A casa-grande remanesce

26/12/2022 às 11:49
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O texto informa sobre caso de escravidão e traça reflexões sobre a brandura penal.

Em meio a uma época festiva, de Copa do Mundo e Natal, viu-se por aqui a triste notícia de uma idosa, já com 82 anos, analfabeta, que passou os últimos 30 anos em trabalho análogo à escravidão. Ela trabalhava na sede de uma propriedade rural, na cidade de Ribeirão Preto - SP, de um casal possuidor de um patrimônio de mais de 815 mil Reais.

Jamais recebeu salário ou saiu da fazenda. Comia comida simples, trazida pelos patrões, como se fosse um cão, que pelo trabalho de vigia recebia uma tigela de ração. Também como os cães, sua locomoção fora do pátio do trabalho era controlada pelos patrões, que ainda diziam a ela que "por não ter onde gastar", gentilmente, guardariam seu salário para ela - obviamente, sem pagar rendimentos sequer como aqueles da poupança -.

Reduzir alguém à condição análoga de escravo, no Brasil, é um crime previsto no art. 149. do Código penal e tem a singela pena de 2 a 8 anos de reclusão. No caso específico da idosa de Ribeirão, além da pena abstrata prevista para o crime, há uma condição que aumenta a pena em 50% quando a escravidão é impulsionada por motivação de discriminação racial: a idosa era negra e, num país de herança escravagista, fica fácil perceber que os ricos patrões sentiam-se na máquina do tempo, de volta ao baronato com suas pompas e posses, entre elas, uma "negrinha".

E é aqui que cada cidadão precisa tomar consciência sobre o estado de impunidade em que vivemos e que garante que o crime - em todas as suas vertentes - siga forte e pujante, tornando-nos referência mundial do que NÃO fazer em matéria de repressão social.

Por aqui, o espírito das Cortes e de grande parte do Legislativo é ligado ao abolicionismo penal e à visão de que o criminoso é "vítima" de uma sociedade de desigualdades, de forma que o crime é um problema puramente social e, assim sendo, quando alguém comete um crime, a culpa é das donas Marias e seus Joões que não criaram uma sociedade mais justa para que o pobrezinho do criminoso não precisasse delinquir - sim eu sei, você deve estar pensando que as Marias e Joões vivem nessa mesma desigualdade e não delinquiram, pois é -.

Mas, enfim, nosso Código Penal orienta a aplicação da pena em 3 fases. A primeira delas está prevista lá no artigo 59 e serve pra fixar a pena base.

Por imperar essa visão desgraçada de que a culpa pelo crime não é do criminoso, mas da sociedade que o cerca, no Brasil, a política criminal que orienta as Cortes exige que a pena parta do seu mínimo abstrato - neste nosso caso ele é de 2 anos - para então, consideradas condições do crime e das pessoas que o cometeram, ir subindo até o seu máximo abstrato - que aqui é de 8 anos -.

Na segunda fase de aplicação da pena são consideradas as circunstâncias agravantes e atenuantes, previstas lá nos artigos 61, 62, 65 e 66 do nosso medonho Código Penal. Sejamos positivos e vamos dizer que teremos reconhecida ao menos uma das circunstâncias agravantes - crime cometido numa relação doméstica e vítima idosa - de forma que teremos um aumento de 1/6 de pena. Logo, chegaremos ao acréscimo de 4 meses, levando-nos agora a 2 anos e 4 meses de pena.

A terceira fase é aquela em que as causas de aumento e diminuição de pena serão consideradas. Vamos dizer que, a nosso favor - nós, a sociedade malvadona - teremos o reconhecimento de que o crime foi motivado pelo racismo, além, é claro, da conhecida safadeza, ganância e desumanidade presentes na elite exploradora de mão de obra. Dessa forma, nosso crime (nosso porque a culpa supostamente é mais nossa do que do casal do baronato) vai receber um aumento de 50%, chegando a terríveis 3 anos e 6 meses.

Perceba que não chegamos nem à metade da pena máxima prevista para o crime, que é de 8 anos. Mas calma que piora! No Brasil, as penas até 4 anos permitem a fixação do regime aberto - a famosa carteirinha - que é aquele em que o cara segue a vida numa boa, precisando apenas não ficar fora de casa após às 22h, não indo a rolês clandestinos em biqueiras ou cabarés, descansando bonitinho em casa aos finais de semana, pedindo autorização pro juiz antes de viajar pra longe e - este é o mais terrível - indo 1 vez por mês ao fórum assinar sua fichinha.

Só que nosso casal de vítimas da sociedade, em tese, ainda pode invocar a substituição da pena, uma coisinha prevista lá no artigo 44 do Código Penal, criada pra evitar que aquele que cometer crime e receber pena de até 4 anos seja preso. Dessa maneira, ao infrator serão ofertadas condições: o pagamento de uma multa e mais uma pena restritiva de direitos, como prestar serviço comunitário ou, o mais comum, aquelas mesmas condições da tal da carteirinha dita acima.

Pasme-se, a criminalização da situação análoga à escravidão sequer é considerada hedionda. Tal classificação legal seria algo que poderia tornar um pouco mais justa e proporcional a punição desse crime.

É verdade que após mais de 30 anos da Constituição, apenas no ano passado (2021) foi editada emenda que inseriu na nossa Carta Maior a possibilidade de expropriação da propriedade em que se der a escravidão. Porém, a matéria pende de plena eficácia, de forma que o país conta com apenas 4 ações correntes nesse sentido e, em todas elas, os réus são latifundiários continentais e a situação de escravidão recaía sobre dezenas de trabalhadores.

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Diante do cenário atual, vê-se que o uso da expropriação ficará apenas para casos muito grandes, demonstrando uma espécie de escravidão de bagatela (como já se tem a torto e a direito em outros crimes), de forma que dificilmente será uma medida punitiva utilizada contra quem, afinal, tinha só um escravozinho.

Como não é hediondo e não é cometido com violência ou grave ameaça, a progressão de regime já é possível com cumprimento de meros 16% da pena e o livramento condicional com cumprimento de 33% da pena. Descontos assim não se veem nem em black friday, meus malvados compatriotas!

O mais absurdo é que no Brasil muito se ouve, na grande mídia, de que aqui se pratica um "encarceramento em massa"! Prende-se demais, dizem. Risível inverdade.

Caro leitor, aproveite então a época de Copa do Mundo e brade um viva ao Brasil, a terra prometida dos criminosos, o reino da impunidade! Piada pronta? Sim, e quem ri, neste caso, são os barões de Ribeirão!

Sobre o autor
Adair D Freitas Jr

Graduado em Direito Pós-graduado em Inteligência Policial Pós-graduado em Criminologia Pós-graduado em Direito Militar Autor na obra Manual de Interceptação Telefônica e Telemática – Teoria e Prática – Editora Juspodivm

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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