SENTENÇA - GUARDA DE MENORES - CONCESSÃO UNILATERAL - ECA

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SENTENÇA QUE CONCEDEU A GUARDA UNILATERAL PARA A GENITORA COM DIREITO DE VISITA PATERNO

Processo:
Classe: AÇÃO DE GUARDA
Requerentes: A S O S e I G G
Réu: I G C


SENTENÇA COM RESOLUÇÃO DO MÉRITO

RELATÓRIO

Cuida-se de ação de guarda unilateral formulado por A S O S e I G G em face de I G C, com fundamento no artigo 33 e seguintes do ECA.
Pretendem os requerentes obterem a guarda judicial das crianças/adolescente I S C, A S C e de M S C, filhos da primeira requerente com o requerido I G C.
Quanto aos fatos, aduziram que A viveu em união estável com I por oito (8) anos, tendo se separado em 2013 e, por não ter local para levar seus filhos, os deixou na companhia do pai.
Relata que sempre visitou seus filhos, mesmo contra a vontade do requerido, tendo em vista que não lhe era permitido levá-los consigo e que em 2016 foi morar temporariamente na Bahia com seu companheiro (o requerente I G G), não declinando quanto tempo passou naquele Estado.
Diz a requerente, ainda, que sempre visitou seus filhos, sem especificar datas, mesmo contra a vontade do pai, até mesmo no colégio e que sempre costumava levar suprimentos, roupas e presentes para eles. Na escola ficou sabendo que Í tinha comportamento estranho e M apresentava baixo rendimento. Soube, também, que o genitor não costumava comparecer à escola quando era chamado.
Diante desses fatos e do conflito com o requerido, procurou o Conselho Tutelar onde as crianças teriam dito que sofriam violência física praticada por ele, além de cometer violência psicológica, o que teria lhe motivado a solicitar a guarda de seus filhos, haja vista a situação de risco e de vulnerabilidade vivenciada por eles.
Ao final, solicitaram a guarda provisória dos infantes, com a procedência do pedido.
A inicial veio acompanhada de documentos pessoais; declaração de união estável; conta de energia elétrica; certidões de nascimento; certidões judiciais; atestados de idoneidade; laudos médicos; comprovante de renda; documentos do Conselho Tutelar V; ocorrências policiais, entre outros.
Despachei inicialmente determinando a citação do réu e para manifestação sobre o pedido de guarda provisória por parte do MPE (ID 15052215).
O representante do MPE se manifestou requerendo a designação de audiência de justificação, com urgência.
Designei o dia 19.02.2020 para o ato, determinando fossem os infantes ouvidos pela equipe técnica no mesmo dia, para subsidiar minha decisão sobre a guarda provisória.
O requerido apresentou contestação pela Defensoria Pública no ID 15516782 rebatendo os fatos alegados pelos requerentes, ressaltando que não foi possível manter relacionamento de amizade com a mãe e que jamais proibiu sua visitação aos filhos. Esclareceu que corrige seus filhos, mas que jamais os espancou e que comparece à escola quando é chamado, tendo deixado de levar Ítalo à consulta psicológica porque não tinha com quem deixar seus outros filhos.
Na oportunidade, pediu a improcedência do pedido de guarda, com a sua regularização em seu favor, juntando, também, alguns documentos, entre eles certificados escolares, cabendo dizer que o requerido não apresentou reconvenção para que seu pedido de guarda pudesse ser apreciado.
A audiência inicial não se realizou, renovando-se o ato para o dia 18.03.2020. Esta, também, em razão da pandemia da COVID 19 foi suspensa.
Entendendo plausível e oportuna, considerando que o réu já havia apresentado contestação e que havia urgência, determinei a realização de estudo social em 45 dias, designando o dia 20.08.2020 para instrução e julgamento, com oitiva das partes e de testemunhas (ID 17799396).
Nos ID’s 18998712, 18998713 e 18998715 foram acostados relatórios de estudo técnico multidisciplinar, confeccionados pela equipe desta vara, datado de 14.08.20.
Audiência de instrução e julgamento no ID 19122026. Nela foram ouvidos os requerentes e o requerido, sendo a audiência continuada no dia 11.09.2020.
No ID 19236702 consta Of. nº 230/2020-GP, de 18.08.2020, oriundo da FUNBOSQUE, com relatório de atendimento do Núcleo de Acompanhamento Pedagógico (NAP) sobre os infantes, datado de 14.08.2020, no sentido de que a família necessita de acompanhamento pela rede de garantia de direitos, encaminhando declarações que comprovam que todos se encontram matriculados para o ano de 2020, com frequência acima de 89%.
Em 08.09.2020 proferi decisão denegando o pedido de guarda provisória, estabelecendo, contudo, o direito de visita materna às terça ou quintas-feiras, das 8 as 17 horas, com monitoramento da equipe técnica da vara, podendo levá-los para sua residência, com a intermediação do Conselho Tutelar de Outeiro.
Continuação da instrução no ID 19660395.
Memoriais finais do requerido no ID 19827219 e dos requerentes no ID 19901307. Relatório circunstanciado de acompanhamento de convivência no ID 20487832.
Manifestação do MPE no ID 20602057, favorável a concessão da guarda para os requerentes.
Revendo posicionamento anterior e considerando a urgência, concedi a guarda provisória dos menores para sua genitora (ID 20989985), que a recebeu em 12.11.2020 (ID 21097766).
É o relatório. DECIDO.

FUNDAMENTAÇÃO


Cuida-se de pedido de fixação de guarda unilateral formulado pela genitora em favor de seus filhos, que atualmente se encontram na posse de fato do genitor desde a separação do casal.
De pronto, observo que o pleito não encontra amparo legal no artigo 28 e segs. do ECA, que prevê a colocação em família substituta mediante guarda, tutela ou adoção. Em assim sendo, oportuno assentar que estamos diante da guarda decorrente do poder familiar que os pais exercem em relação aos seus filhos, regulada pelo Código Civil Brasileiro (artigo 1634, II).
De outra banda, a priori, permanecendo os filhos com um ou com outro genitor, continuarão no seio de sua família de origem ou natural, definida no artigo 25 do ECA.
Pela narrativa trazida com a peça inicial, tal como claro deixei no despacho do ID 15052215, p. 1 e 2, recebi o pedido porque dela se denotava “aparente situação de risco” em que se encontravam as crianças, atraindo, assim, a competência desta vara, na forma do artigo 98, II c/c o artigo 148, P. único, letra “a”, do ECA.
Quanto à proteção a pessoa dos filhos menores, estabelece o artigo 1583 do CC que a guarda será unilateral ou compartilhada. A primeira será atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (artigo 1584, § 5º) e a segunda, quando a responsabilização for conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. Na compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos (§ 2º). Desta, logicamente, em tese, não me ocuparei, haja vista que não foi objeto do pedido formulado pelos requerentes.
A guarda unilateral (ou mesmo a compartilhada) poderá ser requerida por consenso entre os pais ou por qualquer deles isoladamente ou, também, decretada pelo juiz em atenção as necessidades específicas dos filhos ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deles com o pai e com a mãe (incisos I e II, artigo 1584, CC). Daqui se extrai importante ensinamento: a guarda será sempre definida em prol dos interesses dos filhos e não dos genitores.
Na hipótese em que não haja acordo entre os genitores quanto à guarda dos filhos, encontrando-se ambos aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda de seu filho (§ 2º, artigo 1584, CC).
Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento do MP, poderá valer-se da orientação da equipe multidisciplinar, que deverá visar a divisão equilibrada do tempo com o pai e com a mãe (§ 3º, artigo 1584). A alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusula de guarda unilateral ou compartilhada poderá implicar a redução de prerrogativas atribuídas ao seu detentor (§ 4º, artigo 1584).
Há, contudo, a hipótese em que o juiz poderá deferir a guarda a pessoa estranha que revele compatibilidade com a sua natureza, quando o juiz verificar que o filho não deve permanecer com nenhum dos genitores (§ 5º, artigo 1584).
Havendo graves motivos poderá o juiz, em qualquer caso, a bem dos filhos, regular de maneira diferente daquelas estabelecidas a situação deles para com os pais (artigo 1586, CC).
O pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação (artigo 1589, CC), cujo direito de visita também se estende aos avós (P. único).
Cabe ressaltar que ambos os genitores se encontram no pleno exercício do poder familiar, definido no artigo 1634 do CC.
Pela afirmação da requerente, não desmentida pelo requerido, viviam ambos em união estável, disciplinada pelo artigo 1723 e segs. do CC, onde prevalecem os deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos (artigo 1724, CC).
A guarda, como direito decorrente do poder familiar, revela-se como um conjunto de obrigações, direitos e deveres que os pais exercem igualmente na relação com seus filhos.
Tal como dispõe o artigo 33 do ECA, a guarda também “obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente...”.
Toda criança/adolescente tem o direito fundamental de ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral (artigo 19, ECA).
A guarda unilateral pode ser, ainda, exclusiva (aquela atribuída a um dos genitores, resguardando ao outro o direito de convivência e de fiscalização das decisões tomadas pelo detentor da guarda) ou alternada (concedida apenas a um dos genitores, por um determinado período de tempo e, após o término desse período, a guarda passa para o outro genitor).1
Contudo, a grande questão que se revela é saber em que casos ou situações a guarda unilateral pode ser revista em favor do outro genitor.
Entendo bastante razoável cogitar-se que sejam elas as situações em que o detentor da guarda não venha cumprindo com seus deveres ou, de alguma forma, esteja provocando situação que violem os seus direitos (dos filhos) ou, ainda, quando não lhes garanta ambiente saudável e propício aos seu desenvolvimento sadio (artigo 19, ECA). Violências de quaisquer espécies não podem ser admitidas.
A proteção integral de que são portadores perpassa pela absoluta prioridade na efetivação de seus direitos humanos, com vistas a seu desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade, colocando-os à salvo de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (artigos 3º, 4º e 5º, do ECA).
1 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 458
Insta, portanto, saber se os infantes estão, ou não, com seus direitos violados ou ameaçados na companhia de seu genitor – o requerido – e se a requerente e seu marido reúnem as condições necessárias para o exercício isolado da guarda. Nesse contexto possível afirmar-se desde logo que os infantes se encontram privados da fraterna e salutar convivência materna, ou pelo menos vem sendo ela bastante tumultuada e dificultada pelo insano conflito relacional de Inaldo com sua ex-mulher.
Da análise dos fatos trazidos com a inicial, disseram os requerentes o seguinte:
- Que se separou do requerido em 2013, deixando seus filhos na companhia dele, porque não tinha condições de levá-los consigo;
- Que sempre visitou seus filhos, mesmo contra a vontade do pai;
- Que em 2016 foi para o Estado da Bahia com seu companheiro, mas retornava frequentemente para visitá-los;
- Que os visitava na escola e sempre acompanhou a vida escolar deles;
- Que seu filho Í e M apresentam problemas nas escolas (isolamento e baixo rendimento, respectivamente);
- Que o requerido não comparece à escola para acompanhá-los;
- Que estava proibida de visitá-los normalmente e que a situação foi levada ao conhecimento do Conselho Tutelar; e,
- Que ele possui 75 anos de idade.
Logicamente, o requerido negou todos esses fatos, restando inconteste que ele vem cuidando de seus filhos desde 2013, ou seja, há mais ou menos por 7 anos e que possui mais de 70 anos.
Os infantes possuem hoje 9 anos (Í), 11 anos (A) e 13 anos (M). Na época da separação possuíam 2, 4 e 6 anos de idade, respectivamente.
A instrução processual revela, pelas declarações das partes, um grande ressentimento do requerido em relação à requerente, principalmente por ter sido – no seu entender – abandonado, a si e aos filhos, sendo evidente que este fato quase que exclui a possibilidade de qualquer entendimento entre eles que seja favorável à pacífica convivência entre todos, como tal seria salutar. Quanto ao relacionamento do casal ao tempo em que estavam convivendo, nenhuma evidência de como tenha sido trouxeram as partes aos autos.
A requerente acusa-o de maus tratos e negligência para com os filhos e ele, nega. A prova testemunhal revela:
R DE S (ID 19660395), tia da requerente, com as ressalvas do parentesco, relata que a separação do casal se deu porque I tinha muito ciúmes dela; que acha que agora ela tem condições de cuidar de seus filhos; que em 2016 morou na Bahia com seu atual companheiro; que A e I não se entendem em relação às crianças e que as visitas da mãe eram sempre motivo de brigas entre eles; que ele também não permite a aproximação da família da mãe; que as crianças estão estudando e que I não costumava atender as chamadas da escola e que A fazia isto; que nunca presenciou qualquer tipo de violência de I contra os filhos; que já presenciou agressões verbais de I contra A; que as crianças têm medo do pai e ele ameaça bater com um fio.
A L (ID 19660395), esposa de um tio da requerente, acha que as crianças não são bem tratadas pelo requerido, mas nunca presenciou violência física; que elas estão matriculadas na escola; que A está sendo impedida de visitar seus filhos pelo pai; que o relacionamento dela com I é bem difícil, por culpa dele.
O C (ID 19660395), filha do requerido I. Disse que não sabe o motivo da separação deles; que seu pai cuida bem dos filhos; que seus irmãos estão estudando e que seu pai não as agride fisicamente, mas apenas as ameaça; que o casal não se entende com relação à visita dos filhos e que seu pai põe dificuldades para que isto ocorra e para ele nenhuma hora é boa para que isto ocorra; que apenas permitiu levá-los em um final de semana; que as crianças sentem falta da presença materna e da convivência com ela e que gostariam desse convívio; que as crianças são bem tratadas na casa paterna e possuem todo o conforto que ele pode lhes proporcionar; que ele leva os filhos todos os dias para a aula e lá comparece quando é chamado; que A não tinha condições de levar os filhos quando se separou; que seu pai é aposentado e que a declarante também ajuda nos cuidados e está com eles todos os finais de semana; que A era uma excelente mãe quando convivia com I e sempre manteve contato com os filhos; que M e A são apegados à mãe e já manifestaram para a declarante o desejo de morar com ela e que acredita que isto se deve as cobranças do pai e que eles acreditam que com ela será só “brincadeiras” e que I é um bom pai para si e para seus irmãos.
O Ministério Público, sustentando que o requerido criou óbice ao contato da genitora com os filhos – que configura conduta compatível com a alienação parental prevista no artigo 2º,
P. único, III, da Lei nº 12.318/2010; que se utilizou de castigos imoderados para correção/repreensão dos filhos e que foi negligente com as intervenções escolares, que repercutiu no desempenho escolar deles, especialmente de M e Í, como também que as crianças vivenciam situação de violação de direitos, pugnou pela procedência do pedido, assegurado o seu direito de visita, nos moldes do parecer psicológico, sugerindo, ainda, o acompanhamento pela equipe técnica da vara e pelo CT de Outeiro, com aplicação das medidas de proteção dos incisos IV e V do artigo 101 do ECA.
O relatório de estudo técnico multidisciplinar elaborado pelos analistas judiciários desta vara pontuou (ID 18998712):
1. Que A possui 32 anos de idade; seu companheiro 59 anos e I, 76 anos de idade;
2. Que A, nos três primeiros anos com seu atual companheiro, residiu na Bahia;
3. Que a residência do casal, embora humilde, apresenta as mínimas condições de higiene, salubridade, segurança e privacidade, estando localizada em perímetro com acesso ao transporte público, posto de saúde e escolas;
4. Que ela pretende garantir a seus filhos os atendimentos médicos e odontológicos de que necessitam;
5. Que durante o contato com M e A perceberam que estão com peso e altura fora do padrão adequado para a idade;
6. Que pretende também garantir o lazer para seus filhos;
7. Que o próprio Inaldo informou que não permite que seus filhos frequentem a praia e que em casa as práticas recreativas se resumem a assistir televisão e brincar no quintal da sua casa;
8. Que A, ante a impossibilidade de conviver e cuidar adequadamente dos filhos, isto lhe causa preocupação e intenso sofrimento emocional;
9. Que I possui duas outras filhas adultas e que sua filha O (31 anos) também lhe ajuda nos cuidados dos irmãos;
10. Que I defende a ideia de que A, quando se separou dele, perdeu todos os direitos, inclusive com relação a sua prole;
11. Que I declarou que não concorda com as visitas dela aos filhos e que já teria mandado que procurasse seus direitos. Também não admite que ela emita qualquer opinião em questões relacionadas aos filhos e que não acredita que esses conflitos possam afetar sus filhos; e,
12. Que, segundo I, os filhos não vão com ela porque não querem e que sabem terem sido abandonados por ela, confirmando que não os deixa sair com ela, nem para passear, nem para passar um fim de semana ou feriado, pois não confia que ela possa cuidar deles adequadamente.
Na oitiva pessoal, segundo o estudo, foram os menores reticentes com as respostas, parecendo terem sido instruídos o que poderiam, ou não, dizer. Contudo, consta, in verbis, que “a despeito disso, foi possível perceber que se no momento não vem ocorrendo o uso de castigos físicos imoderados, eles de fato já foram uma realidade, já que os três reconhecem ‘a corda azul’, como objeto disciplinador da casa e usam adjetivos como raivoso, brabo etc. para se referir ao genitor e o descrevem como sendo uma pessoa com comportamento iracundo, pois o substantivo raiva é o que mais aparece nos discursos de M e Í, quando se referem ao Sr. I”. E continua: “Parte disso, segundo eles, tem a ver com a situação processual atual e com o fato da mãe insistir em visitá-los, confirmado que ele sofre ofensas verbais nessas ocasiões, o que demonstra que eles estão inseridos ou pelo menos da disputa dos genitores pela guarda deles. A ida da Sra. I até sua casa, segundo eles, já foi motivo para que fossem castigados fisicamente ou perdessem algo, como o direito de ir brincar, ou até uma refeição, nesse caso, pelo genitor ter ficado chateado com eles por terem permitido que a mãe entrasse num momento em que ele não se encontrava em casa” e “toda vez que ela aparece ele fica com raiva e desconta na gente (sic)”.
No que tange à saúde, os infantes não souberam informar qual foi a última vez que foram no médico e ainda disseram que quando ficam doentes o pai os leva para se consultarem na farmácia.
A avaliação pedagógica identificou que os genitores “vivenciam um divórcio conflituoso ou destrutivo, que é o rompimento dos lações conjugais, caracterizado por disputas e violência familiar que prejudicam o adequado cuidado com os filhos e consequente desenvolvimento da prole do casal que investe mais energia no litígio que nos cuidados necessários às crianças (VASCONCELOS, 2018). No caso em estudo, muitos são os fatores que acirram os conflitos, com destaque para a diferença intergeracional dos genitores (mais de quatro décadas) e, portanto, de seus paradigmas de casamento, família, práticas parentais etc.”. E mais: “O Sr. I é um homem de 76 anos, com valores morais e religiosos rígidos e a conduta da ex- companheira, que pôs fim ao casamento e saiu de casa deixando os filhos, é repudiada por ele, de forma que o requerido entende que a única forma dela ter contato com os filhos é sob sua supervisão e ainda por breve período de tempo, estipulado por ele, ignorando a importância da presença materna no desenvolvimento adequado de seus filhos e não fazendo esforço para separar os conflitos parentais do seu relacionamento com ele de modo que, em determinados episódios, já foi agressivo com eles e os disciplinou de forma imoderada após as tentativas de aproximação da genitora. Essa inclusive, é a justificativa de M, A e Í para nunca terem dito ao pai que desejam maior proximidade e convivência com a mãe, nem mesmo que sentem a falta dela, por acreditarem que ele poderá ficar com raiva e se tornar agressivo com eles”.
A abordagem citada ressalta, ainda, os seguintes pontos relevantes:
1. Que o “método educativo” de I se baseia nos 10 mandamentos bíblicos, impressos num banner e colocados na entrada de casa para que todos tenham conhecimento dos princípios que norteiam a família;
2. Que o comportamento de I é comumente identificado no divórcio destrutivo, quando se adotam práticas mais punitivas e com menor grau de proximidade afetiva com os filhos, pois também assumi o papel disciplinador;
3. Quanto à genitora, é evidente a angústia apresentada por não poderem conviver com ela, exemplificada por relatos de necessitarem de “cafunés”, de “sorriso dela” e até de sua atenção, quando surge também o receio de que sua proximidade possa acarretar um enrijecimento da disciplina doméstica; e,
4. Quando perguntados qual seria a melhor forma dessa situação ser resolvida são unânimes em afirmar que seria ficarem com a genitora. Poder conviver com a mãe, inclusive, foi apontado pelos três, como o seu “maior sonho”.
Ela concluiu, então, que os requerentes atendem aos requisitos necessários para exercer a guarda dos menores, considerando que além dos laços consanguíneos, apresentam a disponibilidade afetiva para tal, ressaltando, contudo, que o rompimento bruto com o pai não seria aconselhável e que há a necessidade de um acompanhamento técnico por 90 dias, assim como o acompanhamento pelo CREAS para a família.
A análise psicológica revelou (ID 18998715):
1. Que a demora na solução de possíveis violações por parte da rede de assistência, desde 2014, representam para as crianças prejuízos e perdas irreparáveis, especialmente no que diz respeito à sua constituição psicológica e emocional, entre elas apontou a privação da convivência com a genitora;
2. Que considera urgente o encaminhamento e adesão à rede especializada (CREAS, CAPS);
3. Que a requerente reúne as condições necessárias para a guarda;
4. Sugere a tentativa de alienação parental por parte do requerido;
5. Que “sob a guarda do Sr. I, as violações vivenciadas pelos infantes podem se perpetuar, agravando os conflitos e os prejuízos já verificados”; e, por fim,
6. Que é favorável à concessão da guarda para os requerentes, com direito de visita para o requerido nos finais de semana, a cada 15 dias, com atendimentos no CREAS e CAPS e acompanhamento da equipe técnica da vara por 90 dias.
Como disse, não existe no ordenamento jurídico positivo brasileiro um rol taxativo de causas que possa ensejar a modificação/fixação da guarda na pessoa deste ou daquele genitor, haja vista que se trata de um atributo inerente ao poder familiar de que são, ambos, detentores. Contudo, há situações legais em que a perda pode ocorrer como consequência de atos praticados por eles relacionados à guarda, como é o caso da prática de alienação parental.
É cediço, entretanto, que cabe ao magistrado essa grande, difícil e importante tarefa de, a depender de seu convencimento motivado e das provas produzidas, definir o exercício da guarda, fixando-a unilateralmente na pessoa de um dos genitores ou compartilhando entre eles e até mesmo, em outra pessoa da família extensa ou não.
A regulamentação deve ser objeto de profunda ponderação do juiz, com apoio no estudo multidisciplinar, sempre no melhor interesse dos filhos, de sua proteção integral, com prioridade absoluta.
A questão que se coloca nos autos é a de se saber se o requerido está, ou não, desempenhando a contento a guarda de fato de seus filhos e se os requerentes reúnem as condições necessárias para tanto.
A prova que se extrai dos autos é no sentido negativo.
Levando-se em consideração os direitos fundamentais previstos no artigo 227 da CF, forçoso concluir que o requerido está sendo negligente, opressor e parece não se dar conta disso, situação que se perdura, infelizmente, há muitos anos.
Quanto à saúde – não os leva para consultas médicas e odontológicas, chegando ao ponto de “consultá-los” com um farmacêutico, mesmo tendo a sua disposição o Sistema Único de Saúde, fato apontado pelos próprios filhos, aqui cabendo assentar que a equipe técnica da vara também observou que M e A estão com peso e altura “fora do padrão adequado para a idade”. E, como veremos mais adiante, estão com o psicológico seriamente abalo.
Quanto à educação – o requerido não comparece ao colégio quando é convocado para tratar de assuntos relacionados a seus filhos, isto no que diz respeito à educação formal. Por outro lado, há nos autos relatório técnico de acompanhamento do Núcleo de Acompanhamento Pedagógico (NAP) da Escola Bosque Prof. Edidorfe Moreira (ID 19236714), que deixa bastante claro como o requerido trata os filhos e a ex-companheira: “após a separação, a genitora foi proibida de ver os filhos, fato presenciado em certo episódio na escola por funcionários...” e que “nesse episódio, próximo ao horário de saída, a mãe compareceu para ver os filhos, quando foi proibida pelo I de forma hostil, sendo insultada na presença dos pais, alunos e funcionários”. E prossegue: “o genitor por diversas vezes deixou explícito que não aceitava que a mãe se aproximasse dos filhos...”. Refere, ainda, que Í e M apresentam algumas dificuldades. A abordagem psicológica do mesmo relatório, consta que Ítalo não se socializa; é agressivo; hostil; desafiador; desmotivado e não se envolve em nenhuma atividade. Além disso, demonstra carência afetiva e afirma “que sente muita falta saudade da genitora e verbaliza o desejo de residir com a mesma” e que devido seu comportamento explosivo de raiva e agressividade, alternados com extrema apatia, foi encaminhado para atendimento psicológico na Clínica de Psicologia da Esamaz, no dia 22 de fevereiro de 2019, porém o genitor se recusou a levá-lo dizendo “não ter tempo para isso” e também por não acreditar na necessidade de atendimento para o filho. A manifesta insatisfação com o relacionamento conflituoso entre os pais e diz sentir falta da mãe, demonstrando interesse em conviver mais com ela e que o pai não lhe permite conversar sobre o assunto. M tem registros de atendimento emergencial psiquiátrico no Hospital de Clínicas Gaspar Viana, que demonstra a necessidade de acompanhamento psicológico contínuo, o que não vem ocorrendo. Tem dificuldades de relacionamento na escola e na família e se sente triste pela ausência da genitora no seio familiar.
Extrai-se da abordagem escolar que desde 2012 a situação deles vem sendo acompanhada pela equipe, mas as intervenções não foram exitosas. Já em 2014 a genitora recebeu orientação para procurar o Conselho Tutelar, pois era impedida de se aproximar dos filhos. Toda situação de conflito familiar repercutiu na vida escolar das crianças.
Esse documento, de fundamental importância, foi elaborado recentemente, ou seja, no dia 14 de agosto de 2020.
Da mesma forma, não fugindo da regra geral de violações de direitos, aos infantes são permitidos muito poucas formas de lazer, que lhes possa trazer um pouco de alegria. São impedidos até de irem à praia.
No que se refere aos outros direitos – cultura, dignidade, respeito, liberdade -, o requerido também não lhes vem garantindo. Ao contrário e na contramão do que se espera de um pai responsável e afetivo, vilipendia a dignidade de seus filhos, retirando-lhes qualquer possibilidade de respeito; de afeto; de serem ouvidos e de terem suas vontades consideradas, até mesmo o desejo de terem contato com a mãe e de, quiçá, residirem com ela. No seio da família onde vivem, liberdade não há!
Nesse particular, resta mais que evidente nos autos, que o requerido é negligente com sua prole; é violento (física e psicologicamente), opressor e cruel, mesmo parecendo que não se aperceba disso, ou seja, o grande mal que está infligindo a seus filhos, para o total desespero da mãe, impotente para resolver o impasse amigavelmente.
Como bem delineou o estudo da avaliação pedagógica, confeccionado pelo analista judiciário A B (ID 18998713 – p. 1 a 3), “os genitores vivenciam um divórcio conflituoso ou destrutivo”, ou seja, o “rompimento dos laços conjugais, caracterizado por disputas e violência familiar que prejudicam o adequado cuidado com os filhos e consequente o desenvolvimento da prole do casal que investe mais energia no litígio que nos cuidados necessários às crianças (VASCONCELOS, 2018). No caso em estudo, muitos são os fatores que acirram os conflitos, com destaque para a diferença intergeracional dos genitores (mais de quatro décadas) e, portanto, de seus paradigmas de casamento, família, práticas parentais etc.”
Nesse contexto adverso para a prole, levado a efeito exclusivamente pelo requerido, visível o prejuízo para o desenvolvimento físico, moral e mental dos infantes.
Contudo, reputo como a principal violação de direitos – não que as outras não sejam relevantes – a proibição da convivência com a genitora, que lhes traz profundo sofrimento, como eles próprios relatam.
O direito à convivência familiar é uma garantia constitucional e estatutária que não pode ser objeto de qualquer relativização, desrespeito ou supressão (art. 227, CF e art. 4º e 19 do ECA), em ambiente que garanta o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes.
In casu, como já exaustivamente apontado, o requerido, deliberadamente, o desrespeita. Prefere, contudo, machucar sua ex-companheira e, por tabela, os filhos, não se importando com o sofrimento deles.
Considerando que o poder familiar deve ser exercido em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, a eles incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais (artigo 21 e 22 do ECA).
Direitos, deveres e responsabilidades devem ser compartilhados no cuidado e na educação da criança e do adolescente (artigo 22, P. único, do ECA).
Claríssima nos autos a conduta desrespeitosa e opressora que vem o requerido praticando contra os filhos.
O requerido, além disso, ofende o direito à liberdade de seus filhos, na medida em que não reconhece como válida a opinião e expressão deles (artigo 16, II, ECA); de brincar e se divertirem (idem, IV). Desrespeita-lhes o direito à integridade física, psíquica e moral, na medida em que lhes confere tratamento violento, vexatório e constrangedor, tal como é exemplo o ocorrido na frente da escola (artigo 17 e 18 do ECA).
Ao contrário do que se deve esperar de um pai, existem relatos de castigos físicos e de tratamento cruel e degradante, utilizados pelo requerido como forma de correção e disciplina, educação ou outro qualquer pretexto, a exemplo da famosa “corda azul”, ao arrepio do que dispõem os artigos 17, 18 e 18-A do ECA.
Como se não bastasse esse rosário de violações, a conduta do requerido também pode ser enquadrada na alienação parental prevista na Lei n° 12.318, de 26.08.2010, definida no artigo 2º como sendo o ato que interfere na “formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este”.
Mesmo sendo um rol exemplificativo de condutas alienatórias, já que outras também podem ser reconhecidas pelo magistrado, o comportamento do requerido pode muito bem ser enquadrado na “desqualificação da conduta da mãe”; na dificuldade que coloca para que os filhos não tenham nenhum contato com ela, dificultando o direito à convivência familiar; omite deliberadamente da genitora informações pessoais, inclusive escolares, médicas etc. (P. único, incisos I, III, IV e V, do artigo 2º).
Adverte o artigo 3º que “a prática de ato de alienação parental fere direito fundamental de criança ou do adolescente de convivência familiar saudável, prejudica a realização do afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar, constitui abuso moral (...) e descumprimento dos deveres inerentes à autoridade parental ou decorrente da tutela ou guarda”, cabendo ao juiz ultimar providências necessárias para preservação da integridade psicológica da criança ou adolescente, inclusive para assegurar a convivência com o genitor ou viabilizar a efetiva reaproximação entre ambos, se for o caso (artigo 4º) e até mesmo, por sentença de mérito, determinar a alteração da guarda compartilhada ou sua inversão e também a suspensão da autoridade parental (artigo 6º, V e VII).
Ao final e ao cabo, após exaustiva análise, forçoso reconhecer, mesmo com profundo pesar, que o requerido não se desincumbiu a contento de sua obrigação paterna para com a prole. Ao contrário, vem causando-lhe imenso prejuízos.
Nesse contexto fático, urge a necessidade de se fazer cessar tais abusos e absurdos, para garantia dos direitos humanos e fundamentais dos infantes e para que voltem a ter uma vida saudável e feliz.
A fixação da guarda unilateral na pessoa dos requerentes é a medida mais acertada e que melhor preserva os seus superiores interesses, já que eles reúnem todas as condições para isso, tal como concluiu o estudo multidisciplinar.
Entendo que a situação revela impossível, no momento, o estabelecimento da guarda compartilhada e que o núcleo familiar deve ser objeto de acompanhamento pelo CT, pelo CREAS e CRAS.
DISPOSITIVO
Pelo exposto e tudo mais que dos autos consta, JULGO PROCEDENTE O PEDIDO COM RESOLUÇÃO DO MÉRITO, extinguindo o processo na forma do artigo 487, inciso I c/c o artigo 1583, § 5º e 1584, II, do CC; artigo 148, P. único, letra “a”, do ECA e artigo 6º, V, da Lei nº 12.318/2010, para, em consequência, CONCEDER A GUARDA UNILATERAL, DEFINITIVA e EXCLUSIVA dos menores Í S C, A S C e de M S C para a genitora A S O e seu marido I G G, lavrando-se o competente termo de compromisso.
Deverá a equipe técnica da vara acompanhar a convivência por 90 dias, com relatório ao
final.
O núcleo familiar materno e paterno deverá ser referenciado para atendimento no CREAS deste Distrito.
AUTORIZO a visitação paterna nos finais de semana, a cada 15 dias, com a entrega dos menores no Conselho Tutelar de Outeiro, às 8 horas da manhã nos sábados, com devolução no mesmo local, às 16 horas. Advirto, ainda, a genitora, que não poderá deixar o Estado do Pará sem autorização expressa deste Juízo e que não deverá oferecer qualquer tio de obstáculo para o exercício do direito de visita do requerido.
Sem custas e honorários, por incabíveis. Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Icoaraci/Belém, 18 de novembro de 2020

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ANTÔNIO CLÁUDIO VON LOHRMANN CRUZ
Juiz titular da Vara da Infância e Juventude Distrital de Icoaraci

Sobre o autor
Antonio Claudio Von Lohrmann Cruz

Juiz de Direito da Comarca de Belém, Estado do Pará, com atuação na Vara da Infância e Juventude Distrital de Icoaraci. Juiz auxiliar da Coordenadoria da Infância e Juventude do TJPA e Diretor do Fórum do Distrito de Icoaraci. Secretário Executivo da Comissão Estadual Judiciária de Adoção Internacional. Pós-graduado latu sensu em Gestão de Unidade Judiciária (2021)

Informações sobre o texto

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