Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/95320
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Resenha do artigo "Os Direitos Humanos Trabalhistas dos Contratados de Agências Internacionais atuantes na Crise Migratória no Estado de Roraima", de Fernando César Costa Xavier

Resenha do artigo "Os Direitos Humanos Trabalhistas dos Contratados de Agências Internacionais atuantes na Crise Migratória no Estado de Roraima", de Fernando César Costa Xavier

Publicado em .

No artigo Os Direitos Humanos Trabalhistas dos Contratados de Agências Internacionais Atuantes na Crise Migratória no Estado de Roraima, Fernando César Costa Xavier, a partir de abordagem transcendente ao âmbito jurídico, joga luz a uma de forma de vulneração de direitos pouco perceptível aos olhos de grande parte das comunidades acadêmica e jurídica. A pesquisa empírica encaminhada em que se fundamenta parcialmente o estudo sinaliza para a confirmação da hipótese levantada pelo autor, qual seja, a de que direitos trabalhistas e de seguridade social das pessoas contratadas por organizações internacionais instaladas em Roraima estão sendo transgredidos.

Fernando Xavier inicia o texto esclarecendo que o contemporâneo acréscimo demográfico, ocasionado por fluxos migratórios venezuelanos, ganha contornos distintos daquele provocado por ondas migratórias internas, percebido desde as décadas de 60 e 70, época em que Roraima ainda era território federal. Sem olvidar os reflexos positivos da migração para o Estado, o autor registra que o incremento populacional, no cenário atual, decorre do deslocamento forçado de pessoas, motivado pela instabilidade do regime político da Venezuela peculiaridade que provocou a vinda de agências internacionais, com o propósito de atenuar os efeitos da crise instalada.

O capítulo que segue a introdução inaugura o estudo a partir de essencial análise dos substratos teóricos, normativos e jurisprudenciais relacionados à imunidade de caráter absoluto outorgada as organizações intergovernamentais. As convenções internacionais que tratam da matéria, vale registrar, até permitem que agências sejam excepcionalmente processadas e julgadas por tribunais nacionais, mas desde que abram mão expressamente da imunidade que lhes é conferida, renúncia até então não expressada por nenhuma das organizações instaladas em Roraima (ACNUR, UNFPA, ONU Mulheres, PNUD e OIM).

Para se chegar à constatação da categoria de contratados mais vulnerável, Xavier apresenta as formas de recrutamento de pessoal das agências internacionais, variáveis conforme sejam destinadas à composição da equipe principal (staff) ou não (non-staff). O autor desvenda que o aumento da demanda por serviços de natureza humanitária impulsionou as agências internacionais a optarem por processos seletivos de contratação mais simplificados que viabilizassem a apresentação imediata do contratado (As soon as possible), circunstância que contribui para a evidenciação de que em Roraima a maior parcela das pessoas não é contratada para compor o staff das organizações e indicadora de imprópria utilização de pessoal non-staff. Esse contexto justifica a chamativa abertura para a segunda etapa do artigo: Os funcionários e os contratados que não serão tratados como funcionários: a força de trabalho sombria e silenciosa.

O texto chama a atenção para os riscos à saúde mental a que estão submetidos os trabalhadores que atuam na linha de frente em emergências humanitárias complexas, ao analisar relatos de pessoas que exerceram suas atribuições na qualidade de horistas no Posto de Triagem para venezuelanos recém-migrados situado em Boa Vista e relatos de consultores que promoveram pesquisas de campo junto aos migrantes nas ruas, nos abrigos e em ocupações.

O autor, valendo-se da classificação proposta por Väyrynen, considera que em Roraima a intervenção das organizações internacionais opera em um cenário de emergência humanitária tanto violenta quanto complexa, porquanto envolve, a um só tempo, dentre outros aspectos, o deslocamento forçado (circunstância ligada a emergência humanitária violenta) e a fome em larga escala (condição relacionada a emergência humanitária complexa), decorrentes da crise na Venezuela.

Apesar de todas as dificuldades suportadas no dia a dia, ao que tudo indica, os contratados das agências intergovernamentais expõem de forma positiva suas experiências laborais, destacando o texto interessante relato de um entrevistado no sentido de que a dedicação abnegada ao trabalho humanitário era fomentada, no ambiente interagências, por uma cultura do sacrifício.

Exposto o cenário desafiador do qual se extrai a necessidade de um ponto de equilíbrio entre a obrigação de resguardo por parte das organizações internacionais dos direitos dos trabalhadores que para elas prestam serviços e a exigência de sacrifícios impostos sobre tais pessoas no exercício da atividade humanitária emergencial , o autor aponta uma série de aspectos dos contratos de trabalho firmados pelas agências intergovenamentais que contrastam com os padrões trabalhistas brasileiros.

Para exemplificar, no caso do contrato de horista, estimado abranger mais de 80% do pessoal da OIM em Roraima, não há descanso semanal remunerado, tampouco remuneração superior para o trabalho noturno. Ademais, para a rescisão do contrato antes do término, basta a comunicação da parte por escrito com antecedência mínima de um dia, sem maiores formalidades. Os contratos por tempo fixado (fixed-term) adotados por todas as organizações internacionais para o cargo de consultor também não passaram isentos de críticas pelo autor. Xavier constatou que os referidos contratos geralmente vigoram por período inferior a um ano (short-term) e que mesmo nas hipóteses de renovação contratual inexiste direito ao gozo de férias anuais, na medida em que, na prática, o adimplemento do período aquisitivo calha com a resolução do contrato.

Outro ponto de inquietação se refere ao fato de os membros non-staff não poderem se socorrer nem mesmo do Tribunal Administrativo da Organização Internacional do Trabalho, visto que o ILOAT desempenha sua quase-jurisdição apenas em situações que envolvam violação de direitos de trabalhadores do staff. Em outros termos, os não-funcionários das agências (non-staff) prestam seus serviços no Brasil, mas, por força da imunidade absoluta reconhecida, não têm seus interesses resguardados pela legislação e pelos órgãos de fiscalização brasileiros, restando, nessa perspectiva, despidos de proteção jurídica tanto no âmbito nacional quanto no internacional.

Avançando para o final do texto, com a intrigante afirmação que estampa o título do último capítulo de que não é justo criar uma força de trabalho vulnerável enquanto se defende direitos humanos e princípios internacionais do trabalho, o autor invoca a responsabilidade das organizações intergovernamentais pela tolerância da infringência de direitos humanos de parcela significativa de seu próprio pessoal.

Neste particular, sem o escopo de objurgar a relevante atuação das agências internacionais frente aos impactos da crise venezuelana, externo o desconforto decorrente da imagem de que entidades de promoção de direitos humanos, vocacionadas a busca pela superação de vulnerabilidades, estariam propensas a vulnerar direitos de pessoas por elas contratadas. Para a manutenção da reconhecida credibilidade social de que gozam tais instituições, é importante que façam o dever de casa e, por conseguinte, atuem de forma ativa para impedir transgressões também a direitos titularizados pelas pessoas que contratam. Como enfatizado pelo autor: A reputação das organizações internacionais que atuam em defesa dos direitos humanos depende, afinal de contas, de que elas sejam capazes de fazer frente a vulnerabilidades e violações onde quer que elas se apresentem.

O estudo, em suma, confere visibilidade a uma forma de vulnerabilidade ainda pouco explorada nos meios acadêmico e profissional. A vulnerabilidade exposta por Fernando César Costa Xavier deriva da conjuntura jurídico-laboral dos contratados de agências internacionais atuantes na crise migratória em Roraima, provocada, dentre outros fatores, por rotinas extenuantes de trabalho, sem a contrapartida de garantia de acesso a direitos trabalhistas e de seguridade social, seja no plano nacional, seja no plano internacional (no caso dos non-staff).

Mostra-se necessário, em virtude dessas colocações, um olhar sensível não apenas para os migrantes, mas também para os trabalhadores das organizações internacionais, notadamente aqueles que não compõem o staff, já que tão vulneráveis quanto o grupo em favor do qual lutam diariamente.


REFERÊNCIAS

VÄYRYNEN, Raimo. The age of humanitarian emergencies. Paper prepared for the UNU/WIDER Conference on The Political Economy of Humanitarian Emergencies. 6-8 out. Helsinki, Finland, 1996.

XAVIER, Fernando César Costa. Os Direitos Humanos Trabalhistas dos Contratados de Agências Internacionais atuantes na Crise Migratória no Estado de Roraima. Revista da Faculdade de Direito da UFU, Uberlândia, vol. 48, n. 1, 2020, p. 156-194.


Autor


Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelo autor. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi.