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A NOVA LEI DE LICITAÇÃO E O COMBATE AO “JURIDIQUÊS”.

A NOVA LEI DE LICITAÇÃO E O COMBATE AO “JURIDIQUÊS”.

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Trata-se de artigo que analisa o "juridiquês" como um obstáculo ao acesso à justiça e como a nova Lei de Licitação e Contratos Administrativos traz dispositivo para combater o problema.

          A NOVA LEI DE LICITAÇÃO E O COMBATE AO “JURIDIQUÊS”.

 

Diversos são os obstáculos encontrados para garantir o acesso à justiça, ou acesso aos direitos por parte da população de um modo geral, principalmente paras as pessoas com poucas condições financeiras, sendo para Boaventura de Souza Santos o acesso à justiça o tema que mais diretamente faz uma equação entre o processo civil e a desigualdade socioeconômica (SANTOS, 2013, p.205).

Um dos obstáculos existentes é o chamado “juridiquês” (FRÖHLICH, 2015, p.215), ou a língua falada nos tribunais. Tanto as leis brasileiras, como os operadores do Direito como as próprias decisões judiciais possuem um linguajar diferenciado, muitas vezes, como lembra o professor Francisco Caetano Pereira, com a presença do latim, em virtude da influência do Direito Romano e do Direito Canônico (PEREIRA, 2004, p.6), o que acaba dificultando o acesso à justiça por parte dos leigos, principalmente devido ao fato da população brasileira, de uma maneira geral, ter um baixo nível de instrução, sendo o Direito, assim como afirma Tércio Sampaio Ferraz Junior, “acessível apenas a uns poucos especialistas.” (FERRAZ JUNIOR, 2003, p.32), corroborando com a cultura de que os oprimidos se considerem os que não sabem nada, diferentemente dos “doutores” que devem ser escutados (FREIRE, 2014, p.69).

Nesse sentido, Pierre Bourdieu, no seu livro “O Poder Simbólico”, afirma:

 

A constituição do campo jurídico é inseparável da instauração do monopólio dos profissionais sobre a produção e a comercialização desta categoria particular de produtos que são serviços jurídicos. A competência jurídica é um poder específico que permite que se controle o acesso ao campo jurídico, determinando os conflitos que merecem entrar neles e a forma específica de que se devem revestir para se constituírem em debates propriamente jurídicos: só ela pode fornecer os recursos necessários para fazer trabalho de construção que, mediante uma seleção das propriedades pertinentes, permite reduzir a realidade à sua definição jurídica, essa ficção eficaz (BOURDIEU, 1998, 233).

 

Desse modo, só tem acesso ao “campo jurídico” aqueles que os operadores do direito permitem o seu ingresso e na medida e na forma dos interesses desses profissionais. A dificuldade em se compreender o Direito é uma forma de garantir aos profissionais da referida área o monopólio sobre a resolução dos conflitos, fazendo prevalecer os interesses meramente corporativistas em detrimento dos interesses da sociedade de um modo geral. 

Em verdade, Bice Mortara Garavelli frisa que não há uma língua própria do direito, mas sim uma reutilização de termos especializados da língua ordinária (GARAVELLI, 2001, p.11), o que, de qualquer forma, torna mais difícil a interpretação dos termos jurídicos em comparação com os falados e escritos pela população em geral.

É dentro dessa linha de raciocínio que Mauro Cappelletti traz como um dos obstáculos para o acesso à justiça a “Aptidão para Reconhecer um Direito e propor uma Ação ou Sua Defesa” (CAPPELLETTI E GARTH, 2002, p.22).

Também nesse sentido, José Cichocki Neto afirma em seu livro “Limitações do acesso à justiça”:

Sob essa ótica, o acesso à justiça não implica somente na existência de um ordenamento jurídico regulador das atividades individuais e sociais mas, concomitantemente, na distribuição legislativa justa dos direitos e faculdades substanciais. Assim, no conceito de acesso à justiça, compreende-se toda a atividade jurídica, desde a criação de normas jurídicas, sua interpretação, integração e aplicação, com justiça. É exatamente nesse sentido mais amplo que deve ser tomada a expressão acesso à justiça (CICHOCKI NETO, 2005, p. 63). (Grifos de Agora)

 

Desta feita, claro está que o “juridiquês” é um mal que deve ser combatido. Urge a necessidade de que os operadores busquem escrever de forma cada mais acessível para permitir o entendimento dos documentos jurídicos por parte de todos os interessados.

Dentro desse panorama, a recentíssima Lei 14.133/21, que é a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, traz o seguinte dispositivo:

Art. 53. Ao final da fase preparatória, o processo licitatório seguirá para o órgão de assessoramento jurídico da Administração, que realizará controle prévio de legalidade mediante análise jurídica da contratação.

§ 1º Na elaboração do parecer jurídico, o órgão de assessoramento jurídico da Administração deverá:

I - apreciar o processo licitatório conforme critérios objetivos prévios de atribuição de prioridade;

II - redigir sua manifestação em linguagem simples e compreensível e de forma clara e objetiva, com apreciação de todos os elementos indispensáveis à contratação e com exposição dos pressupostos de fato e de direito levados em consideração na análise jurídica; (grifos nossos).

 

Desse modo, conforme se percebe, a lei em testilha expressamente determina que os procuradores dos órgãos públicos deixem o ‘juridiquês” de lado e escrevam de forma compreensível, clara e objetiva para todos os envolvidos.

Talvez possa se pensar que o referido dispositivo legal não tenha maiores efeitos práticos, porém, em verdade, achamos o mesmo um verdadeiro avanço, uma vez que adotar um linguajar não acessível nos casos em testilha será efetivamente um desrespeito ao expressamente determinado em lei, o que pode gerar consequências de ordem administrativa.

No mais, a preocupação do legislador em inibir o “juridiquês” é uma demonstração clara de que esse último não deve ser mais tolerado.

 

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 2 ed. [Tradução de Fernando Tomaz(português de Portugal)]. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

BRASIL, Lei nº 14.133/2021, de 1º de Abril de 2021. Institui a Nova Lei de Licitação e Contratos Administrativos. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm. Acesso em: 05 de abril de 2021.

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2002.

CICHOCKI NETO, José. Limitações do acesso à justiça. Curitiba: Juruá. 2005.

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 58ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2014.

FRÖHLICH, Luciane. Redação jurídica objetiva: o juridiquês no banco dos réus. Revista da ESMESC. V. 22. N. 28, 2015. Disponível na internet em https://revista.esmesc.org/revi

vista.esmesc.org.br/re a.esmesc.org.br/re/article/view/128 . [211-236].

GARAVELLI, Bice Mortara. Le parole e la giustizia: divagazioni grammaticali e retoriche su testi giuridici italiani. Torino: Giulio Einaudi, 2001.

PEREIRA, Francisco Caetano. O latim no discurso jurídico. 124 fls. Trabalho de Pesquisa de pós-doutorado. Departamento de Letras do Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 30 de junho de 2004

SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o Social e o político na pós-modernidade. 7 ed. São Paulo: Cortez, 2000.

 

 


Autor

  • Ricardo Russell Brandão Cavalcanti

    Doutor em Ciências Jurídicas-Públicas pela Universidade do Minho, Braga, Portugal (subárea: Direito Administrativo) com título reconhecido no Brasil pela Universidade de Marília. Mestre em Direito, Processo e Cidadania pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Ciência Política pela Faculdade Prominas. Especialista em Direito Administrativo, Constitucional e Tributário pela ESMAPE/FMN. Especialista em Filosofia e Sociologia pela FAVENI. Especialista em Educação Profissional e Tecnologia pela Faculdade Dom Alberto. Capacitado em Gestão Pública pela FAVENI. Defensor Público Federal. Professor efetivo de Ciências Jurídicas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco - IFPE.

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