Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/89438
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Inconstitucionalidades pandêmicas

Inconstitucionalidades pandêmicas

Publicado em . Elaborado em .

Reflexão sobre inconstitucionalidades de medidas adotadas pelos governates

INCONSTITUCIONALIDADES PANDEMICAS.

 INTRODUÇÃO

É de conhecimento geral que o mundo passa por uma pandemia e que cuidados de higiene básicas como lavar as mão, não levar as mãos aos olhos, boca ou nariz, devem ser observados.

Também é de conhecimento público que além das medidas de higiene deve-se tomar medidas de prevenção, como evitar o contato próximo, mantendo um distanciamento social, usando máscaras, e se possível óculos ou viseira para evitar contaminações.

Todavia ao que pese tudo isso as medidas impostas para evitar a circulação do virús geram efeitos no mundo jurídico. Mas será que algumas dessas medidas podem ser consideradas inconstitucionais?

Em tempos de pandemias o que mais se vê no Brasil são inconstitucionalidades, que por muitas vezes tem feridos princípios básicos da República, cominando inclusive no desequilíbrio do arranjo de poderes, e consequentemente atentando contra os pilares da República e da própria democracia.

Dentre as inconstitucionalidades menores que pode ser citada, está o fato da imposição do uso de mascara por meio de instrumento inadequado (decreto), visto que a Constituição estabelece em seu Art. 5º II, que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

Assim é evidente que instrumento para impor o uso de máscara seria a lei, mas não bastasse essa inconstitucionalidade, vários outros direitos constitucionais tem sido feridos por meio de restrições impostas por chefes do executivo municipal e estadual.

TRABALHO UM FUNDAMENTO DA REPUBLICA.

A Constituição Federal traz em seu artigo 1º os fundamentos da República, quais são: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa; V – o pluralismo político.

Dentre esses fundamentos vamos falar mais detidamente sobre “os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa

A Constituição de 88 ao trazer os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa como fundamentos da república, o faz pelo grande valor e importância do trabalho, que é a mola propulsora da economia, e traz sustento a todo cidadão de forma individual e também coletiva, vez que o trabalho é que gera dividendos ao Estado por meio dos tributos. Assim o fundamento do trabalho, está diretamente ligado ao fundamento da dignidade da pessoa humana, bem como ao fundamento da cidadania, pois o trabalho é quem promove sustento digno ao cidadão, que não dependerá de terceiros para provê-lo. Quanto a cidadania, a liberdade e livre iniciativa é direito fundamental de qualquer cidadão.

Nesse diapasão a Constituição em seu artigo 5º XIII, traz o trabalho como um dos direitos individuais e coletivos: Art. 5º XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, oficio ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.

Ainda além de ter o trabalho como fundamento, como direito individual a Constituição o tutela como direito social:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma da Constituição.

 A Constituição também entende que o trabalho é fundamental para a Ordem Econômica.

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I - soberania nacional;

II - propriedade privada;

III - função social da propriedade;

IV - livre concorrência;

V - defesa do consumidor;

VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;

VII - redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII - busca do pleno emprego;

IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

O trabalho ainda é tido como base da Ordem Social.

Art. 193 A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem estar e a justiça sociais.

 

Assim pode-se concluir que o trabalho é fundamental para a estruturação da sociedade e da dignidade do cidadão, por tal motivo a Constituição lhe garante tamanha proteção.

 

Ocorre que por ocasião da pandemia de COVID – 19, que alardeia o planeta diversas decisões tem sido tomadas na tentativa de evitar o trânsito de pessoas e a possível propagação do vírus.

Dentre as medidas de distanciamento social e as de restrição de circulação duas tem gerados maiores repercussões: as que impõe restrições ao comercio, determinando fechamento de certos seguimentos, e o toque de recolher estabelecido em alguns municípios.

Lançando um olhar voltado para as questões relativas ao fechamento de comércio, é possível se deparar com um conflito de interesses, quais seja o direito ao trabalho, e o direito a saúde que em tese estaria sendo ameaçado pelo exercício de determinada atividade econômica.

Ocorre que muito embora haja a necessidade de um certo nível de isolamento social para se evitar a propagação do vírus é também de conhecimento geral que o isolamento não elimina o vírus, todavia diminui sua velocidade de propagação, por outro lado o fechamento por tempos longos de estabelecimentos comerciais pode e tem causados danos estratosféricos a economia e por conseguinte ao trabalho e emprego.

Observe que não se trata de negar o direito a saúde, mas sim de garantir o direito a vida e a vida digna, pois o trabalho é fundamental para a dignidade do ser humano, que deseja se sentir útil e produtivo, exercendo sua plena capacidade de trabalho, o que faz com que as restrições impostas por períodos longos pelos prefeitos e governadores firam o direito não só ao trabalho, mas fira o direito da dignidade do cidadão sujeito a sua jurisdição.

Outro ponto que deve ser tocado é o fato que, os decretos de restrições impostos em nome da saúde, parecem ferir o próprio direito a saúde, na medida em que segundo a própria OMS o conceito de saúde é “(Saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a mera ausência de doença ou enfermidade)[1]”. O que nos faz compreender que saúde é muito além de não se sentir mau, mas também estar mentalmente e socialmente são, e para isso o trabalho é fundamental, conforme reconhece a própria constituição.

Nesse sentido muito mais do que impedir o trabalho, talvez o gestor público deveria impor e fiscalizar o cumprimento de medidas de seguranças, tais como: restrição de pessoas dentro de um determinado ambiente, ajuste no horário do comércio de forma que atendendo em horário estendido o público seja diluído durante o período de funcionamento do comércio.

DIREITO DE LIVRE LOCOMOÇÃO

Não bastasse as restrições ao trabalho, alguns chefes do executivo estadual e municipal implementaram por meio de decreto ou lei uma espécie de toque de recolher, onde as pessoas que são vistas na rua após determinado horário são orientadas a voltarem para suas casas, o que figura verdadeiro absurdo perante a Constituição.

A Constituição garante a todo cidadão o livre transito no território nacional, que pode entrar e sair a qualquer tempo, conforme Art. 5º inciso XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;

Veja que a Constituição estabeleceu que em tempos de paz a circulação no território nacional é livre, portanto qualquer pessoa tem a liberdade de circular em seu município, adentrar ou sair de outro município, ou Estado da Federação, e qualquer imposição contrária a isso fere flagrantemente a Constituição.

Ainda que o poder público restrinja vagas em hotéis e hospedagens o poder público não possui autonomia constitucional para exigir comprovante de endereço, reserva ou qualquer outro documento para impedir a entrada de um cidadão brasileiro em determinado município, assim é flagrantemente inconstitucional qualquer decreto ou lei nesse sentido.

Tão absurdo quanto ao toque de recolher e a proibição ou restrição de entradas em certos municípios, é a proibição de que determinados grupos, ou grupos considerados não essenciais, circulem no transporte coletivo em determinados horários. Tal medida foi adotada em alguns municípios, onde para utilizar o transporte coletivo nos horários considerados de pico, o cidadão deve ter um cadastro prévio demonstrando que sua atividade é essencial, quem não exercer uma atividade assim considerada deve aguardar para circular em outros horários, sem mencionar a suspensão do transporte público em outras localidades, causando verdadeira humilhação a quem depende desse transporte que já historicamente tem qualidade ruim...

Medidas assim ferem frontalmente a Constituição, pois fere o direito de livre circulação e o fundamento da dignidade da pessoa humana, vez que o cidadão que depende desse tipo de transporte o utiliza não por comodidade mas sim por necessidade.

Ademais restrições de circulação somente podem ser impostas pelo Presidente da República e com autorização do Congresso Nacional, no caso de estado de sítio, conforme se verifica da leitura dos artigos 137 a 139

 Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de:

I - comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa;

II - declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.

Art. 138. O decreto do estado de sítio indicará sua duração, as normas necessárias a sua execução e as garantias constitucionais que ficarão suspensas, e, depois de publicado, o Presidente da República designará o executor das medidas específicas e as áreas abrangidas.

§ 1º O estado de sítio, no caso do art. 137, I, não poderá ser decretado por mais de trinta dias, nem prorrogado, de cada vez, por prazo superior; no do inciso II, poderá ser decretado por todo o tempo que perdurar a guerra ou a agressão armada estrangeira.

§ 2º Solicitada autorização para decretar o estado de sítio durante o recesso parlamentar, o Presidente do Senado Federal, de imediato, convocará extraordinariamente o Congresso Nacional para se reunir dentro de cinco dias, a fim de apreciar o ato.

§ 3º O Congresso Nacional permanecerá em funcionamento até o término das medidas coercitivas.

Art. 139. Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas:

I - obrigação de permanência em localidade determinada;

II - detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns;

III - restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei;

IV - suspensão da liberdade de reunião;

V - busca e apreensão em domicílio;

VI - intervenção nas empresas de serviços públicos;

VII - requisição de bens.

Parágrafo único. Não se inclui nas restrições do inciso III a difusão de pronunciamentos de parlamentares efetuados em suas Casas Legislativas, desde que liberada pela respectiva Mesa.

Da leitura dos artigos acima é possível perceber que a restrição quanto a locomoção só pode ser realizada em Estado sítio, e que esse deve ser feito pelo Presidente da República com autorização Congresso Nacional, não podendo ter duração superior a 30 (trinta) dias.

A CASA É ASILO INVIOLAVEL

A Constituição estabelece que a casa é asilo inviolável:

Art. 5º XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;

Da mesma sorte proibição de reuniões familiares com grupos pequenos de pessoas, com 07 ou 10 pessoas tem sido impedidas em algumas localidades, sob a alegação de aglomeração. Hora decreto municipal ou estadual, algum tem o direito de impedir um cidadão de receber no seio de sua residência seus familiares ou amigos.

Bem verdade é que deve ser guardada as medidas de isolamento social, mas perceba que aqui não se trata de uma evento ou grande festas, mas grupos de 7 ou 10 pessoas dentro de uma residência privada, sendo dispersas é algo que fere frontalmente a Constituição.

CONCLUSÃO

Não se pretende aqui de forma alguma incentivar aglomerações ou negar a existência do vírus, mas apenas trazer certo nível critico de reflexão sobre as normas constitucionais, e as medidas impostas para evitar a circulação do vírus, que tem ceifado tantas vidas.


[1] https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5263:opas-oms-apoia-governos-no-objetivo-de-fortalecer-e-promover-a-saude-mental-da-populacao&Itemid=839#:~:text=A%20constitui%C3%A7%C3%A3o%20da%20Organiza%C3%A7%C3%A3o%20Mundial,de%20transtornos%20mentais%20ou%20defici%C3%AAncias.



Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelo autor. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi.