dos Direitos Humanos não deveria jamais fragilizar os sistemas de proteção dos direitos fundamentais. É ainda FLÁVIA PIOVESAN que, após referir-se às normas de direito internacional que reforcem, ou ampliem ou mesmo contrariem [39] direitos humanos (ou fundamentais) constitucionalmente consagrados, preleciona:

"Em todas as três hipóteses, os direitos internacionais constantes dos tratados de direitos humanos apenas vêm aprimorar e fortalecer, nunca restringir ou debilitar, o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo interno." [40]

Por fim, de se observar o quão inconsistentes os argumentos a favor do Estatuto como posto atualmente, aqui rapidamente expostos, e os quais, surpreendemente, têm logrado grande êxito, raramente sendo contestados ou avaliados criticamente.

Preocupante, pois o discurso jurídico deveria orientar-se pela racionalidade, conforme magistralmente observa ROBERT ALEXY:

"A Primeira Turma do Tribunal Constitucional Federal exigiu, na sua resolução de 14 de fevereiro de 1973 (resolução sobre o desenvolvimento do Direito), que as decisões dos juízes devem basear-se em ‘argumentações racionais’. Essa exigência de racionalidade da argumentação deve ser extendida a todos os casos em que os juristas argumentam." [41]

Para, ao final, arrematar que "da possibilidade de uma argumentação jurídica racional dependem não só o caráter científico da Ciência do Direito, mas também a legitimidade das decisões judiciais." [42]

Isto porque somente assim o direito será ciência, dinstinguindo-se da política, e somente assim distinguir-se-á uma decisão jurídica de decisões políticas ditadas pela conveniência e pela oportunidade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. A teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação Jurídica. Trad. Zilda H. S. Silva. 2ª ed. São Paulo: Landy Editora, 2005.

ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios (Theorie der Rechtsprinzipien). 5ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2006.

CHOUKR, Fauzi Hassan, AMBOS, Kai (organizadores). Tribunal Penal Internacional. São Paulo: Editora RT, 2000.

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. (Die normative kraft der verfassung). Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.

KELSEN, Hans, CAMPAGNOLO, Umberto. Direito Internacional e Estado Soberano. São Paulo:Martins Fontes, 2002.

KREL, Andreas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha. Os (des)caminhos de um Direito Constitucional "comparado". Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.

LAMBERT, Jean-Marie. Curso de Direito Internacional Público. Vol. II, Parte Geral. 2ª ed. Goiânia: Kelps Editora, 2001.

LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição. Trad. Ricardo R. Gama. Campinas: Russel Editora, 2005.

LEGRAND, Pierre. Sur l’analyse différentielle des juriscultures. In Revue Internationale de Droit Comparé, Paris, v. 51, n. 4, p. 1053-1071, oct./décembre 1999.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional. 7ª ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.

SGARBOSSA, Luís Fernando; JENSEN, Geziela. O que é inconstitucionalidade ideológica?. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1039, 6 maio 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/8227>. Acesso em: 30 jul. 2006.

TOKANO, Tércio. As contradições do tribunal penal internacional. Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 51, out. 2001. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/2199>. Acesso em: 30 jul. 2006.


Notas

01 Crimes de genocídio, contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão (art. 5º do Estatuto).

02 Dentre as quais a questão da vedação internacional aos Tribunais ou Cortes ad hoc ou de exceção, a tipicidade, a anterioridade e tantos outros postulados do Direito Penal internacional relativos às garantias dos acusados, até então freqüentemente descurados por Tribunais como o de Nuremberg e os Tribunais para a Ex-Iugoslávia e Ruanda.

03 Ainda que se baseando em realidades jurídicas distintas da brasileira, seja porque diversos os fundamentos sobre os quais assentam-se os diferentes ordenamentos, seja porque integrantes de realidades supranacionais ou comunitárias que atingiram um nível de integração inimaginável para a realidade brasileira atual. De todo modo, o recurso à doutrina estrangeira baseada em tais ordenamentos, embora evidentemente válida, deve ser submetida a um juízo crítico de compatibilidade com nosso ordenamento, sob pena de defenderem-se entendimentos juridicamente impossíveis em nossa realidade jurídica, ainda que respaldado na melhor doutrina estrangeira.

04 InTribunal Penal Internacional, p. 137.

05 Idem, ibidem, p. 137-138

06Alguns de índole constitucional, como no caso da Constituição Brasileira.

07 Idem, ibidem, p. 268.

08 Idem, ibidem, p. 268.

09 Idem, ibidem, p. 270.

10 O que o torna insuscetível de adequação ao Estatuto, conforme preconiza o art. 88 deste. V. nota n. 16, infra.

11 Idem, ibidem, p. 270.

12 Idem, ibidem, p. 270.

13 CTN, Lei n. 5.172, de 25.10.1966, in verbis: "A natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la: I – a denominação e demais características formais adotadas pela lei; [...]".

14 Pode causar espécie àqueles que acompanham nossa produção doutrinária a assertiva, vez que reiteradamente propugnamos pelo reconhecimento da hierarquia constitucional dos instrumentos internacionais de direitos humanos, ainda que anteriormente à Emenda Constitucional n. 45/04 e independentemente do procedimento preconizado pelo parágrafo 3º por ela acrescido ao art. 5º do texto constitucional. Mas a contradição é apenas aparente. Explica-se: em matéria de direitos humanos ou direitos fundamentais, entendemos pela aplicação do Princípio da Primazia da Norma mais Favorável às Vítimas. Assim, o direito constitucional cede ante as normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos quando estas forem mais benéficas, sendo, assim, consentâneas com os valores perseguidos pela Carta Magna, funcionando os preceitos desta como o patamar mínimo de direitos fundamentais. Já em casos como o presente, curiosamente um instrumento pretensamente favorável aos direitos humanos prevê e estabelece situações mais gravosas, de modo que entendemos inaceitável sua vigência. Mais: aqui incide ainda cláusula de proibição de reforma expressa, sendo que nem mesmo o legislador Constituinte derivado poderia impor as alterações que se pretende engendrar por adesão a instrumento internacional.

15 Tradução: "Artigo 16 [Nacionalidade, extradição]

(1) A nacionalidade alemã não pode ser cassada. A perda da nacionalidade não pode sobrevir senão em virtude de uma lei e quando sobrevier contra a vontade do interessado, somente se aquele não se torne, por tal fato, apátrida.
(2) Nenhum Alemão pode ser extraditado ao estrangeiro. Uma regulamentação derrogatória pode ser tomada pela lei para a extradição a um Estado membro da União européia ou a uma Corte Internacional, na medida em que os princípios do Estado de Direito sejam garantidos."

16 De maneira análoga ao que faz a Constituição brasileira vigente em relação à pena de morte, mas não em relação à extradição, o que reforça a tese da impossibilidade jurídica de qualquer mitigação à proibição constitucional.

17 A mesma ausência de incompatibilidade revela-se com outros ordenamentos, em relação a este e a outros pontos controvertidos do Estatuto. O ordenamento jurídico italiano, por exemplo, contempla a pena de prisão perpétua, denominada ergastolo (art. 22 do Código Penal Italiano), razão pela qual não há qualquer óbice constitucional em relação à ratificação, pela República Italiana, de instrumento internacional com a previsão de pena semelhante, como no caso presente.

18 O que não deixa de causar espécie e gerar preocupações, haja vista afastar-se o TPI de um direito penal do fato e consagrar critérios denunciadores de um direito penal do autor. Além disso, critérios tão subjetivos podem implicar em ser um fato considerado grave o suficiente para justificar a pena máxima para o indivíduo a e, em circunstâncias semelhantes, não o ser em relação a um indivíduo b. Por outro lado, parece que princípio comezinhos de Direito Penal foram esquecidos. BECCARIA já ensinou há tempos que a eficácia do direito penal depende muito mais da certeza da punição do que da gravidade da pena.

19 Idem, ibidem, p. 128.

20 TOKANO, Tércio, As contradições do Tribunal Penal Internacional.

21 LEGRAND, Pierre. Artigo «Sur l’analyse différentielle des juriscultures», In Revue Internationale de Droit Comparé, Paris: v. 51, 1999, p. 1053-1071.

22 "Artigo 2 - Expressões Empregadas

[...]

d) ‘reserva’ significa uma declaração unilateral, qualquer que seja a sua redação ou denominação, feita por um Estado ao assinar, ratificar, aceitar ou aprovar um tratado, ou a ele aderir, com o objetivo de excluir ou modificar o efeito jurídico de certas disposições do tratado em sua aplicação a esse Estado; [...]"

23 LAMBERT, Jean-Marie, Curso de Direito Internacional Público, vol. II, parte geral, p. 72.

24 Até mesmo em virtude da paridade hierárquico-normativa entre as leis ordinárias federais e os instrumentos internacionais, sufragada pelo Pretório Excelso.

25 O que constituiria, indubitavelmente, ilícito internacional em razão de ter o país ratificado o instrumento, mas solução que se-nos afigura menos gravosa do que rasgar a Constituição.

26 Pode causar espécie termos nos valido do referido instrumento internacional para conceituar reserva linhas atrás e afirmarmos, neste passo, por sua inaplicabilidade em relação ao Brasil. Ocorre que, naquele ponto, valemo-nos tão-somente do conceito do instituto, adotado pelo principal instrumento do Direito dos Tratados no sistema onusiano, como poderíamos nos valer de qualquer conceito doutrinário ou mesmo jurisprudencial (da Corte Internacional de Justiça, por exemplo).

27 "Artigo 86 Obrigação Geral de Cooperar

Os Estados Partes deverão, em conformidade com o disposto no presente Estatuto, cooperar plenamente com o Tribunal no inquérito e no procedimento contra crimes da competência deste.

[...]

Artigo 88 Procedimentos Previstos no Direito Interno

Os Estados Partes deverão assegurar-se de que o seu direito interno prevê procedimentos que permitam responder a todas as formas de cooperação especificadas neste Capítulo."

28 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, art. 60 § 4º, IV.

29 Nem se objete o fato de que os instrumentos referem-se à Cultura exclusivamente, uma vez que o ordenamento jurídico deita suas raízes justamente na denominada juriscultura, a qual varia de país para país ou de povo para povo consideravelmente, e a qual não pode ser desconsiderada. Sobre o tema ver o artigo de PIERRE LEGRAND citado nas referências bibliográficas.

30 LASSALE, Ferdinand, O que é uma Constituição?, p. 49.

31 Sobre o tema, ver artigo de nossa lavra intitulado "O que é inconstitucionalidade ideológica?". Vide referências bibliográficas.

32 Note-se bem: não fosse a natureza de cláusula pétrea, imutável, dos dispositivos constitucionais afetados pelo tratado, entenderíamos pelo dever do Estado-parte em reformar seu direito interno, ainda que constitucional, para conformá-lo às exigências do instrumento internacional, em respeito ao art. 88 do Estatuto, caso em que ainda ficaria patente o retrocesso em matéria de direitos fundamentais, abrindo-se um precedente para novas a novas reformas com vistas a aumentar as hipóteses sujeitas a penas perpétuas e o mais. Em se tratando de cláusulas constitucionais imodificáveis, no entanto, a intransigência nos termos do Estatuto acarretou sua inaplicabilidade em nosso ordenamento. Trata-se de conflito entre a norma constitucional do art. 60 § 4º IV da Constituição da República com o art. 120 do Estatuto, conflito este no qual, necessariamente, deve prevalecer a primeira.

33 Registre-se, no entanto, desde logo, que a crítica a que se faz referencia neste ponto é relativa à vulgarização e banalização do método da ponderação, e na conseqüente banalização da relativização dos direitos fundamentais, que vem quase que inconscientemente sendo içado ao primeiro plano das argumentações jurídicas, utilizado a priori, quando somente seria admissível como ultima ratio.

34 E exemplos de delitos graves, com muitas vítimas e com autores de grande periculosidade não faltarão, basta lembrar-se de recentes episódios envolvendo organizações criminosas ou traficantes de renome internacional. A properarem teses como a presente, poderão vir se legitimar práticas que se pretendiam banidas. Afinal, num juízo de ponderação entre a vida das vítimas inocentes e a integridade física e psicológica de terroristas perigosos, não seria admissível a prática da tortura?

35 HESSE, Konrad, A força normativa da Constituição, p. 28.

36 MENDES, Gilmar Ferreira, nota n. I à tradução de A Força Normativa da Constituição, p. 33.

37 TOKANO, Tércio, As contradições do Tribunal Penal Internacional.

38 PIOVESAN, Flávia, Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional, p. 99-100.

39 Hipótese na qual vigora o Princípio da Primazia da Norma mais favorável, conforme já visto.

40 Idem, ibidem, p. 104.

41 ALEXY, Robert, Teoria da Argumentação Jurídica, p. 5.

42 Idem, ibidem, p. 5.


Autores

  • Luis Fernando Sgarbossa

    Doutor e Mestre em Direito pela UFPR. Professor do Mestrado em Direito da UFMS. Professor da Graduação em Direito da UFMS/CPTL.

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  • Geziela Jensen

    Geziela Jensen

    Mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Membro da Société de Législation Comparée (SLC), em Paris (França) e da Associazione Italiana di Diritto Comparato (AIDC), em Florença (Itália), seção italiana da Association Internationale des Sciences Juridiques (AISJ), em Paris (França). Especialista em Direito Constitucional. Professora de Graduação e Pós-graduação em Direito.

    é autora de obra publicada por Sergio Antonio Fabris Editor (Porto Alegre).

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SGARBOSSA, Luis Fernando; JENSEN, Geziela. As opções políticas do Estatuto de Roma e seu impacto em relação ao regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1152, 27 ago. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8849. Acesso em: 24 abr. 2024.