FLAGRANTE DELITO EM CRIME PERMANENTE E ENTRADA DA POLÍCIA EM RESIDÊNCIA SEM ORDEM JUDICIAL

04/03/2021 às 14:55
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O ARTIGO DISCUTE SOBRE A QUESTÃO DA PRISÃO EM FLAGRANTE EM CRIME PERMANENTE SEM ORDEM JUDICIAL E RECENTES DECISÕES DO STF E DO STJ.

FLAGRANTE DELITO EM CRIME PERMANENTE E ENTRADA DA POLÍCIA EM RESIDÊNCIA SEM ORDEM JUDICIAL

Rogério Tadeu Romano

É sabido que em se tratando de crime permanente, como é o caso do tráfico de entorpecentes, a polícia pode realizar a prisão em flagrante sem mandato judicial.

Tem-se algumas decisões:

TRÁFICO DE ENTORPECENTES. PRISÃO EM FLAGRANTE. PROVA ILÍCITA. 1. Cuidando-se de crime de natureza permanente, a prisão do traficante, em sua residência, durante o período noturno, não constitui prova ilícita. Desnecessidade de prévio mandado de busca e apreensão. 2. HC indeferido. (STF, HC 84772/MG, HABEAS CORPUS, Relatora: Ministra ELLEN GRACIE, Julgamento: 19/10/2004, Órgão Julgador: Segunda Turma, Publicação: DJ 12-11-2004 PP-00041 EMENT VOL-02172-02 PP-00336 RT v. 94, nº 832, 2005, p. 474-476).


CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS-CORPUS. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. CRIME PERMANENTE. FLAGRANTE. BUSCA E APREENSÃO. - Tratando-se de tráfico de entorpecentes, na modalidade "ter em depósito", delito de natureza permanente, no qual a consumação se prolonga no tempo e, consequentemente, persiste o estado de flagrância, admite-se, ainda que em período noturno, o ingresso da Polícia na casa em que está sendo praticado tal crime, com a consequente prisão dos agentes do delito e apreensão do material relativo à prática criminosa. - Habeas-corpus denegado.(STJ HC 21392 MG 2002/0035264-4, Relator: Ministro VICENTE LEAL, Data de Julgamento: 21/10/2002, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJ 18.11.2002 p. 296).

HABEAS CORPUS. DIREITO PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. SUPRESSÃO. EXCESSO DE PRAZO. INSTRUÇÃO CRIMINAL ENCERRADA. INVASÃO DE DOMICÍLIO. CRIME PERMANENTE. DESNECESSIDADE DE MANDADO DE BUSCA E APREENSÃO. CONSTRANGIMENTO INCARACTERIZADO.1. Não se conhece de pedido de habeas corpus, quando as matérias objeto da impetração não se constituíram em decisão da Corte de Justiça Estadual, pena de supressão de um dos graus de jurisdição (Constituição Federal, artigo 105, inciso I, alínea c).. "Encerrada a instrução criminal, fica superada a alegação de constrangimento por excesso de prazo." (Súmula do STJ, Enunciado nº 52).3. A Constituição Federal, assegurando a inviolabilidade do domicílio (artigo 5º, inciso XI), não o faz de modo absoluto, inserindo, no rol das exceções à garantia, o caso de flagrante delito. Em se cuidando de tráfico ilícito de entorpecentes, delito de natureza permanente, protrai o estado de flagrância, a consequencializar a desnecessidade de mandado judicial em caso de flagrante delito.5. Ordem conhecida, em parte, e denegada, julgando prejudicada a alegação de excesso de prazo. (STJ HC 40056 SP 2004/0171301-0, Relator: Ministro HAMILTON CARVALHIDO, Data de Julgamento: 30/06/2005, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJ 05/09/2005 p. 493)


No passado, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 82316/PR, Relator Ministro Sydney Sanches, DJ de 9 de maio de 2003, entendeu que caracterizado o delito de tráfico de entorpecentes, espécie de crime permanente, cuja permanência é própria, podem os agentes públicos adentrar o domicilio do suspeito, independente de mandado judicial, para reprimir e fazer cessar a ação delituosa.

Ensinou Fabbrini Mirabete(Código de Processo Penal interpretado, 8ª edição, 2001, pág. 538) sobre a desnecessidade de mandado de busca e apreensão nos chamados crimes permanentes.

No mesmo sentido tem-se decisão do Superior Tribunal de Justiça, no HC 40056/SP, Relator Ministro Hamilton Carvalhido, DJ de 5 de setembro de 2005, pág. 493):

"HABEAS CORPUS. DIREITO PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. SUPRESSÃO. EXCESSO DE PRAZO. INSTRUÇÃO CRIMINAL ENCERRADA. INVASÃO DE DOMICÍLIO. CRIME PERMANENTE. DESNECESSIDADE DE MANDADO DE BUSCA E APREENSÃO. CONSTRANGIMENTO INCARACTERIZADO.
(...)
3. A Constituição Federal, assegurando a inviolabilidade do domicílio (artigo 5º, inciso XI), não o faz de modo absoluto, inserindo, no rol das exceções à garantia, o caso de flagrante delito.
4. Em se cuidando de tráfico ilícito de entorpecentes, delito de natureza permanente, protrai o estado de flagrância, a conseqüencializar a desnecessidade de mandado judicial em caso de
flagrante delito.
5. Ordem conhecida, em parte, e denegada, julgando prejudicada a alegação de excesso de prazo."

São conhecidas as chamadas “batidas policiais” principalmente em moradias de famílias de baixa renda, em que a polícia prende à sorrelfa, sob o argumento de que se trata de crime permanente mesmo não tendo ordem policial.

Grupos sociais nessa situação terminam estigmatizados vendo-se neles a presença de potenciais criminosos.

São frequentes e notórias as notícias de abusos cometidos em operações e diligências policiais, quer em abordagens individuais, quer em intervenções realizadas em comunidades dos grandes centros urbanos. É, portanto, ingenuidade, academicismo e desconexão com a realidade conferir, em tais situações, valor absoluto ao depoimento daqueles que são, precisamente, os apontados responsáveis pelos atos abusivos. E, em um país conhecido por suas práticas autoritárias –não apenas históricas, mas atuais –, a aceitação desse comportamento compromete a necessária aquisição de uma cultura democrática de respeito aos direitos fundamentais de todos, independentemente de posição social, condição financeira, profissão, local da moradia, cor da pele ou raça.

O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu, na sessão do dia 5 do mês de novembro de 2015,  o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 603616, com repercussão geral reconhecida, e, por maioria de votos, firmou a tese de que “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados”.

A tese deve ser observada pela demais instâncias do Poder Judiciário e aplicadas aos processos suspensos (sobrestados) que aguardavam tal definição. De acordo com o entendimento firmado, entre os crimes permanentes, para efeito de aplicação da tese, estão o depósito ou porte de drogas, extorsão mediante sequestro e cárcere privado, ou seja, situações que exigem ação imediata da polícia.

O inciso XI do artigo 5º da Constituição Federal dispõe que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. No recurso que serviu de paradigma para a fixação da tese, um cidadão questionava a legalidade de sua condenação por tráfico de drogas, decorrente da invasão de sua casa por autoridades policiais sem que houvesse mandado judicial de busca e apreensão. Foram encontrados 8,5 kg de cocaína no veículo de sua propriedade, estacionado na garagem. A polícia foi ao local por indicação do motorista de caminhão que foi preso por transportar o restante da droga. De acordo com o entendimento majoritário do Plenário, e nos termos do artigo 33 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), ter entorpecentes em depósito constitui crime permanente, caracterizando, portanto, a condição de flagrante delito a que se refere o dispositivo constitucional.

Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes afirmou que a busca e apreensão domiciliar é claramente uma medida invasiva, mas de grande valia para a repressão à prática de crimes e para investigação criminal. O ministro admitiu que ocorrem abusos – tanto na tomada de decisão de entrada forçada quanto na execução da medida – e reconheceu que as comunidades em situação de vulnerabilidade social muitas vezes são vítimas de ingerências arbitrárias por parte de autoridades policiais.

A inviolabilidade de sua morada é uma das expressões do direito à intimidade do indivíduo, o qual, sozinho ou na companhia de seu grupo familiar, espera ter o seu espaço íntimo preservado contra devassas indiscriminadas e arbitrárias, perpetradas sem os cuidados e os limites que a excepcionalidade da ressalva a tal franquia constitucional exige.1.2. O direito à inviolabilidade de domicílio, dada a sua magnitude e seu relevo, é salvaguardado em diversos catálogos constitucionais de direitos e garantias fundamentais. Célebre, a propósito, a exortação de Conde Chatham, ao dizer que: “O homem mais pobre pode em sua cabana desafiar todas as forças da Coroa. Pode ser frágil, seu telhado pode tremer, o vento pode soprar por ele, a tempestade pode entrar, a chuva pode entrar, mas o Rei da Inglaterra não pode entrar!" ("The poorest man may in his cottage bid defiance to all the forces of the Crown. It may be frail, its roof may shake, the wind may blow through it, the storm may enter, the rain may enter, but the King of England cannot enter!" William Pitt, Earl of Chatham. Speech, March 1763, in Lord Brougham Historical Sketches of Statesmen in the Time of George III First Series (1845) v. 1).

O Supremo Tribunal Federal definiu, em repercussão geral (Tema 280), a tese de que: “A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori” (RE n. 603.616/RO, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJe 8/10/2010). Em conclusão a seu voto, o relator salientou que a interpretação jurisprudencial sobre o tema precisa evoluir, de sorte a trazer mais segurança tanto para os indivíduos sujeitos a tal medida invasiva quanto para os policiais, que deixariam de assumir o risco de cometer crime de invasão de domicílio ou de abuso de autoridade, principalmente quando a diligência não tiver alcançado o resultado esperado.

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que os agentes policiais, caso precisem entrar em uma residência para investigar a ocorrência de crime e não tenham mandado judicial, devem registrar a autorização do morador em vídeo e áudio, como forma de não deixar dúvidas sobre o seu consentimento. A permissão para o ingresso dos policiais no imóvel também deve ser registrada, sempre que possível, por escrito.

O colegiado estabeleceu o prazo de um ano para o aparelhamento das polícias, o treinamento dos agentes e demais providências necessárias para evitar futuras situações de ilicitude que possam, entre outros efeitos, resultar em responsabilização administrativa, civil e penal dos policiais, além da anulação das provas colhidas nas investigações.

Seguindo o voto do relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, a turma concedeu habeas corpus – requerido pela Defensoria Pública de São Paulo – ​para anular prova obtida durante invasão policial não autorizada em uma casa e absolver um homem condenado por tráfico de drogas. Os policiais alegaram que tiveram autorização do morador para ingressar na casa – onde encontraram cerca de cem gramas de maconha –, mas o acusado afirmou que os agentes forçaram a entrada e que ele não teve como se opor.

"A situação versada neste e em inúmeros outros processos que aportam nesta corte superior diz respeito à própria noção de civilidade e ao significado concreto do que se entende por Estado Democrático de Direito, que não pode coonestar, para sua legítima existência, práticas abusivas contra parcelas da população que, por sua topografia e status social, costumam ficar mais suscetíveis ao braço ostensivo e armado das forças de segurança", afirmou o relator.

Segundo ele, deve ser vista com muita reserva a afirmação usual de que o morador concordou livremente com o ingresso dos policiais, principalmente quando a diligência não é acompanhada de documentação capaz de afastar dúvidas sobre sua legalidade.

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O julgamento se deu no HC 598051.

Ao firmar o precedente, a Sexta Turma estabeleceu cinco teses centrais:

1) Na hipótese de suspeita de crime em flagrante, exige-se, em termos de standard probatório para ingresso no domicílio do suspeito sem mandado judicial, a existência de fundadas razões (justa causa), aferidas de modo objetivo e devidamente justificadas, de maneira a indicar que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito.

2) O tráfico ilícito de entorpecentes, em que pese ser classificado como crime de natureza permanente, nem sempre autoriza a entrada sem mandado no domicílio onde supostamente se encontra a droga. Apenas será permitido o ingresso em situações de urgência, quando se concluir que do atraso decorrente da obtenção de mandado judicial se possa, objetiva e concretamente, inferir que a prova do crime (ou a própria droga) será destruída ou ocultada.

3) O consentimento do morador, para validar o ingresso de agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação.

4) A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato. Em todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo, e preservada tal prova enquanto durar o processo.

5) A violação a essas regras e condições legais e constitucionais para o ingresso no domicílio alheio resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal dos agentes públicos que tenham realizado a diligência.

A posição defendida pelo ministro Rogerio Schietti Cruz – no sentido de que a gravação audiovisual e o registro escrito da autorização do morador, além de confirmarem a licitude da prova obtida, trarão proteção tanto para o residente quanto para os policiais – teve como base precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) e de cortes estrangeiras, especialmente dos Estados Unidos, da França, Espanha e de Portugal.

Somente o flagrante delito que traduza verdadeira urgência legitima o ingresso em domicílio alheio, como se infere da própria Lei de Drogas (L. 11.343/2006, art. 53, II) e da Lei 12.850/2013 (art. 8º), que autorizam o retardamento da atuação policial na investigação dos crimes de tráfico de entorpecentes, a denotar que nem sempre o caráter permanente do crime impõe sua interrupção imediata a fim de proteger bem jurídico e evitar danos; é dizer, mesmo diante de situação de flagrância delitiva, a maior segurança e a melhor instrumentalização da investigação –e, no que interessa a este caso, a proteção do direito à inviolabilidade do domicílio –justificam o retardo da cessação da prática delitiva.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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