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Weber no mundo real/virtual

o direito à liberdade sem censura

Weber no mundo real/virtual: o direito à liberdade sem censura

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Queremos discutir como a "questão do direito no ciberespaço" é muito mais complexa do que a mera legislação restritiva, necessitando muito mais de um longo escorço de regras sociais de convivência e que permitam visualizar a idéia de expansão de direitos.

-A net inaugurou uma fase de negação do valor de troca ou de ampliação do potencial de dano?

-na rede, é possível ir além do direito ao consumo, criticando tanto o valor de troca quanto o valor de uso?

-O direito ao ciberespaço está livre de censura?

-na rede, é possível buscar "direitos políticos" além dos limites da infra-estrutura econômica capitalista?


...Votán-Zapata, luz que chegou de longe

...Nome que muda, homem sem rosto, luz que nos protege

...É e não é todos em nós

...Dono da noite...senhor da montanha

...um e muitos juntos. Ninguém e todos. Ficando chega.

Votán-Zapata, vigia e coração do povo...

(Subcomandante Marcos)


O texto é longo e tem inúmeros aportes com argumentos não-jurídicos ou meta-jurídicos (como se diz, para além do Estado), mas, se é necessário o referendo do direito,diríamos que se trata do "direito à liberdade no mundo real/virtual, porém, livre de toda censura totalitária".

No texto, também queremos discutir como a "questão do direito no ciberespaço" é muito mais complexa do que a mera legislação restritiva (liberdade negativa), necessitando muito mais de um longo escorço de regras sociais de convivência (não predatórias e competitivas) e que permitam visualizar-se a idéia de expansão de direitos — tendo-se a idéia-base de que a fruição desses direitos (livres da censura totalitária) beneficia a todo usuário, na condição realmente de sujeito coletivo.

O texto tem o formato de ensaio e trabalha sobretudo uma retórica que possa revelar algumas condições submersas ou apenas subentendidas do mundo real/virtual — quer revelar algumas condições virtuais não-visuais, como é o caso notório do chamado "potencial de dano". Portanto, como análise retórica, não se aplica a nenhum caso concreto ou sujeito em especial, porque, como na definição de virtual, todos somos aqui sujeitos (e objetos) virtuais, ou seja, potencialmente estamos todos ao alcance da análise.

Poder-se-ia dizer que se trata de uma análise ideológica da rede e de alguns de seus hábitos mais cotidianos, ou de uma ideologia dos hábitos de consumo reais/virtuais — critica-se muito o "valor de troca", mas quase nada o consumismo e o privatismo. De outro modo, há alguns mitos que serão enfrentados mais frontalmente, tais como: o software livre traz necessariamente mais liberdade. Por fim, apresenta-se a idéia da cibercultura que se renova no combate ao totalitarismo.

Portanto, apresentaremos duas hipóteses centrais à análise do texto, mas que, mais do que comprovar alguma delas, queremos colocar em discussão, provocar, novas investigações e inquietações acerca do mundo real/virtual. A própria escolha de Weber (e não Marx) já revela essa intenção, uma vez que, a análise da tecnologia como base do modo de produção capitalista já foi abordada exaustivamente.

Hipóteses:

1. A AÇÃO SOCIAL destaca A Crítica da Crítica Totalitária do Mundo real/virtual.

2. É preciso um direito à liberdade no mundo real/virtual, porém, livre de toda censura totalitária.


A liberdade no consumismo

Há expressões de liberdade no ciberespaço que procuram ir além das formas de consumo inovadoras (tipo MP3 [01]), que instigam uma consciência realmente coletiva na fabricação de formas alternativas de apropriação das riquezas e dos valores culturais na rede — isto é, há formas subversivas de abordagem da web e que atuam virtualmente [02] em busca de resultados políticos. Mas estas formas subversivas, coletivas, de inversão da lógica acumulativa (limitada ao valor de troca) são minoritárias, excepcionais, quase simbólicas (ao estilo do Linux). Poucos se utilizam da fonte ou do código aberto para produzir ainda mais liberdade, pois a maioria quer apenas furar a restrição do código fechado para obter mais vantagens pessoais — ou, o que daria no mesmo, a maioria quer mesmo é a ampliação das margens do valor de uso [03]. De outro modo, quando se pensa na cibercultura, como resultado de ações interativas e não apenas consumistas, o meio empregado (violação da segurança) e o resultado (negação dos direitos autorais) podem ser os mesmos, mas a intenção é completamente diferente: oposta, invertida. Na cibercultura, é como se se dissesse que é preciso pensar em termos de resultados ou de ganhos globais, que realmente interfiram na configuração do coletivo que perfaz o espaço público real/virtual. Na cibercultura, os resultados éticos e estéticos estão além da somatória dos gostos individuais, isto é, a cibercultura tem potencial para redesenhar o valor de uso, hoje limitado pelo consumismo.

No geral, são apenas sujeitos em busca de uma maneira satisfatória, luxuriosa de obter mais ou maior acesso aos bens virtuais: os milhões de consumidores que violam os códigos de barreira da indústria cultural e veiculam produtos pirateados não o fazem por consciência, como hackers revolucionários do sistema da Matrix, mas sim porque querem/precisam aderir ao status de consumidor, da mesma forma como se encontram todos os demais incluídos no mundo virtual. É uma guerra pelo consumo, uma saga de consumidores, sem componente político de transformação das relações sociais, desde que os níveis de consumo estejam atendidos.

O que há de novo nisso? Em que sentido alguns pensam este consumismo como nova radicalidade política? Afinal, o hacker é um Hobin Wood que desafia o valor de troca ou é apenas um consumidor defenestrado que luta como aloprado para se (re)inserir?

No fundo, o hacker e o craker são sujeitos políticos ou apenas mônadas (isoladas, liberalizantes do consumo) que se aplicam em (re)produzir seu potencial de consumo e de dano?

No geral, eles se parecem mais com sujeitos do consumo (pode ser do status, de quem viola mais sistemas de segurança) que alongam o potencial de dano já muito significativo da rede. Por que a maioria trabalha em empresas de segurança e à noite destroem o que fizeram de dia?

Mas o que é potencial de dano?


Potencial de dano

Potencial de dano, como fator de multiplicação, este sim, é o real componente de decomposição da lógica verticalizada, autoritária e previsível da sociedade de controle. Isto é, o potencial de dano tende a desafiar a sociedade de controle, porque é o componente exponencial atuando no interior de uma lógica binária (sempre fechada, se vista pelo ato de controle). No entanto, é preciso ter clareza de que este desafio, esta decomposição não implicam, necessariamente, na construção do coletivo e do público — também pode expressar o mero jogo da pirataria.

Mas o que é isso?

Potencial de dano significa que uma ação, às vezes nem requerida, teve repercussões muito acima da intenção original. A rede aboliu o princípio físico de que cada ação tem uma reação de igual intensidade. Na rede vigora o princípio da fractalidade - uma multiplicação incontrolável das próprias intenções. Por exemplo, alguém tem um vírus na máquina e o espalha para milhares de outros usuários, sem que de fato quisesse isso: o dano tem um potencial muito maior de alcance e a maioria das pessoas é vítima e autor, simultaneamente e, na maioria das vezes, sem querer.

O remédio, dirão os técnicos, seria a atualização do antivírus e de outros meios de segurança, mas não se pode punir alguém porque não atualizou o software. Outro caso: alguém pega as fotos de uma moça nua e as envia para um amigo. Este que recebeu não as queria, deletou sem lhes dar muita atenção (viu mas não salvou), pois temia que fosse vírus. Ocorre, porém, que sua máquina já estava infestada de outras pragas (menos as das fotos) e estas pragas enviaram as fotos (e uma cópia das próprias pragas) para todos os endereços catalogados em seu computador. Muitos desses que também receberam essas fotos, também sem querer, acabaram mais uma vez multiplicando os vírus porque, por curiosidade, foram ver as fotos e assim instalaram os vírus reprodutores. Quem deveria responder por difamação, o primeiro, os da segunda leva ou todos os destinatários? Neste caso, vale a fractalidade e/ou "efeito borboleta", mas num caso real, interior de São Paulo, fotos de uma moça nua foram vistas em seis países.

O funcionamento disto é bastante complexo porque não há a regra do "um-um" e assim o próprio indivíduo se vê subsumido, inerte, subjugado pela multidão: sua intenção foi engolida pela ação do vírus que potencialmente pode contaminar milhares de outros usuários. Neste caso, o fato é que a multidão não se converte naturalmente, passivamente no coletivo — se por coletivo entendermos um conjunto responsável que age de acordo com as regras formuladas por ele mesmo. Agora, se pensarmos a partir do valor de uso,como mera extensão da lógica binária "um-um [04]" (uma necessidade, uma satisfação), o virtual pode se limitar apenas a um fator de negação deste coletivo – e o desafio, nestes termos, está em desfazer este nó, ou seja, em extravasar da multidão no coletivo.

Na verdade, este é o tema mais fascinante da net, pois o flame (como modalidade intencional do "potencial de dano") é a demonstração da total independência da net, é o seu efeito político anarquista.

De outro modo, quando se pensa em termos de um potencial de dano, implica em dizer que o dano é virtual (e mesmo que possa haver dano material, com a adulteração de dados). Neste caso, seria redundância, pois estaríamos falando que o "virtual dano provocado na rede" é potencial – mas a rede é em si potência. Assim, quer o dano seja material, quer seja virtual, é uma potência para cá e para lá (para a liberdade ou para a negação virtual da cultura).

Por isso, na lógica do consumo, mas sempre pensando em alargar a extensão do valor de uso, é que se toma o "Cavalo de Tróia" comoo maior paladino da liberdade. Pois, se há o efeito negativo de nos afetar diretamente na intimidade ou invadindo nossa conta bancária, com as senhas furtadas, é também ele quem ameaça e fura os sistemas fechados e arredios ao público.

Para chegar à Matrix, o hacker se utiliza da fractalidade e assim o vírus que ele projetou e enviou irá escravizar nosso computador, para que a ação hacker tenha mais força ao agredir o sistema fechado, a Matrix. O potencial de dano, neste caso, equivale a alguém que está "sob fogo amigo" ou, então, no meio do tiroteio, indefeso, desarmado. Em suma, o potencial de dano multiplica-se pela fractalidade, como melhor qualidade da rede, mas usa-a violentamente contra a cibercultura (a exemplo da multiplicação incalculável da calúnia ou da superexposição midiática).

É certo que este sujeito, com este instrumento, pode segurar a Matrix, mas a que custo da vida pessoal e da coletividade? Não será possível rever o problema da Matrix, com a força do coletivo, e assim também redimensionar a questão do potencial de dano? Por que há tanta resistência em tratar dessa questão?

De qualquer modo, não há que se falar em direito individual porque, na maioria das vezes, o indivíduo singular é apenas mais uma vítima, da Matrix – que invade sua privacidade e controla seus e-mails – ou do hacker, que o "usa" como mero objeto, como "escravo". Assim, tratar o crime virtual pela analogia do crime real é cair em falácia ainda mais perigosa, pois desconsidera todas as particularidades, os gravames e os fatores de discrímen que distinguem os dois mundos:

É como punir igualmente um pescador de fim-de-semana e um baleeiro por um mesmo crime de pescar. Não se consideram as diferenças e proporções do dano potencial que cada um causa ao ambiente, nem à estabilidade jurídica [05].

Portanto, no nosso caso, é preciso investigar formas realmente coletivas de controle, de prevenção ou de minimização do potencial de dano — formas culturalmente novas aceitas coletivamente.

A seguir, um breve resumo esquemático da discussão que deve englobar o tratamento dessa questão, no nosso texto:

1Novas formas de sociabilidade (como podemos definir a sociedade em rede?).

2.A formação da cibercultura (o que é a cultura formada no ciberespaço?).

-O uso adequado da rede.

3.Formas "estranhadas de sociabilidade" (o uso abusivo/inadequado da rede).

4.Novas formas de crimes ou de infrações graves proporcionadas pela massificação da tecnologia: crimes virtuais [06]. Atentados à liberdade e à integridade de dados pessoais e/ou públicos.

-O que é potencial de dano, por exemplo, na hora de se definir a retratação em caso de grave violação de direito individual (invasão de privacidade: calúnia, difamação etc) ou público (invasão e exposição de dados governamentais sigilosos)? Como refrear esta reprodução da ação altamente destruidora, mas nem sempre intencional?

-É preciso definir o que são os princípios da acentralidade e da fractalidade para o usuário coletivo e não apenas para aqueles que se beneficiem passageiramente pela violação dos códigos.

5. Esta seria a convergência entre espaço público e cibercultura: a crítica radical ao valor de troca (software livre) não pode se abster de repensar o valor de uso consumista da atualidade.

-Portanto, é preciso repensar a questão do espaço público, a partir de uma relação/integração entre o mundo real/virtual, na convergência com as ações estatais e os interesses privados (os assim definidos, legitimamente, pelo conjunto dos usuários).

Então, vejamos agora novas formas de sociabilidade, a partir do conceito de público, mas independente do véu que recobre o valor de uso. Trata-se da refundação da cibercultura (a cultura formada no ciberespaço).


Do público e do privado

O ataque maciço à propriedade privada das invenções e das criações intelectuais/virtuais não é, em si, nem um retrocesso aos tempos luditas, nem implica na constituição de um novo espaço público. Podemos estar simplesmente imersos na seara do "trabalho imaterial", como componente orgânico do capitalismo avançado (Negri, 2001).

Como bem assegura Habermas (2003), "a esfera pública é privada", ou seja, o público no capitalismo nasceu da referência privada, no entanto, a negação dos direitos autorais, em si mesma, não parece estar criando uma nova cultura no ciberespaço menos predatória ou consumista. Um novo público, não apenas como ampliação do acesso ao consumo de bens reais/virtuais, um novo público não apenas como mais um extensor da própria consciência privatista, ainda está longe de ser uma cultura real/virtual.

No sentido estrito, podemos pensar unicamente na ampliação do potencial de dano à consciência privada. Alguém toma algo de outro, que julga seu, e o expande por meio da fractalidade, graciosamente, solidarizando-se ou, gananciosamente, cobrando, pouco importa. O que implica este gesto? A rigor, apenas a ampliação ou multiplicação da propriedade e das suas condições. Portanto, independentemente de se agir com boa ou má intenção, esta apropriação individual de uma outra propriedade individual é apenas uma fase de transitoriedade privada, uma "extensão", não implicando de modo algum em "coisa pública". Multiplicar a propriedade privada (cobrando ou não) não a torna menos privada.

Por outro lado, uma cultura da "coisa pública", como consciência republicana, democrática e socialista, está longe de se ver atuante – a não ser que tomemos casos, iniciativas e exemplos isolados. Neste caso, o interesse real talvez possa ser outro, para além dos limites da ampliação do privado. Em todo caso, é preciso correr para retirar os limites do privado que sempre estão por trás desse tipo de ação subversiva do privado.

Como isto isso também não ocorre, como não se expande a consciência pública, como o virtual não se organiza como espaço público, mas sim como "privado ampliado", em geral, o que se vê como efeito indesejado é a ação estatal controlativa, proibitiva, punitiva, dos atos que ultrapassaram os limites da propriedade privada. Teríamos de rever toda a ação estatal regressiva, repressiva e contra a qual só podemos agir ampliando o público, ampliando a consciência da comunicação do "um-um" para o "todos-todos". Para isto também seria preciso que tivéssemos mais ferramentas de um novo gênero, que facilitassem essa comunicação ampliada, para além do privado.

Mas, na verdade, quem pensa o público para além do privado? E de modo complementar, quem é que capaz de agir desse modo?


O anonimato pode ampliar o potencial de dano

O fato é que não conseguimos mais guardar distância entre o público e o privado, não percebemos com clareza onde termina um e começa o outro. Não percebemos e não agimos de modo distinto. No ciberespaço, o público está ainda mais subsumido, mais distante, deletério, porque há o anonimato como regra, não obrigatoriamente, mas como condição usual.

O anonimato, em si, não é bom nem mau, pois pode ser muito mal se pensarmos em termos de esconderijo para os atentados à dignidade do Outro. O anonimato pode ser bom, se pensarmos que assim nos protegemos do "controle estatal abusivo". Porém, há áreas cinzentas, nebulosas, em que não sabemos definir com certeza que lado ocupamos na trincheira. É que, tudo somado, não implica em "mais público", porque o anonimato é a única proteção contra o terrorismo de Estado, masnão é uma segurança em si mesma de que "o Outro está protegido", como pensamento republicano, coletivo. Como vimos, a fractalidade, como melhor característica da rede, às vezes pode jogar contra a alteridade.

Assim, precisamos pensar o anonimato e o potencial de dano a partir de todas as características que conformam o virtual: metamorfose, fractalidade, acentralidade, topologia, abertura e heterogênese [07].

Como veremos, isto favoreceu tanto o potencial de dano quanto o "princípio da auto-organização da rede" (e mesmo que este possa ser usado limitadamente para multiplicar a mesmice e a estupidez).


O flame como potencial de dano

Do mesmo modo, o princípio da auto-organização da rede também não implica necessariamente em condição positiva para a construção de um ambiente público. Do contrário, pode simplesmente ser rebotalho, no pior sentido de uma extensão da egolatria privativa-consumista. Como se vê no exemplo abaixo:

Multidão convocada por e-mail tumultua loja de brinquedos em NY

Uma multidão enlouquecida, que se articulou por email nos lugares mais inesperados, se reuniu na noite de quinta-feira em frente à loja de brinquedos Toys "R" Us da Times Square, em Nova York, para olhar um dinossauro gigante que ruge ameaçadoramente para os clientes.

Cerca de 300 pessoas pareciam hipnotizadas pelo bicho, mas depois caíram no chão, gritando e agitando os braços. Enquanto os funcionários chamavam a segurança, o grupo se dispersou com a mesma rapidez com que se reuniu.

Essa aglomeração repentina -- que já tem até nome em inglês, "flash mob" -- está virando moda mundial e aconteceu pela sexta vez em Nova York.

O evento é organizado por email. Os destinatários são convidados para chegar a um determinado lugar, numa determinada hora, e recebem instruções sobre como participar de cada situação.

Também na noite de quinta-feira, a primeira "flash mob" britânica -- com cerca de 200 pessoas -- fez uma caminhada até uma loja de sofás de Londres. O grupo tinha ordens para fazer ligações pelo celular elogiando os produtos.

O chamado Mob Project começou em junho, em Nova York, quando um homem chamado Bill mandou um email a alguns amigos. Desde então, o movimento se espalhou por todo o país e para várias cidades da Europa.

No Velho Continente, a primeira vez foi em Roma, no mês passado, quando uma multidão se reuniu numa livraria, enchendo os funcionários de perguntas sobre uma obra que não existia.

Na Toy "R" Us de Nova York, a turista texana Maria Peters disse: "Eles acabaram de me pegar na rua e me deram instruções. Foi como um grande jogo mental."

Outros lugares de Nova York que já foram ocupados são o Central Park, onde a multidão piou como ave e ciscou como galinha, e o Hyatt Hotel, onde houve uma salva de palmas.

Os organizadores gostam de ficar anônimos e dizem que a diversão disso é sua natureza absurda e inexplicável. Mas eles acham que a moda pode ser passageira.

Um homem que tinha todo o jeito de ser um organizador e deu um nome evidentemente falso afirmou, depois do evento da Toy "R" Us: "Infelizmente, toda a cobertura da imprensa vai servir para destruir isso mais cedo ou mais tarde."

"Dá para imaginar que daqui a uma ou duas vezes as pessoas já não vão mais achar legal. Não será realmente um ´´happening´´, e sim um evento para a mídia", afirmou.

Vimos aí como auto-organização da rede, como um uso meramente consumista, também pode estimular a tolice. E é neste sentido que o potencial de dano não-ajuda a construir a auto-organização da rede (como espaço púlico), mas simplesmente contribui para destruir o pouco senso público que ali se encontra, como um flame privatista, indesejado, mas que se auto-organizou para consumir vorazmente.

Do mesmo modo, há muitos outros sites de prestação de serviços, como denúncias de pedofilia, abuso ou exploração do trabalho infantil, há sites mantidos pelo serviço público e há outros mantidos pelo usuário inconformado com alguma relação social imerecida. É o caso do serviço prestado pela advogada Amber Filgueiras, quando prega o lema: "Homens cafajestes são fichados na web". O serviço foi criado para denunciar homens violentos, mas depois acabou relatando a "dor de cotovelo" (Arima, 20/11/2006).

Como diz Lévy, o flame não é bom, nem mau, nem neutro — o flame tem efeitos múltiplos e, portanto, alguns bons e outros indesejados. Lévy traz o caso concreto de uma lista de discussões em que um dos participantes tinha um discurso altamente racista e por isso acabou por receber milhares de mensagens (positivas e negativas) que lhe travaram a comunicação, até que pudesse se livrar de todas elas.

A rotina da conferência é interrompida pela mensagem de um músico australiano, um tal Wesson (esse não é seu verdadeiro nome), protestando violentamente contra as experiências atômicas francesas no Pacífico [...] Algumas pessoas simpatizam com a causa de Wesson. Outras lembram-no de que esse não é o objetivo dessa mailing list [...] Ele tem que enfrentar aquilo que os cibernautas chamam de flame, ou seja, um bombardeio de mensagens que chegam de todas as partes do mundo [...] Wesson faz, então, uma espécie de confissão pública. Lamenta sua mensagem a respeito da língua francesa e pede a todos que o perdoem. Quando redigiu aquela lamentável mensagem, estava sozinho em frente à tela. Estava quase pensando em voz alta, sem pensar que havia pessoas do outro lado da rede [...] No entanto, a rede lhe havia dado uma consciência planetária muito mais concreta do que aquela que pensava ter. Aquela resultante do contato direto com pessoas que exprimem suas emoções e pensamentos (Lévy, 1999, pp. 98-9).

De acordo com a alegação de Lévy, a intenção de Wesson era boa, mas o seu discurso era fascista. Wesson ficou sem comunicação por muito tempo, até se livrar das milhares de mensagens, além da lição de moral que recebeu ser dolorosa. Também não é correta a imagem de que a rede patrocina todo tipo de irresponsabilidades, de que vigora o descontrole de tudo. Em alguns casos, os responsáveis são identificados:

Um internauta que divulgou um rumor na Web sobre o tráfico de órgãos, espalhando uma história de um estudante que teria sido drogado para que seus rins fossem extraídos, foi detido pela Polícia da província de Cantão. A informação é do portal chinês Xinhuanet. O rumor causou um grande pânico entre a população de Cantão, segundo a Polícia, que abriu uma investigação no início do mês para descobrir sua origem. Um morador do distrito de Yongxing (província de Hunan) confessou durante um interrogatório que ele divulgou o rumor sem ter confirmado que era verdade, segundo a agência de notícias Xinhua. Como castigo, o internauta - do qual só foi divulgado o sobrenome, Zhu - ficará detido durante cinco dias, informou a Polícia de Cantão. As autoridades chinesas mantêm uma campanha há anos contra os "cibercrimes", devido às fraudes que ocorrem no âmbito da tecnologia da informação em um país que já conta com quase 130 milhões de internautas - atrás apenas dos Estados Unidos, com 198 milhões.

E ainda que haja denúncia de abusos e de graves violações à liberdade, por parte desse mesmo governo: "No entanto, as organizações internacionais defensoras dos direitos humanos denunciam freqüentemente que nesta campanha se inclui também a censura de informações que podem incomodar o Partido Comunista, no poder desde 1949" [08]. Como é o caso do bloqueio que o governo chinês promove a determinados sites acadêmicos, mas que poderiam servir como portais para pesquisas de temáticas políticas e ideológicas: "A China voltou a restringir o acesso a sites como Wikipedia e Blogspot depois de dois meses de uma suposta trégua, afirmam internautas do país, que denunciam que os dois serviços estão bloqueados nos últimos dias" [09].

De modo geral, entretanto, o anonimato pode ser (ou tem sido) a mera replicação do privado, se não se considerar adequadamente a "ampliação do coletivo". O múltiplo seria apenas esta categoria da multiplicação do privado, ao contrário do público e do coletivo, pois estes requerem uma transformação substancial do privado quando se transporta para a esfera pública.

O anonimato, sem a "consciência do coletivo", pode apenas esconder um "sujeito único, com pensamento totalitário". Infelizmente, o anonimato tem sido apenas o esconderijo do privado, pois poucos o utilizam como alavanca de projetos coletivos. Como projeto político, o coletivo deve ser visto como "público não-privatizado", portanto, para além da fórmula de Habermas. Os zapatistas, no México, utilizando-se eficazmente da comunicação política conseguiram furar o bloqueio da sociedade de controle por inúmeras vezes e assim foram capazes de pensar o coletivo:

O movimento busca a "contaminação", e faz dela uma de suas armas principais, cuja expressão mais eficaz é a palavra. Os comunicados foram de fato a arma que mais infligiu perdas ao inimigo e que, ao mesmo tempo, dentro do contexto da sociedade mexicana e da esquerda de forma geral, a que mais abriu novos horizontes. Os principais jornais e a Internet que as publicaram constituíram o meio de conjunção entre dois mundos que sempre estiveram separados e incomunicáveis (Di Felici, 1998, p. 22).

Inclusive do ponto de vista tecnológico, a questão é bem mais complexa: aqui cabe a célebre questão de que, em si mesmas, as novas tecnologias não trazem novas questões políticas e nem emancipatórias. A revolução digital não implica em revolução política, bem como a mudança política também não é sinônimo de desenvolvimento tecnológico ou cultural — basta-nos pensar no que fariam os hackers a serviço de Stalin ou de Pol Pot.

Mas há tentativas de resistência e de denúncia, como vemos com os zapatistas e a produção de mensagens que deveriam ser televisionadas, não fossem as terríveis condições em que produzem seus manifestos:

¡Pst, pst, pst! ¿Hay alguien por ahí?

Ejército Zapatista de Liberación Nacional.15 de agosto de 2004.

A quien corresponda:

¡Pst,

pst,

pst!

¿Hay alguien por ahí? ¿Un oído?

¿Una mirada? ¿Un corazón siquiera?

Vale. Salud y paciencia, virtud guerrera. Desde las montañas del sureste mexicano

Subcomandante Insurgente Marcos. México, agosto de 2004, 20 y 10

P.D. Disculpen la interrupción, pero es que nosotros también tenemos un video. El único problema es que hay que leerlo (limitaciones tecnológicas de la resistencia rebelde) y, eso sí, hay que cambiar de canal... [10]

Além do site oficial, os zapatistas possuem inúmeros colaboradores e apoiadores, que se prestam a desafiar as barreiras e a censura oficiais [11]. Os zapatistas sempre tiveram uma produção dinâmica e orgânica de mensagens, e isto quer dizer que o local sempre respeitando quando travaram suas batalhas globais: até porque não há luta política real, sem destaque para as questões de interesse direto. Mas, veremos mais adiante, a verborragia faz esquecer coisas óbvias.Realizando uma apropriação inteligente e revolucionária de McLuhan ("o meio é a mensagem"), podem dizer: ¡Toma los medios, haz los medios, sé los medios! [12]. E quando expressam a intenção de buscar uma nova forma de fazer política, a primeira referência direta é quanto ao terrorismo de Estado: No soy apóstol del terror, pero el terror está en todas partes [13]. Este é o Comunicado de Tendencia Democrática Revolucionaria-Ejército del Pueblo (TDR-EP), contra o modelo controlativo do mundo real/virtual.

Evidentemente que são mensagens políticas articuladas e que se utilizam da rede como ponto de inflexão e de expansão: a mesma fractalidade que nos invade de vírus. E o que destacamos aqui é sua capacidade de manter acesa uma luta política por décadas, alertando para a necessidade da construção de um espaço público na rede. Porém, o que prevalece é aquela visão reduzionista e simplificadora que se volta sempre ao consumo desenfreado do mundo real/virtual ou à crítica isolada do "valor de troca". E o pior é que se o atual modelo consumista-privatista da rede é limitado, o tratamento totalitário da tecnologia é ainda mais perigoso. A seguir, veremos apenas alguns exemplos desse mau uso dado pela versão totalitária (igualmente ideológica e em nada emancipatória).


Modelo Totalitário Stalinista da Tecnologia

Vimos como o liberalismo-consumista foi e está sendo incapaz de proteger e/ou de trazer mais autonomia à rede. Agora veremos como o controle estatal proposto para a rede é ainda mais nocivo e nefasto à liberdade da comunicação real/virtual.

Esta época atual de controle burocrático e policial das comunicações e expressões (individuais e políticas) da sociedade de controle é, no fundo, uma atualização do Estado Totalitário ou fascista — estes, por sua vez, não passam de uma velha invocação da Razão de Estado ("tudo em nome da soberania e da segurança").

É preciso recordar que a Razão de Estado é base da formação do Estado Moderno e, desse modo, religamos a idéia de controle aos primórdios do Estado Moderno, de Maquiavel e de Hobbes:

A filosofia social moderna pisa a arena num momento da história das idéias em que a vida social é definida em seu conceito fundamental como uma relação de luta por autoconservação; os escritos políticos de Maquiavel preparam a concepção segundo a qual os sujeitos individuais se contrapõem numa concorrência permanente de interesses, não diferentemente de coletividades políticas; na obra de Thomas Hobbes, ela se torna enfim a base de uma teoria do contrato que fundamenta a soberania do Estado. Ela só pudera chegar a esse novo modelo conceitual de uma "luta por autoconservação" depois que os componentes centrais da doutrina política da Antiguidade, em vigor até a Idade Média, perderam sua imensa força de convicção (Honneth, 2003, p. 31).

Por Razão de Estado, então, entenda-se uma teoria do poder em que a força das idéias, sucumbe ante a idéia da força. Nesta trilha, o modelo totalitário não passa de uma alegação ou invocação estatal (e não-pública), normalmente em nome da segurança do próprio Estado (e nem sempre da sociedade), para se acabar com a própria liberdade.

A razão no modelo controlativo do século XXI se apresenta como ornitorrinco, uma forma surreal, disforme, ortodoxa apenas no apego ao primitivismo do uso de forças mais austeras. O modelo controlativo também retira sua força do medo que se expande apenas com a visão de uma performance aterradora. Este conjunto disforme e aterrador é portador de um ecletismo que não o torna mais heterogêneo, porque acena com a simples ausência de conjunto, como um amontoado em que simplesmente não há divergência e nem autonomia.

O modelo, então, atua como sistema remontado, de partes aparentemente não-naturais, mas antes forçadas a uma certa naturalização, aprimorando o acabamento para esconder a falta de conjunto e de articulação.

O modelo controlativo quer se tornar a censura natural introjetando em cada cidadão virtual o "desejo de dominação" (como queria Weber). É, então, uma ficção, uma deformação grotesca de uma outra forma (esta sim, muito mais elaborada) e que certamente seria mais heterogênea, autônoma, e pró-ativa, a exemplo da Justiça, da democracia e da liberdade.

O modelo controlativo, no entanto, é mero recurso de retórica que quer camuflar o uso/abusivo da força e da repressão, atuando como um amálgama deformado, atrofiado, hipossuficiente em certas áreas, ações ou noções (quer sejam políticas, quer sejam pessoais). Portanto, o uso da força bruta (cercear, censurar a liberdade de comunicação política) é uma forma degradada de primitivismo, ao revés do próprio processo civilizatório e emancipatório, que há no nicho especulativo da ciência e da tecnologia.

No modelo controlativo, entende-se, é óbvio, que a tecnologia é uma graça exclusiva do capitalismo — como revela certa leitura stalinista do próprio processo histórico (porque desconhece a ontologia, ou melhor, prevê como ontologia unicamente os insumos advindos do capitalismo).

Para retomar este curso do totalitarismo tecnológico,veja-se o argumento clássico de que Stalin produziu a Bomba A em pouco mais de duas décadas, onde antes havia um sistema feudal — o que está certo. Mas, a que custo, milhões de vidas?

Será uma coincidência o fato de que os cientistas nazistas, "presos nos EUA" (no pós-Segunda Guerra, sob a proteção da Operação Paperclip), foram os reais inventores dessa mesma Bomba A – e que o sorex plagiou? E mais, este seria o modelo tecnológico/civilizatório do socialismo?

Construir armas que ameaçam a humanidade de extinção é um legado de Marx? Marx concordaria ou isso seria apenas o veio míope do socialismo realmente existente (e que, aliás, tem reflexos bem vivos, por exemplo, na política nuclear da Coréia do Norte)?

E em que sentido o modelo do passado se junta aos desmandos do presente? A alucinação pelo controle de hoje, tem um sincretismo com a autofagia de ontem.

Wernher von Braun foi o cientista nazista mais reconhecido pelo mundo: das bombas voadoras V1 e V2 (1935-1945) ao foguete Saturno V, que levaria os americanos à lua (1969). Todavia, a autofagia nazista, por exemplo, literalmente consumiu a Alemanha — além disso, sua "revolução legal" (1933-1945) procurou abolir a lógica, quando incluíram elementos de total exclusão de possibilidades da vida (a "solução final"), sob a máscara de que estavam reformando/atualizando a Constituição de Weimar (democrática, socialista).

Sob outro ângulo, mas complementar ao raciocínio, o Estado Cientificista sob o stalinismo conduziu-os aos gulags e a uma impiedosa reversão da "lógica jurídica marxista": em razão do progresso tecnológico, poder-se-ia abdicar da perspectiva jurídica da Justiça. Para Pasukanis, o maior jurista socialista:

O direito não nasce do Estado; ele nasceu das relações sociais. O Estado lhe confere a clareza e a estabilidade, mas suas premissas enraízam-se nas relações materiais, nas relações de produção [...] Pasukanis vincula, então, o Direito à economia; a ordem jurídica à organização das classes sociais. Disso ele pode tirar a conclusão política esperada, ou seja, que o desaparecimento dos antagonismos de classe permitirá ao enfraquecimento do direito acompanhar o enfraquecimento do Estado (Pisier, 2004, p. 498).

Nisto, Pasukanis seguia o jovem Marx à risca. Mas o que houve depois disso, sob o comando do Estado Totalitário e do seu modelo controlativo?

O Estado stalinista não declina. A Constituição de 1936 diz que [o Estado] é "inteiramente do povo", ao mesmo tempo que o fortalece. Pasukanis é eliminado em 1937. Vichinski torna-se o teórico soviético do Direito. O Direito positivo deixa de ser um mal necessário em vias de desaparecimento, uma sobrevivência do Direito burguês, mas torna-se um Direito de tipo novo [...] Para coroar o todo, a força: "Ambos [são] garantidos pela força coercitiva do Estado [...] O gulag encontrou seu direito (Pisier, 2004, p. 499).

Esta é a estrutura do modelo controlativo stalinista. Do passado do Estado Cientifiscista e totalitário de Vichinski, para o presente, sob o codinome de sociedade de controle,ao se instituir o controle de tudo e de todos, o que fazemos é burlar a liberdade com a criação de dublês das instituições públicas. Portanto, as proposituras de controle comunicacional da rede equivalem a um tipo de Estado de Sítio virtual, uma vez que as tecnologias de comunicação passam a ser substituídas gradualmente pelo próprio sentido de controle – como processo introjetado, naturalizado, de que o controle traz segurança. O que não se pensa é nas formas de insegurança trazidas pelo Estado que tudo vê e a todos dirige.


Estado de Sítio virtual

Vimos que o modelo totalitário ou controlativo é inerente à apropriação tecnológica por parte do Estado que nega a liberdade, até mesmo formalmente. Por isso, vamos denominá-lo Estado de Sítio virtual — para os adeptos dessa leitura míope da própria história, a tecnologia serve apenas à dominação, sendo-lhe contraditória a utopia.

Conceitualmente, Estado de Sítio significa um regime jurídico excepcional a que uma comunidade territorial é temporariamente submetida. As circunstâncias perturbadoras que costumam dar lugar a tal situação são geralmente de ordem política, podendo também advir de acontecimentos naturais, como terremotos, epidemias etc. O Estado de Sítio pode resultar em simples "medidas de polícia" (por exemplo: suspensão de reuniões) ou outras medidas cautelares. O Estado de Sítio assume configurações diversas, mediante as condições reais em que tem lugar: distinguem-se sobretudo os casos de guerra explícita (externa ou guerra civil) de outras situações de emergência interna (até mesmo de ordem econômica: "estado de emergência econômica"). Os problemas de Estado de Sítio se inserem no problema mais vasto dos poderes de guerra, enquanto que a idéia de Estado de Sítio civil ainda carece de uma referência melhor apostada. Nos ordenamentos anglo-saxões, por exemplo, não há diferenças claras quanto aos tipos de Estado de Sítio bélico e civil. Por isso, têm-se consagrado a expressão Estado de Sítio Político, uma vez que a simples soma do substantivo com o adjetivo já revelariam seu sentido mais recôndito: há suspensão dos direitos em nome do poder (Bobbio, 2000).

Então, como expressão política real/virtual desse modelo totalitário, o Estado de Sítio virtual nada mais é do que um sonho aterrador que se sustenta à base das partes e de peças de um mecanismo plantado pelos mais "inferiorizados" (seres políticos incapazes de lidar com a grandeza da utopia da liberdade).

Na vigência prolongada do Estado de Sítio virtual, os agentes políticos agem como se não houvesse comunicação entre o "sistema nervoso" ("evolução" ou processo civilizatório, em que também se insere o comando do Estado) e o "sistema sanguíneo", como forma de comunicação e de escoamento dos interesses sociais das classes, das camadas, dos grupos, das células e dos indivíduos dominados ou que lutam por seu reconhecimento. O Estado de Sítio virtual atua, assim, como parasita de si mesmo, especialmente quando seus sistemas entram em colapso, em curto-circuito, uma vez que a negação mantida por muito tempo gera muita entropia social e não nutre o sistema com novas fontes de energia e de produção de sentidos.

O Estado de Sítio virtual desinformou e desformatou o Estado de Direito assentado na liberdade real/virtual, com o agravamento de que tornou informal a própria Justiça [14]. Há, neste caso, uma funcionalidade do medo, que cerceia a confiança e relega qualquer expectativa de saída por fora (do sistema totalitário) da exceção: a Matrix ensimesmada só conhece a força centrípeta e, assim, no lugar da própria Justiça deve privilegiar-se a segurança (como se houvesse segurança sem Justiça). É o canto rouco da opressão e que, de estrondoso, só encanta e cativa aos mesmos incautos que postergaram a "luta por reconhecimento da liberdade". A tautologia da equação está em que, neste espírito de exceção não há saída e, portanto, não há saída em meio às regras.

É uma expressão macabra do Estado de Direito que melhor serve ao próprio terror do Estado, no mundo real/virtual. É a ilusão da Razão de Estado, gerada a partir de intervenções do próprio Estado desestabilizado e que apregoa a segurança necessária à igualdade de todos ao medo. (O "terrorismo de Estado" gera incertezas, atentado contra si mesmo, para poder legitimar-se). Portanto, esse terrorismo de Estado é a atualização do modelo controlativo e este congrega e carrega em si toda a virtualidade ("iminência do mal") presente na Razão de Estado. O que se vê é uma verdadeira obsessão pelo controle do tráfego de informações — com bloqueios e embargos descarados:

A Al Jazira estreou nesta quarta-feira (15) seu novo canal de televisão em língua inglesa, que, segundo a direção do grupo de televisão árabe sediado no Catar, levará seu sinal a 80 milhões de residências, principalmente nos países árabes e na Europa. Ela tem centros de transmissão em Doha, Londres, Kuala Lumpur e Washington [...] Mas tudo indica que - diante do interesse que haveria nos EUA por acesso a mais fontes de informação sobre a guerra no Iraque, tema principal das eleições de 7 de novembro - a decisão das grandes empresas de televisão a cabo corresponde a "uma censura de fato", segundo Norman Solomon, autor de "War Made Easy" [A guerra explicada]. "Milhões de pessoas gostariam de ver a programação da Al Jazira em inglês, mas há grupos influentes que não querem ofender o governo ou os anunciantes", disse [15].

Esta anormalidade do modelo controlativo ou Estado de Sítio virtual permanente (como censura sem fim e sem limites) é, então, uma atualização da Razão de Estado — daí o sentimento comum de permanência da exceção: a opressão se torna regra, como na era stalinista e fascista.

Da anomalia do claro-escuro que, per si, já ronda todo o Estado, passa-se às sombras totais com esta nova (quer dizer atual [16]) fase do Estado de Sítio virtual. Agora, o incrível é que, para os que não-enxergam (porque o processo tem baixa visibilidade), as sombras permanecem inebriantes.

Por isso, o modelo controlativo da rede se assemelha ao golpe de Estado, mas como um golpe desferido na cultura (e, se prevista em lei, é ainda pior, pois equivaleria a um "golpe de Estado legal"). No Estado de Sítio virtual oculta-se severamente (força, coerção, violência) o fato de que os sitiados (inebriados) se opõe ao controle, mas oculta-se sutilmente que os não-sitiados também estão imersos nas sombras da exceção. Basta-nos pensar se algo que está tão submerso, escondido, que é a pura exceção de uma regra que beneficia a todos (liberdade), poderá conter algum germe benéfico em si mesmo? Basta-nos também ouvir a cantilena de que o controle da rede vai trazer liberdade e segurança ao usuário do sistema: no auge da ingenuidade, diz-se que, com o controle, os hackers serão punidos (sic).

Toda e qualquer subjetividade do mito do Estado [17], portanto, acaba radicalmente na objetividade das forças excessivas da exceção. Nesta dinâmica ilógica, tenta-se regrar a exceção, e nada poderia ser mais incoerente do que levar a regra lá para dentro da exceção (como também não foi lógico imiscuir a exceção à regra). É como se nos dissessem que "o positivo é somente o negativo tornado positivo" (assim, o positivo e a regra não poderiam ser em si mesmos, uma vez que só se apresentariam pela ausência).

Não é difícil ver que a exceção à regra provoca anormalidades, daí que os salteadores das regras da liberdade é que são os anormais. Nesta dimensão analógica, a coerção é direta, mas não é fixa, pois as próprias regras da coerção são volúveis, transitórias, intermitentes (para melhor servir aos caprichos do poder) e, na verdade, a própria noção de regra fixa se torna inconveniente. Por ser analógica, a regra da exceção é só uma exacerbação da regra aplicada à negação — sempre que possível, questiona-se a regra para legitimar a exceção.

O Estado de Sítio virtual toma sua força deste não-lugar, mas não da utopia, visto que é a própria negação da utopia, da liberdade, da interação. Na verdade, o Estado de Sítio, como um todo, sacrifica a fluidez da interação e da solidariedade social em troca da fixidez da intervenção e da soberania.

Por isso, esse novo modelo controlativo é uma fantasmagoria da segurança e da soberania (Hobbes já pressupunha a soberania no Estado Livre: uma espécie de liberdade antes dos liberais). No modelo, o grande herói é, (in)justamente, o anti-herói (hacker), porque o medo elevado ao grau de pavor tende a imobilizar, a desintegrar, a desagregar as narrativas socialmente integradoras e libertadoras. A modernidade, como modelo controlativo, e a pós-modernidade, como Estado de Sítio virtual, são exemplos reiterados dessa desrazão: que transformou a exceção em regra.

No passado mais remoto, a necessidade de se afirmar o status político e as posições da soberania (além de um patrulhamento da vida privada) forjou o título Estado de Polícia. Trata-se de uma expressão criada pela historiografia indicando um fenômeno histórico e político preciso e circunstanciado. Mas remonta aos historiadores constitucionais alemães da metade do século XIX. Já a origem epistemológica da palavra "polícia" vem do termo grego "politeia" e do latim tardo-medieval "politia". Para Aristóteles, "politeia" significava a sua Constituição e para Santo Tomás de Aquino, o ordenamento global da vida humana. A importância operativa e sistêmica do termo polícia, pela ação estatal, só foi aparecer nos Estados da Renascença, na Itália e, principalmente, na França, no Ducado de Borgonha — momento em que a expressão implicava claros fins políticos e cumprimento dos deveres públicos e cívicos dos súditos. Da Borgonha passa para a Alemanha, obtendo aí difusão e grande sucesso, mas já não tinha mais a intenção de segurança na esfera pública:

Foi radicalmente diverso o papel desempenhado pela Polizei nos territórios alemães. Aqui ela tornou-se o instrumento de que se serviu o príncipe territorial para impor sua própria presença e autoridade contra as forças tradicionais da sociedade imperial [...] Na transição de uma estrutura constitucional formada tipicamente "por castas", como a imperial do século XVI, para uma organização do poder concentrado em cada um dos Estados territoriais, como se verificou em alguns dos territórios alemães durante o século XVII, é fácil entender que o problema central para o príncipe territorial, que se apresentava historicamente como fulcro dessa passagem, fosse o da necessidade de criar para si um espaço autônomo, uma esfera soberana própria, tanto em relação ascendente como descendente (Bobbio, 2000).

Por tudo isso, não seria demasiado pensar que o Estado de Polícia alemão, do século XIX, tornou-se o Estado Total, sob o nazismo, no século XX. O Estado de Sítio virtual é, portanto, uma atualização desse antigo lapso da soberania do Estado Totalitário. Mas quem são os agentes ou usuários desse modelo controlativo do passado-presente?


De inebriados e de inebriantes

Como indicamos, há semelhanças entre o modelo totalitário stalinista de ontem e a sociedade de controle atual, pois o anti-liberalismo ofuscou (tanto lá, quanto cá) a diferença entre totalidade e totalitarismo.

No modelo controlativo atual, todavia, devemos substituir as categorias de dominados e de dominantes (porque todos são, mais ou menos, dominados) pelos novos tipos de inebriados e de inebriantes (e ainda que as diferenças entre ambos também não sejam assim tão gritantes). Desse modo, tentemos pensar a partir de quatro tipos ideais aplicados ao consumismo predominante: os inebriados pobres; os inebriados de tipo novo rico; os inebriantes sistêmicos; os inebriantes ideologicamente críticos. Nossos quatro tipos acabam se ajustando como se vagueassem por entre uma cadeia alimentar.

Os inebriados pobres, como usuários que acreditam nas fantasias do virtual, chegam ao ponto de criar vidas paralelas – nicks [18] que chegam a ter significado mais expressivo do que seus nomes próprios: alguns chegam à morte por exaustão, à frente de videogames.

Os inebriados que fazem o tipo novo rico não são menos característicos, apenas tem posição superior na relação de consumo. Alguns de seus hábitos de consumo são reveladores: trabalhando na iniciativa privada ou com empregos públicos (pouco importa) são adeptos do consumo fetichista da tecnologia (compulsão pela aquisição de todo tipo de novidades tecnológicas: o último modelo de celular, laptop etc); são degustadores de bebidas de boas safras; adoram roupas caras e, com vencimentos mensais que chegam a cinco mil dólares; podem morar em apartamentos de luxo, em bairros nobres. Assim, a aquisição de alguma datcha [19] seria uma conseqüência – e qualquer coincidência atual é mera reedição. Como diz, Rouanet, o fetichismo chegou a seu ápice:

Um Walter Benjamin de hoje talvez dissesse que se no protocapitalismo a mercadoria morava nas passagens e no capitalismo moderno nos shopping centers, seu domicílio, na era do capitalismo pós-moderno, é o ciberespaço. Só agora a mercadoria chegou ao seu estágio fetichista, no sentido de Marx: dissolvida na realidade virtual, ela se transformou, verdadeiramente, numa fantasmagoria (Rouanet, 2002, p. 246).

Os inebriantes sistêmicos (ou sistemáticos), por sua vez, são produtores de informação [20] que levam à resignação do consumismo [21]; controlam os fluxos dessas informações para que alguns possam consumir e outros não, mas para que todos obedeçam (e ainda que alguns se julguem livres do valor de uso deformado pelo consumismo). São ilustres pensadores da sociedade da informação e que não ultrapassam a barreira do conhecimento, isto é, não transformam informação em conhecimento.

Mas ainda há os inebriantes críticos (nunca de si mesmos, é claro). O fetiche desses está em acreditar que são capazes da crítica verbal ao valor de troca e que, com isto, estariam libertos da relação de compra e venda. Porém, são incapazes de ver o próprio umbigo, o consumismo diário e, assim, também são incapazes de manter a consciência: o consumismo lhes impede de ter plena consciência e domínio acerca do valor de uso.

Trata-se de uma crítica meramente verbal porque sua retórica é infértil, estéril e com ela não se gera nenhuma ação eficaz; ou seja, são incapazes de deixar de comprar, o que é mais ou menos óbvio, porque para isso teriam de promover alguma autocrítica. Nos casos extremados de seu positivismo, acreditam que o "conhecimento" aplicado ao mundo social é prova da "evolução humana": "não há porque suspeitar, o conhecimento nos guiará a um mundo melhor!". São ideólogos do conhecimento que servem de justificativa e de mais-valor ao consumo do mundo real/virtual — eles estimulam o consumo ideológico.

A inconsciência dos inebriantes ideologicamente críticos, portanto, não lhes permite ver que este seu suposto valor de uso, não passa de consumismo fetichista — no que são iguais a todos, no nivelamento por baixo. Apenas são mais nocivos porque, com mais ilustração e "retórica crítica" (sic) se colocam em posição de superioridade, repetindo bordões (anti-consumistas) e discursos de autoridade. Para estes, a verdade, é claro, sempre está nesta sua suposta capacidade de revelação; sua superioridade cognitiva (auto-atribuída) é de tipo hierocrática [22]: "eu vos digo a verdade sobre o consumo, salvem-se!" [23]. Além, é claro, de se locupletarem, vez ou outra, com o "culto à personalidade" (a publicação reiterada de fotos na web, é um bom indício de narciso...).

A conclusão acerca desse último tipo é que, apesar de uma terminologia crítica, são muito mais perigosos, porque são mais funcionais: estes reviram idéias do avesso. Uma idéia revirada do avesso, por exemplo, mostra que só criticam o valor de troca das mercadorias reais/virtuais, porque, se mirassem o valor de uso, aí teriam de expor a si mesmos e aos seus gostos e gestos alienados, assombrados. Sua crítica é a do megalodonte, uma crítica feroz, totalitária, mas que só faz destruir a totalidade na incontinência de consumir tudo que estiver em seu caminho.

É claro que nenhum desses tipos é puro, mas alguns sujeitos têm mais trejeitos e se vestem melhor do que outros. Também poderíamos pensar em um quinto tipo, aquele tipo puro ou ingênuo que procura com sinceridade a crítica, e mesmo que nem sempre tenha consciência de que é muito mais vítima do que algoz das formas de repressão da verdade. (Até à ingenuidade, como se vê, por exemplo, no artigo e na ação social de muitos internautas bem-intencionados).


Desinformação, má vocação ou ideologia?

Como vimos, os arautos da crítica totalitária do processo tecnológico, apresentam fórmulas ocas que deveriam encaixar a história da humanidade, como se esses modelos teóricos fossem monolitos. O melhor caso é mesmo o da suposta "produção capitalista da tecnologia", como se tudo se resumisse nessa lição colegial. Ao contrário disso, para tanto, bastar-nos-ia um mínimo de conhecimento para repensar a techné da Grécia clássica. Mas, esta negação do conhecimento acumulado (ou que não possa ser instrumentalizado imediatamente) é outra de suas manifestações totalitárias — o controle pela ignorância é parte dessa visão de mundo analógica (como totalitarismo tecnológico).

Vejamos exemplos concretos dessa tal "produção capitalista da tecnologia": Santos Dumont inventou o avião porque as condições objetivas dos meios de produção assim o permitiram. Aqui a lógica binária, fria, maniqueísta, analógica é simples: infra-estrutura x superestrutura; o gênio cria coisas que os "donos do poder mandam". Portanto, nada deveria escapar desta combinação ou manejo e manipulação analógica.

A manipulação do conhecimento está em desconsiderar a arte real (techné: política, arte, técnica) que está no gênio inventor, na criação, na aventura e na ousadia de seu pensamento (não-petrificado [24]). Afinal, qual a tecnologia aplicada ao 14 Bis? Pouco mais do que canos e lona...que levariam o capitalismo decolar? Quando o mesmo Santos Dumont adaptou o relógio de pulso, para melhor dirigir, estava antecipando os horizontes de Taylor? Ou alguém seria tolo o bastante para dizer que inventou o avião para ajudar Getúlio Vargas a bombardear navios brasileiros rebeldes? Em 1932, Santos Dumont suicidou-se movido pela vergonha de se ver assim instrumentalizado: um sujeito altruísta que se viu compelido ao suicídio anômico (Durkheim, 1988).

E o que simbolizou a máquina voadora [25] de Da Vinci (1452-1519), outro solavanco "pré-moderno" dos meios de produção? Para os arautos da simplificação, a arquitetura exploradora de Da Vinci, que o levou ao esboço do submarino e da bicicleta, seria o legado do patrono da indústria moderna.

E a pólvora [26] inventada pelos chineses, foi um prenúncio do capitalismo imperialista? Muito antes dos chineses, no entanto, os gregos já conheciam mecanismos autômatos movidos pela energia hidráulica. Depois, muçulmanos forjaram (por necessidade) novas tecnologias: a "manivela articulada" ou cramk antecipou o "virabrequim" dos carros modernos (Losano, 1992). E isto foi o que, a modernidade primária de Ford?

Precisamos abrir os horizontes para ver e analisar a tecnologia, pois mesmo parte da "tecnologia pós-moderna" não veio a lume com fins tão estritamente instrumentais, para servir ao sistema [27]: ao contrário do que aventa a verborragia totalitária, a Internet nasceu do esforço de jovens acadêmicos americanos para melhorarem sua comunicação pessoal e ludibriar a escassez de computadores para a realização de suas pesquisas. Só tempos depois é que surgiu a versão de sua maquinação militar, para os EUA se safarem de certos efeitos da Guerra-Fria.

Assim, pensando de modo mais direto, é preciso ver que há tecnologias desenvolvidas para o mercado (capitalista), a exemplo de todas as tecnologias que servem à produção (quer sejam inventadas na indústria privada, quer advenham do financiamento público). No exemplo da própria "linha de montagem", de Henri Ford (1863-1947), tratou-se de um recurso inventado por quem já estava na produção e precisava aprimorar seus métodos de trabalho. De outro modo, há outras tecnologias desenvolvidas no mercado, como aquelas que surgem imediatamente do efeito da serendipidade provocada pelas experiências patrocinadas diretamente pelo mercado (o velcro é um caso típico da indústria da pesquisa). A indústria financia pesquisas de ponta com o intuito elementar de criar novos produtos, estimular o desejo e o consumo, aumentando assim a lucratividade. Nesta modalidade, em razão da crescente crise ambiental e do esgotamento dos recursos naturais, estão surgindo tecnologias limpas ou reaproveitáveis, na linha do ecologicamente correto: "Mais uma da série papéis reaproveitáveis. A Xerox desenvolveu uma tecnologia que faz com que as informações impressas em seu papel experimental se apaguem em 24 horas, o que permite sua reutilização [28]".

Por fim, há outras tecnologias que são desenvolvidas foraou além do mercado, como nos casos já citados e em muitos outros — dos autômatos gregos à penicilina ou à descoberta de Albert Sabin: a vacina contra a poliomielite ou paralisia infantil. Entretanto, estes são exemplos de uma serendipidade independente do alcance do mercado — na verdade, essas pesquisas necessitam de outras formas de investigação e de abordagem [29]. Neste caso, o cientista/inventor é movido pela paixão e vocação, ou pela simples necessidade de criar — são beneméritos do conhecimento. Além do mais, dizer que as tecnologias usuais são capitalistas é pura demagogia, porque é claro que a não ser que descubramos o uso maciço de tecnologias pré-capitalistas, do tipo do artesanato puro (o que não existe mais), todas as tecnologias utilizadas são evidentemente capitalistas. Mas não há uma relação direta, um moto-contínuo, uma ditadura do mercado sobre a ciência.

O novo paradigma tecnológico foi uma resposta do sistema capitalista para superar suas contradições internas? Ou, alternativamente, terá sido uma forma de assegurar a superioridade militar sobre os rivais soviéticos, em resposta a seu desafio tecnológico na corrida espacial e nuclear? Nenhuma das explicações parece ser convincente. Embora haja coincidência histórica entre a concentração de novas tecnologias e a crise econômica da década de 70, sua sincronia foi muito próxima, e o "ajuste tecnológico" teria sido demasiadamente rápido e mecânico quando comparado ao que aprendemos com as lições da Revolução Industrial e de outros processos históricos de transformação tecnológica: os caminhos seguidos pela indústria, economia e tecnologia são, apesar de relacionados, lentos e de interação descompassada (Castells, 1999, p. 68).

O que nos leva, então, ao raciocínio obtuso em termos de tecnologia, em pleno século XXI? Será desinformação, má vocação ou ideologia? Veremos que isso é uma espécie de síndrome ou de fatalidade que leva o sujeito para o passado (como quase-Unabomber).


Síndrome do Pequeno Robô

Forma-se esta síndrome do pequeno robô quando algum tipo de "pequeno poder" advém de uma crítica verborrágica (anti-tecnológica, pseudo-científica) e do status de "pequeno-burguês", como um ator consumista e possuidor de bugigangas recém-lançadas. A contradição, nesses termos, não poderia ser mais evidente, ou mais exatamente porque se contradiz ao mundo real/virtual; opõe o pensar criativo à infindável necessidade de ter do ávido possuidor de quinquilharias; opõe-se ao curso civilizatório agregado desde a implementação das técnicas mais primitivas. Esse "robô alegre" (Mills, 1975), portanto, de tão distante do real, põem-se contra si mesmo.

O drama está em que o discurso tecno-fascista que está nos sábios, também está nos leigos, mas constam de eixos opostos: o primeiro, já vimos, está centrado na crítica aloprada (do capitalismo); o segundo está na adesão do consumo irrefreado, no senso comum que pensa que para ser moderno é preciso ter um blog. A diferença entre ambos, então, está no fato de que ao invés da adoração do pequeno-burguês, o sábio se julga acima de tudo e de todos, com sua crítica de estilo tecno-fascista (sic).

Vejamos como exemplo do farisaísmo desse adorador de badulaques eletrônicos, uma experiência de um jornalista americano, ao chegar em Paris. No saguão de desembarque já o esperava o motorista de um jornal francês que, conversando por um telefone sem fio preso à orelha, cumprimentou-o apenas com um gesto. Após uma hora de viagem, o jornalista, que também se mantivera atento ao "trabalho imaterial", percebeu que não se dirigiram nenhuma palavra — sequer o nome haviam dito: "Ele dirigiu, falou ao telefone e assistiu a um vídeo. Eu peguei carona, trabalhei em meu laptop e ouvi meu iPod. Só não fizemos uma coisa: falar um com o outro" (Friedman, 12/11/2006).

E qual não foi a conclusão do jornalista, que bem se aplica ao nosso ávido consumidor (crítico do valor de troca, mas cego ao valor de uso pessoal): "Queremos usar um iPod não apenas para ouvir nossas músicas, mas também para bloquear o resto do mundo e nos proteger de todo aquele ruído. Estamos em todo lugar – menos no lugar onde realmente estamos fisicamente" (Friedman, 12/11/2006). O que nosso ávido consumidor desconhece é que se sofre cada vez mais de uma crise aguda, chamada por de Friedman de: "atenção parcial contínua".

É certo que a crise ataca a todos (o que gera desconcentração, perda de memória), mas o drama é que nosso sábio consumidor se julga acima de todos e, portanto, diz-se imune à praga do consumo virtual. O nosso retrógrado consumidor (crítico apenas do valor de troca) se esquece que "é preciso desligar-se para pensar" — "é possível falarmos mais, e mais acertadamente, se também ouvirmos e prestarmos atenção nos outros sujeitos".

...sem a experiência de um parceiro de interação que lhe reagisse, um indivíduo não estaria em condições de influir sobre si mesmo com base em manifestações autoperceptíveis, de modo que aprendesse a entender aí suas reações como produções da própria pessoa. Como o jovem Hegel, mas com os meios das ciências empíricas, Mead inverte a relação de Eu e mundo social e afirma uma precedência da percepção do outro sobre o desenvolvimento da autoconsciência (Honneth, 2003, p. 131).

Todavia, como hoje pouco se vê o Outro, pela ação forte do niilismo,sempre se procura atacar aos demais. Em nome de uma salvação milagrosa, o tecno-fascista sempre prorroga a alteridade e a lateralidade para o amanhã, após a revolução do cotidiano, pois assim se desvencilha do seu-próprio-fazer. Mas, como diz Rolnik, não há devir sem alteridade e sem este "saber-fazer-próprio" (ou a antiga práxis):

Assim a alteridade e seus efeitos, embora invisível, é real: nossa natureza é essencialmente produção de diferença e a diferença é gênese de devir-outro. Se considerarmos que a processualidade é este devir-outro — ou seja, a corporificação, no visível, das diferenças que vão se engendrando no invisível [30] —, ganha maior consistência a idéia de que a processualidade é intrínseca à(s) ordem(ns) que nos constitui(em) (Rolnik, 1994, p. 161).

Em casos mais acentuados de ausência de alteridade, há uma cantilena de retorno a um passado idílico, mesmo que seja sob a capa de um ávido comprador (compulsivo, esquizofrênico), e aí teremos a sina do "pequeno-robô derrotado". Um pequeno robô com sonhos derrotados porque não se volta ao passado, nem se consome tudo o que se quer ou como se quer. Aqui, são casos típicos da "contradição viva do pensamento", do non sense.

O "pequeno robô" não entende que o mundo real/virtual é muito mais dinâmico, instável e contraditório do que prevê a sua vã-filosofia baseada nos modelos termodinâmicos. Aliás, desse modelo clássico, o que mais herdamos e menos compreendemos é exatamente a força criadora da entropia (Prigogine, 2002).

Por outro lado, o que aqui chamamos de crítica tecnológica, no melhor sentido filosófico, seria a interrogação ou interpelação da "tecnologia em si e no seu tempo". Portanto, trata-se de questionar, polemizar o conhecimento (até afrontá-lo em certos cânones), mas nunca aderir à crítica dos fracos: impugnar o interlocutor. Diferentemente disso, na incapacidade de se abordar honestamente e de superar o "argumento contrário", o discurso competente do tecnocrata (Chauí, 1990) e do tecno-fascista voltam-se à desqualificação pessoal do sujeito, do adversário. A diferença entre o tecnocrata e o tecno-fascista é que o primeiro constrói sua argumentação ideológica (retórica) à base da racionalidade e da funcionalidade: precisão nos métodos, eficiência e utilidade. O tecnocrata controla a distração e a dispersão com maior vigor e obtém mais êxito.

Do mesmo modo, o "empiriocriticismo" só enxerga o mau uso do consumo das tecnologias nas outras pessoas. Uma vez que dificilmente para ele há o parceiro, o Outro, este consumidor/aderente nunca vê a própria alienação, e esta seria a contribuição decisiva da autocrítica: aprender com os próprios erros.

Como são pseudo-cientistas, agem por meio de discursos falsos, enganadores, do pior tipo "hierocrático": "faça o que eu falo, mas não faças o que eu faço". Vivem dentro de casulos e por isso não abrem a caixa preta — a rigor, não abrem a caixa preta porque estariam abrindo a Caixa de Pandora (a maior surpresa seria a decepção consigo mesmo) e assim revelariam os esqueletos que guardam em seus armários.

Como nunca se reinventam, a consciência fica atrofiada como em Frankenstein [31]; predizem que as verdades estão postadas, pois alguns literalmente gritam com os outros: do método não abro mão! Certamente, para este tipo de positivismo mesquinho, a dúvida nunca poderá ser metódica; contrariando Descartes, pois o próprio método estará acima de qualquer dúvida.

Se um dia pudessem ler artigos como este, logo diriam que são vítimas da "crítica moral"; como se a moral fosse uma desgraça, um nada em si mesmo e assim se colocariam a salvo, acima da "crítica ética do dever-ser": como não há consciência "real", não há dever-ser, julgando-se irresponsáveis. Não parece que é preciso abolir a noção de certo/errado, principalmente quando em situações práticas, concretas, diárias:

O gari José Sebastião Breta, 43, varria uma rua de Cariacica (ES) quando achou, numa sacola de lixo, um malote com R$ 12.366. Devolveu o dinheiro uma semana depois e ganhou R$ 1.000 de recompensa [...]"Levei para casa. No início, achei que eram "800 contos". Quando vi que eram mais de R$ 12 mil, a gente apavorou", disse Breta, que contou à mulher, à irmã e à enteada que havia achado o dinheiro. "Até pensei em ficar com o dinheiro, mas a consciência doeu e resolvi encontrar o dono", afirmou [32].

O que diriam da honestidade do pobre, que é uma tolice no mundo capitalista? Esse pobre que recolheu a sacola, é um tolo que ainda houve a consciência e que, por isso, merece a vida miserável que leva? Mandariam todo mundo embolsar o que pudessem, neste mundo dos espertos?

O viés do totalitarismo stalinista ou da "doença infantil do esquerdismo" também os impedem de promover qualquer autocrítica.

Em suma, nunca um discurso foi tão velho quanto este: há uma crítica ao valor de troca, para justificar o modus operandi dos modernos fisiocratas: "consuma e deixe consumir". Via de regra, utilizam as melhores tecnologias para reproduzir os discursos mais envelhecidos e retrógrados. Este seu farisaísmo crítico forma-se, como vimos, de uma trinca: pequeno poder; robotização da consciência; consumo e crítica isolada do valor de troca. Por isso, para evitar o totalitarismo, é preciso buscar o desencantamento. Mas, agora, é preciso voltar ao passado (desencantamento do mundo)para pensar o "desencantamento do consumo".


Weber: a Razão Técnica e o Desencantamento do Mundo

O desenvolvimento racional e seu aprimoramento técnico é parte ativa e móvel do chamado "desencantamento do mundo" (Weber, 1979). Da pedra polida à grande indústria e daí à cibernética e à Inteligência Artificial (IA), o que temos experimentado é uma continuação (em bases renovadas) de um fluxo humano cognitivo e instrumental: o crescimento exponencial da razão.

Trata-se da "razão instrumental" que se dirige à dominação da natureza, do meio social e dos homens (pela ação política), mas também de uma razão explicativa do natural, do social e do humano: do conhecimento que se eleva ao entendimento. Disso também advém o conhecimento que pode se opor à religião, no que Weber denomina de "esfera intelectual":

Devemos notar, porém, que a tensão, autoconsciente, da religião é a maior, e mais fundamentada em princípios, quando a religião enfrenta a esfera do conhecimento intelectual [...] A religião, portanto, considera a pesquisa exclusivamente empírica, inclusive a da Ciência Natural, como mais conciliável com os interesses religiosos do que a filosofia [...] A tensão entre a religião e o conhecimento intelectual destaca-se com clareza sempre que o conhecimento racional, empírico, funcionou coerentemente através do desencantamento do mundo e sua transformação num mecanismo causal (Weber, 1979, pp. 400-401).

Está aí destacada a tensão intelectual.É óbvio que Weber se refere à intelectualização crescente, inclusive quanto à organização, disposição e apresentação dos argumentos religiosos. Pois a religião também faria uso da lógica formal como instrumental explicativo coerente de seus argumentos (o que aumentaria o poder explicativo e de convencimento):

Quanto mais a religião se tornou livresca e doutrinária, tanto mais literária tornou-se e mais eficiente foi no estímulo ao pensamento leigo racional, livre do controle sacerdotal. Dos pensadores leigos, porém, saíram os profetas, que eram hostis aos sacerdotes; bem como os místicos, que buscavam a salvação independentemente deles e dos sectários; e, finalmente, os céticos e filósofos, que eram hostis à fé [...] Não há, absolutamente, nenhuma religião "coerente", funcionando como uma força vital que não é compelida, em algum ponto, a exigir o credo non quod, sed quia absurdum — o "sacrifício do intelecto" [...] A religião redentora defende-se do ataque do intelecto auto-suficiente (Weber, 1979, pp. 402-403).

Da racionalização que permeou a religiosidade também emergiram os céticos e isso trouxe uma racionalização ainda maior (com a crítica). Este processo se fortaleceu porque cresceu o sentido de desvalorização do mundo e com isso um outro desencantamento. A ciência, então, pode advir dessa base racional em que se assentava a "esfera intelectual do desencantamento do mundo". A racionalização e a intelectualização criaram a estabilidade cognitiva necessária à expansão da ciência, e ainda que a interrogação científica venha a produzir exatamente o contrário, pois a dúvida leva ao móvel [33]:

A ciência criou esse cosmo da causalidade natural e pareceu incapaz de responder, com certeza, à questão de suas pressuposições últimas. Não obstante, ela, em nome da "integridade intelectual", arrogou-se a representação da única forma possível de uma visão racional do mundo. O intelecto, como todos os valores culturais, criou uma aristocracia baseada na posse da cultura racional e independente de todas as qualidades éticas pessoais do homem [34]. A aristocracia do intelecto é, portanto, uma aristocracia não-fraternal (Weber, 1979, p. 406).

O homem de ciência tem uma relação com o saber e com a cultura, do mesmo tipo que o homem de poder (especialmente de quem vive "da política") tem pela política: ansiedade, insaciedade, incompletude. O homem comum, inversamente, pode estar saciado, cansado da vida, sem mais motivação ou objetivo para ir em frente; mas o homem da ciência não, pois para ele a compreensão dos significados não se esgota nunca.

Disso resulta a perspectiva de que a compreensão racional do mundo não tem fim, porque a racionalidade deu o passo inicial, sem volta, dessa eterna necessidade, curiosidade que nos conduz para novas bases de conhecimento e de entendimento. Esse desencantamento científico e cultural do mundo ainda trouxe um fardo a ser transportado para o mundo da cultura: "não há como estar saciado", porque em termos culturais é preciso sempre mais.

Mas o homem "culto", que luta para se aperfeiçoar, no sentido de adquirir ou criar "valores culturais", não pode fazer isso. Pode "cansar-se da vida", mas não pode "saciar-se da vida", no sentido de completar um ciclo. A possibilidade de aperfeiçoamento do homem de cultura progride indefinidamente, tal como ocorre com os valores culturais (Weber, 1979, p. 407).

O desenvolvimento técnico e político é fruto disso, dessa marca de largada em que deixamos para trás a saciedade da vida, quando optamos em definitivo pelo móvel da dúvida metódica, ao invés do repouso e da tranqüilidade. O homem da ciência pode cansar-se da vida, até se suicidar, mas não pode saciar-se das explicações racionais, se ele tem, é certo, uma perspectiva cultural:

A "cultura" do indivíduo certamente não consiste na quantidade dos valores culturais que ele reúne, mas numa seleção desses valores [...] Vista dessa forma, a "cultura" surge como a emancipação do homem em relação ao ciclo da vida natural, organicamente prescrito [...] A cultura torna-se cada vez mais um centro absurdo de imperfeição, de inJustiça, de sofrimento, de pecado, futilidade, pois é necessariamente sobrecarregada de culpa, e seu desdobramento e diferenciação tornam-se assim, necessariamente, ainda mais insensatos (Weber, 1979, pp. 407-408).

O processo contínuo, inesgotável de construção do conhecimento, portanto, logo revelaria o outro lado da insatisfação, pois não há glória em ciência, só superação, substituição. Assim, a cultura é emancipação que traz desencanto, certo desvalor e não só desencantamento religioso — e esta mesma condição da racionalização estaria tanto na cultura, quanto na religião:

E não só o pensamento teórico, desencantando o mundo, levava a essa situação, mas também a própria tentativa da ética religiosa de racionalizar prática e eticamente o mundo [...] E em meio de uma cultura que é racionalmente organizada para uma vida vocacional de trabalho cotidiano, dificilmente haverá lugar para o cultivo da fraternidade acósmica, a menos que seja entre camadas economicamente despreocupadas. Sob as condições técnicas e sociais da cultura racional, uma imitação da vida de Buda, Jesus ou São Francisco parece condenada por motivos exclusivamente externos (Weber, 1979, p. 408).

A racionalização religiosa acirrou esta contradição: desencanto e não só desencantamento. Isto acabou com qualquer possibilidade de uma vida contemplativa. Do neolítico para cá, depois que houve o primeiro aprimoramento político significativo (Lévi-Strauss, 1989), passamos a ver o encontro do vetor técnico com determinados projetos de poder. Mas, a ação social (intencionalidade quanto a meios e/ou fins) sempre foi o diferencial humano. Este gênio criador, movido certamente pela curiosidade, mas igualmente pela necessidade, foi desde sempre um vetor fundamental na fabricação e no aprimoramento do uso técnico. Sem o interesse vivo do homem não há política e nem há técnica, bem como nem há como pensar a racionalização sem a ação social (intervenção humana). A verdade é que a instrumentalização não escolhe uma cor política para seguir.

É verdade que a necessidade (de sobreviver, de aumentar o excedente) sempre impulsionou o desenvolvimento tecnológico (e suas formas sócio-políticas adequadas), mas não se pode desconsiderar o alcance da ação social neste conjunto de determinações. Assim, tanto pesam as determinações sócio-econômicas quanto as variáveis intersubjetivas da ação social: com Weber chegamos à Internet, mas com Stalin não. E este foi o curso que se abriu desse encontro entre a modernidade tardia e a pós-modernidade.


Virtualidades da Modernidade Tardia e Pós-Modernidade

Mas o pós-moderno estaria limitado ao consumismo neoliberal? Parece que a resposta é mais complexa do que um simples sim ou não:

O pós-moderno sem dúvida traz ambigüidades — aliás é feito delas e deve ser criticado e superado. É isso que ele propõe: a prudência como método, a ironia como crítica, o fragmento como base e o descontínuo como limite [...] O anseio de uma Justiça que possa ser sensível ao pequeno, ao incompleto, ao múltiplo, à condição de irredutível diferença que marca a materialidade de cada elemento da natureza, de cada ser humano, de cada comunidade, de cada circunstância, ao contrário dos que nos ensinam a metafísica e o positivismo oficiais [...] Creio que já seria uma vantagem e um alívio que o pós-moderno se apresente como um castelo de areia e não mais como uma nova Bastilha, um novo Reichstag, um novo Kremlin, um novo Capitólio. Apenas um castelo de areia, frágil, incosistente, provisório, tal como todo ser humano. Um enigma que não merece a violência de ser decifrado (Sevcenko, 1987, pp. 54-55).

O projeto arquitetônico da pós-modernidade, ao expor a estrutura, o interior, as amarrações, o liame do "eixo central" de sustentação, revelando aos observadores as armações em aço e o conteúdo mais simples e operacional [35], como é o caso do elevador panorâmico, na verdade, promoveu uma revolução em termos de leitura do real — não era, portanto, um mero efeito de embelezamento. Ao revelar a estrutura de suporte das construções, o projeto pós-moderno dizia ao leitor do real que a essência (assim como a estrutura) pode e deve ser vista, revista, revirada. É interessante notar como forma e conteúdo deveriam vir associados a partir de então, bem como outrora, na modernidade clássica (de Marx e Weber, por exemplo) apareciam em destaque os primos gêmeos da essência e da aparência.

Na configuração atual da sociedade moderna, entretanto, a sociedade de controle impõe ao cidadão cada vez mais o toque de recolher [36] que o obriga a ver-se cada vez mais longe de sua liberdade. Certamente, não como criação de agora, tão recente assim (no fundo é mais uma das muitas criações do liberalismo burguês), mas o Estado de Exceção [37] tem sido constantemente agilizado (contra a liberdade) como arma para se opor aos crescentes atos de rebeldia e/ou ao terrorismo (sem que ninguém fale de terrorismo de Estado). De outro modo, a guerrilha virtual leva um número crescente de países livres a adotarem formas de controle do mundo virtual [38], isto é, na sociedade de controle, mudam-se as formas de ação, mas o controle sobre o mundo real/virtual é muito intenso [39].

O que ainda nos permite concluir que as características centrais da pós-modernidade — a prudência como método, a ironia como crítica, o fragmento como base e o descontínuo como limite — têm sido cada vez mais compelidas para fora da realidade observável. Portanto, o entrono desta modernidade tardia e/ou pós-modernidade está muito recrudescido, empedernido, emparedado, embrutecido: é incrível, mas talvez a pós-modernidade esteja mais sob ameaça do que a própria segurança e regularidade (ordem e progresso) do mundo moderno e de suas utopias. Também é certo, portanto, que tanto o Estado de Exceção quanto os controles virtuais da sociedade de controle devam ser melhor tratados, aprofundados, exatamente como veremos nos capítulos concludentes.

Por essas razões, pretendemos entender como o entorno desse quadro sócio-metabólico desafia os antigos paradigmas da Sociedade Capitalista e as tradições da modernidade [40], além da própria pós-modernidade — em parte, ao menos inicialmente, essa série de desafios se iniciou com a própria pós-modernidade, mas agora também há a somatória de um outro perfil, agora da sociedade de controle, de seus entraves, "entranhamentos" e estranhamentos.

Outro ponto curioso nesta relação entre a irracionalidade moderna (as contradições inerentes ao capitalismo) e a irracionalidade descontínua da pós-modernidade (como vimos, o castelo de areia da pós-modernidade) advém da própria compreensão que Weber realizava da racionalidade moderna (a previsibilidade de fatores previsíveis da vida social):

A conduta humana, afirmava Weber, era tão previsível quanto os eventos do mundo natural: "A previsibilidade’ (Berenchnenbarkeit) dos ‘processos da natureza’, tal qual na esfera das previsões metereológicas, é muito menos acertada do que o cálculo das ações de alguém conhecido por nós". Essa "irracionalidade" (no sentido de que a "vontade livre" = "incalculabilidade") não era de forma alguma um componente específico da conduta humana: pelo contrário, essa irracionalidade, concluiu Weber, era "anormal", na medida em que se constituía em propriedade do comportamento daqueles indivíduos que eram designados como "insanos". Era, portanto, uma falácia supor que as ações humanas não pudessem ser tratadas por generalizações; na verdade, a vida social dependia de regularidades na conduta humana, de tal forma que um indivíduo pudesse calcular as respostas prováveis de outro em relação à sua própria ação [...] isso não implicava que as ações humanas pudessem ser tratadas [...] como fenômenos objetivos [...] A ação teria um conteúdo "subjetivo" não compartilhado pelo mundo da natureza, e a apreensão do sentido das ações de um ator era essencial para a explicação das regularidades discerníveis na conduta humana (Giddens, 1998, pp. 52-53).

A irracionalidade e o descontínuo que sentimos hoje, de modo tão agudo e que nos deixa perplexos, é equivalente à profecia de Marx no Manifesto, de que tudo que é sólido desmancha no ar, mas com tal grandeza e profundidade que, às vezes, sentimo-nos aniquilados em meio à pura barbárie. Ou como diria Weber, notadamente em A Política como Vocação, a descrença só não abate aqueles que perduram no caminho clássico de sua própria vocação:

Somente quem tem a vocação da política terá certeza de não desmoronar quando o mundo, do seu ponto de vista, for demasiado estúpido ou demasiado mesquinho para o que ele lhe deseja oferecer. Somente quem, frente a tudo isso, pode dizer "Apesar de tudo!" tem a vocação para a política (Weber, 1979, p. 153).

Neste sentido, esta angústia que sentimos, por estarmos em meio à indefinição do moderno e do pós-moderno — entre a certeza e o indesejável, entre a leveza e a sofreguidão, entre o cristal e a fumaça, entre o robusto e o que se desmancha no ar —, é que dizemos que só sobreviverão os que têm vocação (não como predestinados), mas como persistentes, esforçados, radicais, renitentes até: clássicos, portanto. Estes terão vocação para a vida social.

Porém, é em meio a esta profusão de dados, de sentimentos, de sensações, de emoções, de estranhamento sócio-ambiental, que ainda se movimenta o homem social de hoje, um homem social e muitas vezes não-político, no sentido da ágora dos gregos antigos. O Homem-político de hoje perdeu seu ethos e seu utopos (seu lugar), em virtude de ter-se ampliado para além dos burgos, das cidades de sua origem, do seu enraizamento natural:

Há um termo logicamente associado a um público urbano diverso: "cosmopolita". De acordo com o emprego francês registrado em 1738, cosmopolita é um homem que se movimenta despreocupadamente em meio à diversidade, que está à vontade em situações sem nenhum vínculo nem paralelo com aquilo que lhe é familiar [...] Por causa dos novos hábitos de se estar em público, o cosmopolita tornou-se o homem público perfeito (Sennett, 1988, pp. 31-32).

Aliás, este sentido de homem cosmopolita atual, em oposição ao homem que trabalhava para construir o mundo social ou, então, anteposto ao homem político (da urbanidade, da civilidade antiga) é outro fator curioso, emblemático desta fase em que nos encontramos, entre o moderno e o pós-moderno. De certo modo, esse fluxo também expressa a incontinência entre o social e o político, entre as contradições sociais agudas (Marx) e a desejada "previsibilidade político-administrativa" (Weber). Entretanto, há o desafio certo de reverter o processo que transformou o Outro no Mesmo, nesta mesmice atroz e que vilipendia a própria individualidade, como quer Baudrillard (1990). Lá onde existia o Outro, adveio o mesmo.. . e por isso ainda é tão importante retornar aos clássicos para falar do mundo do trabalho, do mundo social e não apenas do homem-político.

Em meio às críticas da moda, enfim, é preciso retomar exaustivamente os clássicos e não subestimar suas categorias. Assim, ainda diríamos que o homem é o resultado de suas circunstâncias modificadas pela ação social e pelo trabalho.

Entendida a Ação Social (a realidade objetiva que se expressa na subjetividade) no conjunto definido por Weber (1992), como: Ação tradicional: processa-se de acordo com as tradições seculares, usos e costumes sagrados. Ação carismática: inova e não só observa tradições. Funda-se na crença do autor ser dotado de poderes sobre-humanos e sobrenaturais que agem, livremente, sem se reduzir às normas estabelecidas ou tradicionais, mas sim por novas formas, normas e tradições.Ação afetiva: orientada pelas emoções e sentimentos (sentimentalidade). Ação social racional: é causal ou logicamente compatível com os fins propostos. Ação Política: A finalidade ideal da ação política é a instituição ou a perpetuação do poder. A ação política exerce três tipos de dominação: - Dominação carismática: legitimada pela fé e pelas qualidades sobrenaturais do chefe. Dominação tradicional: legitimada pela crença na tradição. Dominação legal: legitimada pelas leis a partir dos costumes, tornando-se possível pela burocracia e pelo direito: organização racional e legal das funções.

Afinal, o trabalho modifica o "mundo natural", o ambiente, o entorno humano, e este movimento e/ou fluxo contínuo transforma o homem (a sua subjetividade, individualidade), e, assim, em convívio com os demais, "o homem que trabalha" passa a constituir o mundo social, como se a natureza, enfim, fosse a partir de então "o mundo natural modificado pela ação humana": a sociedade, portanto, é moldada pelo trabalho que está na base da sua teleologia [41] (um projeto que tem claras intenções) e que orienta a práxis humana (a ação humana em meio à profusão de relações sociais [42]).

Por isso, o homem é indubitavelmente um animal social, na sua gênese e formação, e ainda que seja político na verificação dos resultados seguintes. Enfim, o homem conhecerá as relações de poder — disputará o "mundo natural" em prol de sua subsistência — e isto se dará muito antes de se tornar um "animal político", a partir da Polis grega. O mito de Prometeu (o Patrono do Trabalho) foi entendido pelos gregos como anterior ao mito da política. O Homo sociologicus, do trabalho e da sociabilidade imposta pela sobrevivência (2,5 milhões de anos atrás [43]), foi constituído muito antes do Homo politicus (a partir da ágora grega: há não mais do que cinco mil anos [44]).

Neste sentido é que nos serve a observação de que a própria política (ou o poder) antecede ou até se configura independente dos aparelhos de Estado.

As concepções "substantivas" pressupõem diferenciação institucional concreta dessas várias ordens. Quer dizer, sustenta-se, por exemplo, que a "política" só existe em sociedades que possuem formas distintas de aparelho de Estado, e assim por diante. Mas o trabalho de antropólogos demonstra de modo bastante efetivo que existem fenômenos "políticos" — relacionados com a ordenação das relações de autoridade — em todas as sociedades (Giddens, 1989, p. 27).

A Antropologia Política, portanto, faz uma crítica substantiva e estrutural ao classicismo, a exemplo da máxima de que a política nasceu na Grécia antiga.

Mais do que nunca é preciso re-valorizar a perspectiva sociológica da própria vida social — é preciso insistir na sociologia da vida social, pois é aí que estão nossas chances de revigorar toda forma de sociabilidade. Como vimos, hoje vivemos numa verdadeira janela do tempo, presos ao presente, mas procurando olhar para o mais longínquo (ou simplesmente para ali) a partir das mudanças e das transformações de toda sorte que surgem do olho do furacão; hoje procuramos abrir esta janela do tempo para ver se, em meio à crise, conseguimos visualizar algum lampejo do presente-futuro: não apenas como telespectadores passivos das novelas do presente, mas como atores. Por isso, abrir a janela do tempo, como nosso maior desafio, no presente, ainda exigirá de nós que coloquemos a cabeça para fora, na tentativa de vermos ao menos um palmo à frente do nariz.

Agora, haverá alguma certeza disso? De todo esse projeto de humanização (hominização) o que, de fato, ainda está em vigor? O que ainda oferece conteúdo de esperança para o futuro transformado?

Desse modo, pensando em confrontar, mas sem agredir, passado e presente, é que o trabalho foi disposto a fim de que pudéssemos indagarsubsidiariamente:

- O que trouxe racionalidade para a vida moderna, a própria "racionalidade" (institucionalização da violência e da política), o direito de regulação dos conflitos em torno da conquista e da sucessão da propriedade privada (desde o Código Civil Napoleônico)?

-Em que sentido terá contribuído a evolução do mesmo Estado Moderno que, gradativamente, passou a reconhecer o pluralismo jurídico (dado o pluralismo social e político), despertando-se do monismo jurídico hobbesiano?

-Esta mudança coincidiria com a transformação histórica do binômio direitos/deveres para a articulação direito/liberdades/garantias?

Na sua forma política, podemos dizer que se trata da democracia em forma de rizoma, que se expandiu horizontalmente mas que ainda necessita de muito crescimento longitudinal e de profundidade. De uma democracia que se já tem boa dimensão e visibilidade, mas que necessita de crescimento vertical, de fixação e de aprofundamento.

Em vez de pensar a democracia como uma flor frágil, que se pode facilmente pisar, talvez devamos vê-la como uma planta robusta, capaz de medrar até no terreno mais estéril [...] Nada acontece sem luta. Mas a promoção da democracia em todos os níveis é uma luta que vale a pena empreender e ela pode ser vitoriosa. Nosso mundo em descontrole não precisa de menos, mas de mais governo — e este só instituições democráticas podem prover (Giddens, 2000, p. 91).

A democracia já se fez como rizoma, agora deve se aprofundar como pilão, raiz profunda, que lhe dê sustentação e visão de dentro. Este pilão de socar valores públicos, para além do valor de uso e dos direitos individuais cercados pela propriedade privada. Com isso, poderíamos projetar e pensar em formas ou em códigos de conhecimento aberto, em que mais vale o entendimento. Para a construção coletiva dessa nova totalidade (que abarque em conjunto o mundo real/virtual) é preciso, portanto, que ocorra um profundo "desencantamento do totalitarismo". Também podemos/devemos discutir a oportunidade e alguns mecanismos que sirvam à democracia virtual, da crítica à prática, da resenha e análise política à prestação de serviços públicos, como no caso do site Directorio del Estado: El Portal del Gobierno Electrónico [45].

Estes são alguns dos fatores que poderiam nos levar a indagar sobre a oportunidade ou legitimidade de se falar em termos de uma epistemologia ou ecologia do mundo real/virtual, principalmente a partir da grande rede de comunicação virtual.


Epistemologia Virtual

À base da cibercultura, com o devido "desencantamento do totalitarismo", seríamos capazes de pensar numa Epistemologia Virtual, uma forma de conhecimento integrada, ajustada aos movimentos do mundo real/virtual, mas sem os sectarismos que tanto se acercam das discussões virtuais. É incrível que ainda hoje se perca tempo discutindo se a rede é boa ou má, se é capitalista ou não, ou se pode ser portadora de novas mensagens políticas, subversivas. Nós podemos pensar na convergência entre conhecimento, totalidade, alteridade, heteronomia, autonomia a partir desta comunicação ainda não-totalmente bloqueada na rede. Pensar em uma epistemologia que se abre e se renova com as experiências da comunicação aberta.

É preciso renunciar à idéia de que o conhecimento é forçosamente objetivo e universal e compreender que os conhecimentos são criados por homens em interação em situações mutáveis. Em compensação, não se deve renunciar em absoluto a relativizar os conceitos e instrumentos de representação estáticos que funcionam bem há uns cinqüenta anos [...] Somente se complementarmos esses antigos instrumentos com um novo tipo de ferramentas de navegação, de orientação e de comunicação — ferramentas que funcionem em tempo real, que levem em conta as singularidades das situações, a pertinência dos conhecimentos, e que façam surgir avaliações pelo uso — é que teremos chance de escapar da catástrofe (Lévy, 1996, p. 152).

Em países pobres como o Brasil, o evento crescente da comunicação via rede ressalta um dos paradoxos da "pobreza cultural". Cada vez mais, cidades pequenas ganham acesso a serviços na web, como bibliotecas virtuais, centros de cultura virtuais e demais serviços de busca de informações. Mas, pagam um preço caro, na medida em que refluem as bibliotecas reais, e que praticamente não existem livrarias presenciais (Filho, 25/11/2006).

Em todo caso, é incrível como, com tanto conhecimento à disposição, não se consiga ver estas questões de forma articulada e, no fundo, é este o sentido atribuído por Lévy em sua obra mais conhecida:

Uma nova ecologia das mídias vai se organizando ao redor das bordas do ciberespaço. Posso agora enunciar seu paradoxo central: quanto mais universal (extenso, interconectado, interativo), menos totalizável. Cada conexão suplementar acrescenta ainda mais heterogeneidade, novas fontes de informação, novas linhas de fuga, a tal ponto que o sentido global encontra-se cada vez menos perceptível, cada vez mais difícil de circunscrever, de fechar, de dominar. Esse universal dá acesso a um gozo do mundial, à inteligência coletiva enquanto ato da espécie. Faz com que participemos mais intensamente da humanidade viva, mas sem que isso seja contraditório, ao contrário, com a multiplicação das singularidades e a ascensão da desordem [...] O que é o universal? É a presença (virtual) da humanidade em si mesma. Quanto à totalidade, podemos defini-la como a conjunção estabilizada do sentido de uma pluralidade (discurso, situação, conjunto de acontecimentos, sistema etc) (Lévy, 1999, pp. 120-121).

Trata-se da "luta por reconhecimento" que já enunciamos em todo o texto: a luta pela totalidade deve excluir todo totalitarismo. Neste sentido, é urgente pensar em agentes e sujeitos políticos que possam habilitar novas ferramentas de interação e novas formas de vazão da intersubjetividade. É preciso perder a ingenuidade e ver que há muitos fluxos de poder na rede: "Um aparelho de televisão é um receptor passivo, uma extremidade de rede, uma periferia. Um computador é um instrumento de troca, de produção e de estocagem de informações. Ao canalizar e entrelaçar múltiplos fluxos, torna-se um centro virtual, instrumento de poder" (Lévy, 2003, p. 192).

Mas, do mesmo modo, é preciso pensar no virtual como centros de poder que possam atuar na desconfiguração da "esfera pública privatizada", em que o público seja realmente público e não mera extensão do privado. É preciso perceber no virtual a possibilidade real de se jogar a favor de um público mais heterogêneo, atuante, subversivo da mesmice do uso cotidiano, limitado, esgotado no próprio ato de consumo:

É sobre isso que os governos, os partidos políticos, as associações e as boas vontades podem e devem intervir. Entregue a sua inércia histórica, o fenômeno de interconexão em curso reforça naturalmente a centralidade — logo, o poder — dos centros intelectuais, econômicos e políticos já estabelecidos. Mas também é apropriado — um não exclui o outro — por motivos sociais, redes de solidariedade, iniciativas de desenvolvimento, projetos pedagógicos, formas mutuantes de cooperação e de trocas de conhecimento (Lévy, 2003, p. 193).

De modo simples, é preciso pensar com urgência em formas de convivência e de ação social em nexo com a totalidade do mundo real/virtual, mas abortando veementemente todo resquício totalitário. É possível, pois, pensar o mundo real/virtual como mundo aberto, flexível, atuante (e mesmo que ainda não o seja em sua maior parte), isto é, pensar com a "utopia-possível", até porque não há outro caminho viável para fugir do modelo controlativo que não seja interativo e inclusivo.

Homem e mulher, jovem e velho, dentro e fora, trabalho e lazer, pai e filho, superior e inferior, rico e pobre, corpo e alma, natural e artificial, bem e mal, perto e longe, valioso e sem valor, amigo e inimigo, semelhante e estrangeiro, a lista poderia ser muito longa de todas essas categorias, não apenas sociais e culturais, mas também existenciais, que não entram mais, umas com as outras, em sistemas de correspondência estáveis, mas se renegociam e se complicam constantemente em uma rede movediça e multiforme (Lévy, 2000, p. 28).

Este, enfim, pode ser o mundo real/virtual já presente em potência no ciberespaço e na cibercultura. Portanto, nesta aparição da modernidade tardia estaria o fio do encontro com a chamada pós-modernidade. Deste encontro, retivemos alguns lances que valem a pena ser jogados: de um lado, pensando que é possível reconstruir a experiência da totalidade (mas sem a Razão de Estado, agora cortada pela topologia da rede); de outro, uma pós-modernidade que se julgou sem roteiro, à deriva (às vezes sem eira, nem beira) mas que muito auxilia na desconstrução do modelo controlativo, notadamente quando se destaca pela topologia da fragmentação. Pois nada poderia combater melhor o núcleo duro da Razão de Estado do que a "luta pelo reconhecimento da liberdade": os sentidos universais da liberdade estão em negar tudo o que não é livre.

Por fim, resta-nos dizer que se utilizamos tantos clichês, palavras de ordem e chavões, foi para que todos esses ideólogos percebessem (sic) quantos chavões eles usam para agredir aos outros. Ideólogos que confundem conhecimento com informação e, o que é pior, informação passada, que será repassada sem nenhuma consideração pelo pensamento e pela reflexão — e isto também é ideologia.


Bibliografia

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NOTAS

01 Para o secretário-executivo do Ministério da Justiça, Luiz Paulo Barreto (20/11/2006), é melhor educar o usuário e oferecer produtos mais baratos: "Processar quem baixa MP3 é um erro".

02 Há mais de dez anos os zapatistas, no México, são exemplo vivo dessa declaração de liberdade.

03 Os mais legalistas diriam que se quer a "descriminalização da pirataria".

04 Milhares de usuários vinculados diretamente à lógica do "um-um" imposta pelo valor de uso formam apenas uma massa múltipla de si mesma. Isto é, o "múltiplo" limitado pelo consumo é muito diferente do coletivo, em que prevalece a lógica aberta do "todos-todos".

05 http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/404nOtF0und/404_26.htm.

06 Não é à toa que uma pesquisa simples no Google revela mais de 28 milhões de itens (28.100.000) para a expressão crimes virtuais, no dia 18/11/2006.

07 Lévy, 1993.

08 http://tecnologia.terra.com.br/interna/0,,OI1258440-EI4802,00.html.

09 http://tecnologia.terra.com.br/interna/0,,OI1258803-EI4802,00.html.

10 http://enlacezapatista.ezln.org.mx/especiales/52/, em 20/11/2006.

11 http://vientos.info/cml, em 20/11/2006.

12 http://vientos.info/cml/?q=node/4418, em 20/11/2006.

13 http://vientos.info/cml/?q=taxonomy/term/101, em 20/11/2006.

14 Não se experimenta com freqüência qualquer sentido de Justiça no virtual, porque o próprio princípio da auto-organização virou pastiche.

15 http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/lavanguardia/2006/11/18/ult2684u247.jhtm, em 18/11/2006.

16 Virtual, real e atual estão empregados no sentido atribuído por Lévy (1996).

17 O Estado seria capaz de promover um mínimo de Justiça, combatendo as exceções e os privilégios, em benefício do todo. No caso do texto, teríamos mais liberdade comunacional se plantássemos mais responsabilidade social e não o contrário, supondo que com a exceção à liberdade vamos chegar à regra da segurança.

18 Sem contar que muitos são exemplos vivos da psiquiatria.

19 Casa de campo, de praia ou recantos virtuais para descansar do trabalho tecnocrático ou pseudo-científico.

20 Nos casos extremados do seu positivismo, acreditam que toda informação é isenta de "juízos de valor".

21 "Todo mundo deveria ter um computador em casa – e em breve teremos!"

22 Como sinalizava Weber: "...uma comunidade organizada por funcionários numa instituição que atribui dons da graça" (1979, p. 331).

23 Certamente não sabem, mas são os novos ideólogos – se é que a ideologia pode ser nova.

24 http://www.unicamp.br/~hans/mh/escrTec.html.

25 http://paginas.terra.com.br/arte/mundoantigo/vinci/MPLE073.jpg.

26 Alquimistas taoístas inventaram a pólvora no século VIII e foi utilizada inicialmente como fogos de artifício.

27 Se esta palavra não existisse, teria que ser inventada, porque poucas servem tão bem ao obscurantismo.

28 http://tecnologia.uol.com.br/album/novembro_album.jhtm?abrefoto=44.

29 jus.com.br/revista/texto/7692"> http://jus.com.br/revista/texto/7692.

30 Para os efeitos desejados no texto, podemos combinar visível com real e invisível com virtual.

31 De autoria da escritora britânica Mary Shelley, trata-se de um romance de terror gótico com inspirações no romantismo. O romance conta a história de Victor Frankenstein, estudante de ciências naturais que constrói um monstro (o Prometeu Moderno) em seu laboratório. Considera-se a revisão da terceira edição do livro, publicada em 1831, como a definitiva.

32 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2911200612.htm.

33 E aí falamos de uma dúvida metódica, pois é preciso duvidar sempre.

34 Esta aristocracia do pensamento não supõe imediatamente que haja premiação pelo mérito, que seria a meritocracia, pois a relação de poder (na "promoção intelectual") pode se dar em outras bases bem mais mesquinhas.

35 Os nós marcados pela cola do aço e do concreto.

36 Da alma ou do corpo.

37 Este Estado de Exceção, figurando como último capítulo da tese, servirá apenas como um dos possíveis exemplos disto que chamamos de "modernidade tardia" e de sua ação vingativa contra o "passado liberal-burguês", que se formou na segunda fase do projeto da modernidade (séculos XVII e XVIII).

38 Exercem um enorme controle sobre sistemas de busca, como o Google, na China.

39 O penúltimo capítulo, como uma outra face da "sociedade tardia", está em consonância com as exceções da modernidade.

40 Não é muito confortador que, além da espada do desemprego estrutural, agora o trabalho formal seja substituído pelo trabalho imaterial.

41 Entendida a expressão como um "projeto bem sucedido, aquele que começa e que tem uma finalidade, um objetivo traçado". Mas igualmente como "estudo da finalidade" ou "doutrina filosófica que considera o mundo como um sistema de relações entre meios e fins" (Lalande, 1999, p. 1112.)

42 Se a cada ação corresponde uma reação de iguais proporções, neste caso, então, esta reação social deverá a substância da ação inicial. Não há inércia social.

43 2,5 milhões de anos atrás o Homo habilis (humano habilidoso) desenvolveu as primeiras ferramentas (era capaz de trabalhar a pedra) e há 2 milhões de anos surgiu o Australopithecus robustus, que tinha um formato das mãos que lhe permitiu a construção de novas ferramentas. O Homem de Java ou Homo erectus (humano ereto) foi quem dominou o fogo prontamente, há cerca de 1,8 milhão de anos: isso permitiu-lhe a vida em comunidade.

44 E mesmo a chamada Revolução do Neolítico — quando o Homo sapiens sapiens combinou definitivamente a técnica, a política e a arte no mesmo contexto social e de produção da vida social — é anterior à ágora antiga em outros cinco mil anos.

45 http://www.gobiernoelectronico.org.


Autor

  • Vinício Carrilho Martinez

    Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Weber no mundo real/virtual: o direito à liberdade sem censura. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1277, 30 dez. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9337. Acesso em: 18 abr. 2024.