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O incompreensível calote dos precatórios

O incompreensível calote dos precatórios

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É a primeira vez na história da República que a União pretende desviar os recursos orçamentários do precatório para financiar benefícios sociais.

Como se sabe, o governo federal está patrocinando uma PEC para calotear os precatórios da ordem de R$ 89 bilhões previstos na proposta orçamentária de 2022.

Ora, se houve inclusão na proposta orçamentária é porque existem recursos financeiros para quitar essas dívidas oriundas de condenação judicial.

Então, pergunta-se, por que o calote?

A resposta é óbvia! O governo pretende desviar esses recursos para turbinar os programas de inclusão social neste e até o final do ano de 2022, quando o presidente Bolsonaro disputará a sua reeleição.

Pretende, como se sabe, aumentar o valor do benefício do “Auxílio Brasil”, sucessor do Bolsa Família, para R$ 400 a ser destinado a mais de 16 milhões de vulneráveis com o objetivo claramente eleitoreiro. Vale dizer, depois de 2022 os beneficiários provavelmente  voltarão ao patamar anterior, ou seja, passarão a perceber R$150, porque o governo não terá interesse em novo calote do precatórios e na nova superação do teto de gastos.

Pretender esconder o sol com a peneira como fez o Ministro Paulo Guedes que afirmou tratar-se um “governo reformista e popular”, e não, um governo populista, não convence a ninguém. Aliás, tudo indica que o dócil Ministro foi induzido a fazer esse discurso em apoio à vontade do presidente de aprovar uma PEC para deixar de fora do teto de gastos pelo menos R$ 83,6 bilhões, fato que levou os quatro secretários do Ministério da Economia a pedir demissão, trazendo estragos na Bolsa e causando a elevação de taxa de câmbio.

Não se sabe se é má vontade política ou se é falta de competência e visão para resolver a questão dos precatórios, agora, ditos impagáveis.

Ora, considerando que a União possui uma dívida ativa superior a R$ 3 trilhões, que os órgãos judiciários não têm condições de cobrar, pergunta-se, por que não instituiu, até hoje, a compensação tributária prevista no art. 170 do CTN?

O governo e o Ministério da Economia têm a obrigação de conhecer o teor da Emenda Constitucional nº 99, de 14-12-2017, que institui o art. 105 do ADCT com a seguinte redação:

“Enquanto viger o regime de pagamento de precatórios previsto no art. 101 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, é facultada aos credores de precatórios, próprios ou de terceiros, a compensação com débitos de natureza tributária ou de outra natureza que até 25 de março de 2025 tenham sido inscritos na dívida ativa dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, observados os requisitos definidos em lei própria do ente federativo”.

Por que a União não regulamentou esse preceito constitucional?

Com a compensação a União não terá que  gastar R$ 97 bilhões de recursos do orçamento para pagar precatórios e, ao mesmo tempo, irá diminuir em igual quantidade o estoque da dívida ativa, concorrendo para reduzir a sobrecarga dos órgãos judiciais, que não estão dando conta para cobrar executivamente tantas dívidas ativas da União.

Dir-se-á que o art. 105 do ADCT não fez referência à União, mas apenas a Estados, Distrito Federal e Municípios. É verdade, mas isso se deve ao fato de que a União jamais esteve em mora no pagamento de precatórios. Religiosamente no início de janeiro de cada ano a União sempre vinha disponibilizando aos órgãos judiciais competentes os recursos financeiros correspondentes às verbas consignadas na LOA, a título de precatórios.

É a primeira vez na história da República que a União pretende desviar os recursos orçamentários do precatório para financiar benefícios sociais.

Trata-se, portanto, de mera interpretação atualizada do texto do art. 105 do ADCT.

A omissão legislativa vem frustrando o legítimo direito dos precatoristas proclamado em nível constitucional. Apesar de credores da Fazenda em quantias bem superiores aos débitos tributários que lhes são imputados vêm sofrendo cobranças, na maioria das vezes, por meios anormais que envolvem inscrição de seu nome no CADIN, protesto da CDA, proibição de obter certidão negativa para a prática de atos diversos, como obtenção de crédito, alteração contratual no Junta Comercial, participara de licitação pública etc. 

E mais, nada impede de a União implementar o disposto no art. 170 do CTN:

“Art. 170. A lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda Pública.

Parágrafo único. Sendo vincendo o crédito do sujeito passivo, a lei determinará, para os efeitos deste artigo, a apuração do seu montante, não podendo, porém, cominar redução maior que a correspondente ao juro de um por cento ao mês pelo tempo a decorrer entre a data da compensação e a do vencimento.”

Concluindo, existe solução legislativa sem dar o calote constitucional do precatório e sem patrocinar a PEC par contrariar o teto de gastos, o principal instrumento fiscal para atingir o equilíbrio das contas públicas.

 Não é precioso semear o caos para, ao depois,  tentar minorar os problemas enfrentados pela população carente que, em última análise, são vitimas da política predatória do governo central. Fazer populismo à custa dos pobres não é coisa de governante sério.


Autor

  • Kiyoshi Harada

    Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARADA, Kiyoshi. O incompreensível calote dos precatórios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6709, 13 nov. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/94704. Acesso em: 25 abr. 2024.