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Resenha de obra que investiga a contribuição do pensamento judaico em favor do desenvolvimento do Direito Internacional

Resenha de obra que investiga a contribuição do pensamento judaico em favor do desenvolvimento do Direito Internacional

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Resenha de obra que investiga a contribuição do pensamento judaico em favor do desenvolvimento do Direito Internacional

Rogério Duarte Fernandes dos Passos

Resenha. WEIL, Prosper. O Direito Internacional no Pensamento Judaico. Trad. Marina Kawall Nóbrega. São Paulo: Perspectiva, 1985, 124 p.

Sobre o autor.

Nascido em Estrasburgo, França, Prosper Weil (1926-2018) foi eminente advogado e jurista francês, com grande militância no Direito Internacional. Ao longo de sua trajetória lecionou na Faculdade de Direito da Universidade Panthéon-Assas (Paris II), e foi membro da Académie des Sciences Morales et Politiques do Institut de France, do Institut de Droit international, do Tribunal Permanente de Arbitragem, do Tribunal Administrativo do Banco Mundial e representante francês na corte de arbitragem que decidiu o complexo Caso de Fronteira Marítima Canadá-França, de 1992, que delimitou a extensão da Zona Econômica Exclusiva do território francês de Saint Pierre e Miquelon.

Dentre as suas obras mais relevantes, temos Le Droit International dans la Pensée Juive, cujo capítulo I consta do livro Le Judaisme et le Devéloppement du Droit International, estampado na tradicional publicação Recueil des cours, em 1976, objeto da presente obra resenhada, traduzida por Marina Kawall Nóbrega.

Sobre a obra.

Em O Direito Internacional no Pensamento Judaico, temos o prefácio de Celso A. Mello (p. 07-09) destacando a significativa contribuição do trabalho de Prosper Weil na compilação e análise do repositório ético do Judaísmo em favor do Direito Internacional, capaz de guindar a disciplina ao aspecto de universalismo, resgatando, no mesmo ínterim, as influências doutrinárias e históricas do povo judeu às relações internacionais.

Já na obra propriamente dita, Prosper Weil destaca o ideal sempre presente no desenvolvimento do Direito Internacional de buscar princípios fundamentais presentes em todas as filosofias e em todos os sistemas, substanciando verdadeiro patrimônio comum da humanidade (p. 11). Segundo o autor, neste patrimônio comum, as considerações de ordem religiosa não podem ser ignoradas em um estudo que se queira mais profundo, ainda que o mundo contemporâneo tenha herdado o caráter laico do Século XVIII francês e da própria Revolução Francesa (p. 11).

É nesse contexto que se insere o presente estudo considerando que o próprio Cristianismo advém de uma reforma do Judaísmo , de forma que o ambiente cultural dos hebreus ofereceu seus livros religiosos para o desenvolvimento do Direito Internacional, donde se pode reconhecer a origem judaica dos mandamentos de amar a Deus e ao próximo como alicerces éticos de um mundo edificado na crença do Deus único reconhecendo a irmandade de povos , impondo-se a fomentar limites nos conflitos e nas guerras, como vemos no tópico específico do jus ad bellum nas condições em que se pode recorrer à guerra , e jus in bello sobre como conduzi-la (p. 62-78), valorando as possibilidades e conveniência de sua concretização. Nesse sentido, a guerra é situação extraordinária, uma vez que o referencial básico a orientar a prática judaica é caminhar rumo à paz.

É relevante, porém, destacar que o estudo não adentra ao Direito Internacional Privado, ainda que se ressalte que o conflito entre lei judaica e não judaica repousa no princípio talmúdico Dina demalkhuna dina (a lei do país é a lei), como que dentro de certos limites enunciando a prevalência da lei domicílio (lex domicilii) sobre a judaica (p. 16), sem desconsiderar, ainda, a interface entre Islamismo, Judaísmo e Cristianismo, fermentando influências mútuas para além de heranças europeias ou meramente helênicas (p. 17). Acrescente-se nesse tópico, acerca da condição jurídica do estrangeiro, estar ele na tradição judaica submetido à mesma lei que o nacional, com igualdade de tratamento nas sentenças, em princípio devidamente escorado com o mandamento e tradição bíblica (p. 60).

Prosseguindo na leitura, mesmo com algumas dificuldades em aquilatar conceitos em âmbito religioso, é valoroso constatar o interesse do Judaísmo pelas relações internacionais no interior de uma societas gentium, em simetria em torno do gênero humano e em pluralismo de nações, colimando com temas caros ao Direito Internacional, como o da guerra e paz, o do direito de passagem inocente com trânsito pacífico em viagem por um território , o de imunidades diplomáticas com enviados invioláveis , direitos humanos com direito ao processo justo, aliado ao escopo de liberdade, integridade e segurança , e a própria superação do Direito das Gentes em favor de uma unidade abrigada sob a bondade do Pai Celestial (Yahweh). Por sinal, sobre o direito de passagem inocente, Prosper Weil lembra que os fundadores do Direito Internacional se inspirarão nas negociações de Moisés o profeta mais importante do Judaísmo em face de diferentes reis para lograr a condução dos hebreus em direção à Terra Prometida (p. 52) e, mesmo, no Direito do Trabalho, recorda que as boas condições de seu exercício não eram ignoradas pela Lei Mosaica (p. 58). Nesse repositório de reconhecimento ou similaridade aos direitos contemporâneos, por certo, a sacralização do poder, é explicada como um fenômeno fora do Judaísmo (p. 110), oferecendo justa compreensão de sua base axiológica em paralelo e em contribuição à normatividade jurídica que se vislumbra no momento presente.

Também soa em destaque a compreensão da Bíblia na sua qualidade de antigo livro judaico, que não deve ser tomada ao modo de uma epopeia nacional, mas como modelo a ser buscado a partir de valor quase normativo contemplando o que deve e não deve ser feito , refletindo as necessidades de regulação de uma sociedade de costumes bárbaros, a quem se destinaram as prescrições de então (p. 26 e 27).

Óbvio que a Lei de Moisés buscava evolução para o povo, aspirando no futuro um espaço de todas as nações, afinal, em unidade, todos são filhos do Criador, ainda que se ressalte também que o Judaísmo não tenha a pretensão de tornar-se um sistema jurídico, mesmo porque ele traz consigo (outras) categorias de bem e mal, moral e imoral, muito além de prescrições do que é legal ou ilegal, lícito e ilícito (p. 29-30). Ainda assim, em outros textos judaicos é possível constatar um princípio de Direito Público alicerçado na preocupação com a coletividade, em um contexto no qual as prescrições divinas, segundo o autor, revelam-se em um esboço indiscutível do Direito Natural (p. 31), ao lado do reconhecimento do poder com limitações face a seu abuso, de maneira que acham-se assim estabelecidos concomitantemente o primado da Torá [a compilação com os cinco primeiros livros da Bíblica Hebraica] e a submissão do Estado ao Direito e à Moral nas condições do Direito comum (p. 106-107) [inserção nossa].

Maimônides (11381204), filósofo, rabino e figura intelectual central do Judaísmo pós período medieval, alçou o posto de grandeza na Doutrina Judaica, com justo e pertinente destaque no estudo de Prosper Weil, no bojo de prescrições que, em comunidade, pugnam-se para toda a humanidade. Nesse sentido, o autor acrescenta que na visão judaica sempre haverá evolução no curso histórico, havendo no futuro triunfo da paz e justiça apesar de recuos , e ainda que o passado enalteça valores guerreiros, como na citação do filósofo pré-socrático Heráclito (ca. 535-475 a.C.), que dizia ser a guerra o pai de todas as coisas (p. 81). Observe-se, portanto, que no sentido oposto, o Judaísmo enuncia a paz por excelência e bem supremo, sendo a própria felicidade suprema, concretizando o significado da palavra Shalom, que etimologicamente quer dizer plenitude (p. 82-83). A própria missão do Messias será nesse sentido (p. 84).

A leitura é de entendimento complexo, cotejando as ideias-força judaicas e seus diferentes textos religiosos com o próprio De jure belli ac pacis, Hugo Grotius (1583-1645), de 1625, e também com o próprio pensamento de Francisco de Vitoria (1483-1546) e Francisco Suarez (1548-1617), na gênese que originaria o Direito Internacional em suas bases contemporâneas, mesmo que haja a advertência do próprio autor (na qual não desconsidera o papel crescente do indivíduo em direção à condição de sujeito de Direito Internacional Público):

O Direito Internacional, tal como se formou depois da criação do Estado moderno, na verdade repousa sobre dois princípios básicos: de um lado, a soberania do Estado, e de outro um caráter essencialmente interestatal, do qual o indivíduo é excluído. Ora, apesar das semelhanças em vários pontos, destacados atrás, o pensamento judaico encontra-se em desacordo com o Direito Internacional contemporâneo com relação a esses dois aspectos básicos (p. 103).

E, em guisa de conclusão, o magnânimo estudo do saudoso professor francês, preconiza:

Num momento em que o Direito Internacional é questionado por todos os lados e procura novo alento, talvez não seja fora de propósito salientar que, se o pensamento judaico constituiu historicamente um fator de desenvolvimento para o Direito Internacional, ele poderá afinal revelar, através das idéias (sic) que veicula, outra realidade e mais ainda: um fator quem sabe um fermento? de superação do Direito Internacional (p. 116).



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