Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/94325
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

HISTÓRIA DO DIREITO E ANTROPOLOGIA

HISTÓRIA DO DIREITO E ANTROPOLOGIA

Publicado em .

Texto Base: Jorge Zaverucha em O que resta da ditadura: Relações Civil-Militares: o legado autoritário da Constituição de 1988[1]

Um processo de democratização pode ser, de acordo com a literatura, dividido em três fases, a da liberalização ocorre quando o regime autoritário começa a fraquejar e sinaliza sua intenção de realizar mudanças politicas, a transição ocorre quando novos atores políticos são incorporados ao processo de tomada de decisões, visando preparar a polis para eleições multipartidárias e, a consolidação democrática e um processo de fortalecimento de instituições e aprofundamento das instituições e da cultura democrática. Esta consolidação é alcançada quando a democracia tornase tão legitima e profunda, sendo muito improvável que venha a ser golpeada.

Tal divisão em fases tem seu mérito heurístico[2]: ajudanos a classificar os países. Contudo, pela sua falta de rigor metodológico, as duas primeiras fases liberalização e transição baseiamse, primordialmente, na concepção de democracia como competição eleitoral. Como o conceito de democracia não se esgota em eleições, estas divisões podem funcionar em países onde os direitos civis já foram bem assimilados. Neles, falar em direitos políticos implica, a previa existência de direitos civis. A trajetória histórica dos países latinoamericanos é diferente da experiência europeia e norteamericana. É um erro acreditar que a concepção sobre democracia seja a-histórica, isto é, valida para qualquer sistema politico independentemente do tempo.

A terceira fase, a da consolidação, não se refere primordialmente a liça eleitoral e, por isso mesmo, os critérios para sua avaliação são distintos das duas fases anteriores. Em países como o Brasil, onde avançamos muito mais nos direitos políticos do que nos civis e sociais, esta divisão trifásica ainda é problemática.

A Nova Republica[3] foi inaugurada sob o palio militar, neste ambiente, de forte presença politica militar, é que foi redigida a Constituição Federal de 1988. A Carta Magna mudou substancialmente a Constituição autoritária anterior (196769), mas manteve incólume vários dos artigos desta Constituição autoritária, referentes às relações civilmilitares e policiais. Por exemplo, quando os constituintes decidiram retirar a faculdade das Forcas Armadas de serem garantes da lei e da ordem, o general Leônidas ameaçou interromper o processo constituinte. Os constituintes recuaram, no texto final, mantiveram, por meio do artigo 142[4], o poder soberano e constitucional das Forcas Armadas de suspender o ordenamento jurídico sem precisar prestar contas a qualquer outra instancia de poder; ou seja, os militares podem dar um golpe de Estado amparados por preceito constitucional.

Impressiona o fato da coalizão de centrodireita que escreveu a Constituição de 1988 ainda controlar o Congresso Nacional. Os artigos da Constituição que versam sobre as Forcas Armadas e as forcas policiais foram perifericamente alterados, mantendose, deste modo, vários enclaves autoritários dentro do Estado.

Mesmo que a Constituição tenha sido emendada mais de sessenta vezes entre 19882008, em um ritmo superior a Constituição mexicana do Partido Revolucionário Institucional (PRI) é como se o Brasil estivesse se transformando em um governo dos legisladores em vez de um governo das leis. Vinte anos depois, este poder militar permanece constitucionalmente, praticamente, intacto e não ha sinais concretos de que esta situação possa ser alterada.

O Partido dos Trabalhadores, quando era oposição, apresentou três projetos para abolir a Lei de Segurança Nacional, nenhum deles foi desengavetado com a chegada do PT ao poder central. Nem Lula nem sua base parlamentar no Congresso procuraram desafiar a essência do poder militar, claramente denunciada pelo constituinte Lula em seu discurso no Congresso Nacional.

Este estado constituinte permanente dificulta o estabelecimento de um Estado de direito Democrático, pois as instituições coercitivas são constitucionalmente incentivadas a aplicar a lei de um modo semelhante ao que faziam em um contexto autoritário. As Forcas Armadas e a policia, de acordo com este desenho institucional, tornamse enclaves autoritários constitucionalmente sancionados. Sem esquecer que a Constituição de 1988, em pleno século XX, conservou a falta de uma das principais características do Estado moderno: a clara separação entre a forca responsável pela guerra externa (Exercito) e a Policia Militar encarregada da manutenção da ordem interna. Chegouse ao ponto de apagar do texto constitucional a expressão "policial militar", que foi substituída por "militar estadual", algo que o regime militar não ousou fazer.

  1. Trabalho avaliativo na forma resumo do texto. Faculdade Cidade Verde. 2018. Direito. Discente: Flávia Gutierrez. e-mail: [email protected]

  2. Diz-se que um método é heurístico quando leva o aluno a descobrir aquilo que se pretende que ele aprenda: maiêutica socrática é, por excelência, um método heurístico. Não devemos confundir heurística ou hipótese de trabalho com erística, do grego eristikos, que anima a disputa, a controvérsia. A erística é a arte da discussão e de manejar, no debate, sutilezas lógicas. APIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 5.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. Disponível em: https:sbgdicionariodefilosofia

  3. A Nova República é um período da História do Brasil que tem início com o final da Ditadura Militar (1985) até os dias de hoje. Começa com a saída do general Figueiredo da presidência do Brasil e a entrada de um civil no cargo, José Sarney. Esta fase é conhecida como Sexta República, e faz referência ao nascimento de um novo período democrático, em oposição ao antigo governo que representava a censura, falta de democracia e repressão aos movimentos sociais. Principais características da Nova República: Redemocratização do Brasil; Retorno das liberdades sociais: imprensa, manifestação política, expressões artísticas e culturais, opinião e etc; Eleições diretas para presidente da República, a partir de 1990; Promulgação de uma nova constituição em 1988, que valorizou a democracia e o respeito os direitos do cidadão; Retorno do sistema político multipartidário (no regime militar só existiam dois, ARENA e MDB); Tentativas malsucedidas de combate à inflação durante o governo Sarney; Combate e controle inflacionário, através do Plano Real, no governo Itamar Franco (continuados nos governos Fernando Henrique, Lula e Dilma); Fortalecimento dos laços econômicos do Brasil com os países vizinhos no cone sul (Argentina, Uruguai e Paraguai) com a criação do Mercosul em 1991; Aumento das relações econômicas com países da África e Ásia, principalmente com a China; Criação de programas sociais voltados para as populações carentes; Aumento da influência do Brasil no cenário externo. Disponível em: https://www.historiadobrasil/brasil_republicano/nova_republica.htm

  4. São os artigos 142 e 143 que falam da instituição das Forças Armadas no Brasil. Logo no enunciado do artigo 142, vemos os objetivos das Forças Armadas assim postos: Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.



Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pela autora. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi.