No dia 02 de julho de 2021 entrou em vigor a Lei nº 14.181/2021[1], denominada como “Lei do Superendividamento”, tendo sido criada com o propósito de aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento.
A referida lei apresentou diversas obrigações que devem ser observadas pelas instituições financeiras no momento da oferta ou concessão de crédito ao consumidor com a finalidade de garantir o crédito responsável e a proteção do mínimo existencial do devedor, impossibilitando que ocorra o superendividamento do consumidor.
Ocorre que a Lei nº 14.181/2021 não definiu os critérios para preservação do mínimo existencial, pois dependeria de uma regulamentação por meio de um Decreto Presencial, que foi editado 12 meses após a publicação da referida lei, através do Decreto nº 11.150, de 26 de julho de 2022[2], tendo sido definido como mínimo existencial 25% (vinte e cinco por cento) do salário mínimo vigente no ano de 2022[3].
Além disso, o referido decreto excluiu da aferição da preservação e do não comprometimento do mínimo existencial diversas dívidas, os quais estão elencadas no artigo 4º, parágrafo único[4].
Assim, com o advento do Decreto nº 11.150/2022, a Lei do Superendividamento, que foi criada com o objetivo de prevenir e combater o superendividamento do consumidor, esvaziou essa proteção do devedor, em razão do esdrúxulo percentual fixada a título de preservação do mínimo existencial e pela limitação do alcance da lei ao retirar dessa aferição diversas modalidade de dívidas, os quais não estavam previstas na Lei 14.181/2021.
O referido decreto vem sendo alvo de críticas contundentes de diversos juristas por entenderem que a lei viola a dignidade da pessoa humana e estimula a pobreza, ofendendo, consequentemente, a Constituição Federal de 1988. Em razão disso, tramitam no Supremo Tribunal Federal dois processos de nºs 1.005-DF e 1.006-DF, ajuizados pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP) e Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (ANADEP), visando a retirada do mundo jurídico o inteiro teor do Decreto nº 11.150, de 2022. Em ambos os processos, a Procuradoria Geral da República manifestou pela inconstitucionalidade do arts. 3º, caput e §§ 2º e 3º; 4º e 5º do Decreto 11.150/2022. No entanto, até o momento não foi pautado data para julgamento das duas ações arguições de descumprimento de preceito fundamental.
Em paralelo a isso, tramitava no Câmara Legislativa do Distrito Federal o projeto de Lei nº 2.886/2022, de autoria do Deputado Roosevelt Vilela (PL), que estabelece sobre o crédito responsável e assegura a garantia do mínimo existencial para os endividados do Distrito Federal, com medidas necessárias para dar o cumprimento e efetividade aos artigos 6º, incisos XI e XII, 52, §2º e 54-D, da Lei 14.181/2021.
Em breve resumo, a justificativa do Deputado Roosevelt Vilela para a apresentação do Projeto de Lei se deu em razão da peculiaridade da situação vivenciada por milhares de superendividados no Distrito Federal que acumulam dívidas com o Banco de Brasília, uma vez que 98% (noventa e oito por cento) dos casos de superendividamento são decorrentes de operações de créditos oferecidas pelo Banco de Brasília aos seus correntistas. Segundo o Deputado, a origem do superendividamento dos correntistas do BRB se deu em 2008, quando a Lei orgânica do Distrito Federal foi alterada, pela Emenda 51/2008, para acrescer os §§ 4º e 5º ao artigo 144 da referida Lei, o qual instituiu a obrigação do Governo do Distrito Federal efetuar os pagamentos das remunerações, de qualquer natureza, devidas aos servidores e pensionistas apenas no Banco de Brasília (BRB). A partir daí, com a garantia do recebimento das referidas remunerações, o banco passou ofertar créditos aos seus correntistas sem analisar adequadamente a capacidade financeiras[5].
A Câmara Legislativa aprovou o referido projeto, em primeiro turno, no dia 13 de setembro de 2022, mas o Governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, vetou integralmente a PL. O referido veto foi derrubado pela Câmara Legislativa no dia 12 de abril de 2023, tendo ocorrido a publicação da Lei nº 7.239/2023 no Diário Oficial dia 24 de abril de 2023[6][7].
A Lei nº 7.239/2023[8], que definiu que todas as operações de créditos devem respeitar o limite previsto no art. 116, § 2º, da Lei Complementar nº 840, de 23 de dezembro de 2011, ou no art. 5º do Decreto Federal nº 8.690, de 11 de março de 2016, os quais estabelecem os seguintes limites:
Art. 116. Salvo por imposição legal, ou mandado judicial, nenhum desconto pode incidir sobre a remuneração ou subsídio. § 1º Mediante autorização do servidor e a critério da administração pública, pode haver consignação em folha de pagamento a favor de terceiros, com reposição de custos, na forma definida em regulamento. § 2º A soma das consignações de que trata o § 1º não pode exceder a trinta por cento da remuneração ou subsídio do servidor.
Art. 5º A soma mensal das consignações não excederá trinta e cinco por cento do valor da remuneração, do subsídio, do salário, do provento ou da pensão do consignado, sendo cinco por cento reservados exclusivamente para: I - a amortização de despesas contraídas por meio de cartão de crédito; ou II - a utilização com a finalidade de saque por meio de cartão de crédito. Parágrafo único. Para empregados, além dos percentuais previstos no caput, poderão ser acrescidos cinco pontos percentuais para consignações que não envolvam ou incluam pagamento de empréstimos, financiamentos, cartões de crédito e operações de arrendamento mercantil concedidos por instituições financeiras e sociedades de arrendamento mercantil.
Portanto, o mínimo existencial foi fixado em 65% (sessenta e cinco por cento) do rendimento líquido do consumidor. Logo, as operações de créditos não devem comprometer mais do que 35% (trinta e cinco por cento) da renda do devedor, sob pena de aplicação das sanções previstas no parágrafo único, do artigo 54-D, da Lei 14.181/2021[9] e o pagamento de multa no valor de R$ 30.000,00 (trinta mil reais), conforme estabelece artigo 5º, da referida lei[10].
Caso os empréstimos comprometam o referido limite, caberá a instituição financeira promover a renegociação dos contratos e independentemente do sistema de capitalização utilizado, deverá promover o abatimento proporcional dos juros, por meio do rateio do valor total dos juros cobrados no contrato proporcionalmente ao número de meses faltantes para sua quitação, nos termos do artigo 3º, da nova Lei[11].
Ademais, a lei determina que em caso de quitação antecipada do empréstimo ocorra também o abatimento proporcional dos juros e devolução do seguro prestamista[12].
Por fim, também assegura o direito do correntista solicitar o cancelamento dos descontos na conta corrente[13], uma vez que era comum as instituições financeiras se negarem a receber qualquer requerimento nesse sentido, muito embora seja direito do correntista, nos termos do artigo 6º da Resolução nº 4.771/2019, art. 6º da Resolução n. 4.790/2020 do Banco Central (BACEN), art. 3º, § 2º, da Resolução do CMN n. 3.695/2009 (redação conferida pela Resolução CMN n. 4.480/2016) e tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça no tema nº 1085-STJ[14].
Assim sendo, as instituições financeiras que oferecem crédito no âmbito do Distrito Federal devem a cumprir imediatamente a Lei nº 7.239/2023, a fim de realizar as renegociações dos empréstimos para que não comprometam mais de 35% (trinta e cinco por cento) da renda do consumidor e estão impedidas ofertarem créditos que comprometam o referido limite, objetivando, assim, a prevenção e o combate ao superendividamento de milhares de consumidores no Distrito Federal.
Brasília-DF, 27 de abril de 2023.
Dr. Emílison Alencar
Mestre em Direito
OAB/DF 35.344
[1] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14181.htm
[2] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/decreto/D11150.htm
[3] Art. 3º No âmbito da prevenção, do tratamento e da conciliação administrativa ou judicial das situações de superendividamento, considera-se mínimo existencial a renda mensal do consumidor pessoa natural equivalente a vinte e cinco por cento do salário mínimo vigente na data de publicação deste Decreto.
[4] Art. 4º Não serão computados na aferição da preservação e do não comprometimento do mínimo existencial as dívidas e os limites de créditos não afetos ao consumo. Parágrafo único. Excluem-se ainda da aferição da preservação e do não comprometimento do mínimo existencial: I - as parcelas das dívidas: a) relativas a financiamento e refinanciamento imobiliário; b) decorrentes de empréstimos e financiamentos com garantias reais; c) decorrentes de contratos de crédito garantidos por meio de fiança ou com aval; d) decorrentes de operações de crédito rural; e) contratadas para o financiamento da atividade empreendedora ou produtiva, inclusive aquelas subsidiadas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES; f) anteriormente renegociadas na forma do disposto no Capítulo V do Título III da Lei nº 8.078, de 1990; g) de tributos e despesas condominiais vinculadas a imóveis e móveis de propriedade do consumidor; h) decorrentes de operação de crédito consignado regido por lei específica; e i) decorrentes de operações de crédito com antecipação, desconto e cessão, inclusive fiduciária, de saldos financeiros, de créditos e de direitos constituídos ou a constituir, inclusive por meio de endosso ou empenho de títulos ou outros instrumentos representativos; II - os limites de crédito não utilizados associados a conta de pagamento pós-paga; e III - os limites disponíveis não utilizados de cheque especial e de linhas de crédito pré-aprovadas.
[5] https://ple.cl.df.gov.br/#/visualizar-documento/46090
[6] Diário da Câmara Legislativa do Distrito Federal, nº 86, 24 de abril de 2023, site oficial https://www.cl.df.gov.br/documents/5744638/26355713/DCL+n%C2%BA+086%2C+de+24+de+abril+de+2023.pdf/c739974e-9353-01bc-6478-5f67538cd2c8?version=1.0&t=1682038484319
[7] Diário oficial do DF, nº 79, no dia 27 de abril de 2023. https://dodf.df.gov.br/index/visualizar-arquivo/?pasta=2023|04_Abril|DODF%20079%2027-04-2023|&arquivo=DODF%20079%2027-04-2023%20INTEGRA.pdf
[8] Diário da Câmara Legislativa do Distrito Federal, nº 86, 24 de abril de 2023, site oficial https://www.cl.df.gov.br/documents/5744638/26355713/DCL+n%C2%BA+086%2C+de+24+de+abril+de+2023.pdf/c739974e-9353-01bc-6478-5f67538cd2c8?version=1.0&t=1682038484319
[9] Art. 54-D Parágrafo único. O descumprimento de qualquer dos deveres previstos no caput deste artigo e nos arts. 52 e 54-C deste Código poderá acarretar judicialmente a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor.’
[10] Art. 5º A infração a qualquer uma das disposições desta Lei sujeita o infrator ao pagamento de multa no valor de R$ 30.000,00 por cada infração, sendo dobrada a cada reincidência. Parágrafo único. Os valores arrecadados com as multas são revertidos ao fundo de amparo e defesa do consumidor do Distrito Federal.
[11] Art. 3º No momento do pagamento antecipado de dívidas, seja por quitação espontânea, seja por meio de novação, a instituição financeira, independentemente do sistema de capitalização utilizado, deve promover o abatimento proporcional dos juros previsto no art. 52, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor, por meio do rateio do valor total dos juros cobrados no contrato proporcionalmente ao número de meses faltantes para sua quitação.
[12] Art. 3º Parágrafo único. Quando da quitação antecipada prevista no caput, o abatimento proporcional também deve ser efetuado no seguro prestamista cobrado quando da contratação do crédito.
[13]Art. 4º § 3º As instituições financeiras não podem negar o recebimento de requerimento ou solicitação de cancelamento de autorização de desconto em conta corrente.
[14] São lícitos os descontos de parcelas de empréstimos bancários comuns em conta-corrente, ainda que utilizada para recebimento de salários, desde que previamente autorizados pelo mutuário e enquanto esta autorização perdurar, não sendo aplicável, por analogia, a limitação prevista no § 1º do art. 1º da Lei n. 10.820/2003, que disciplina os empréstimos consignados em folha de pagamento.