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A internação compulsória e o conflito entre os direitos fundamentais do dependente químico

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A Lei nº 13.840/2019 facilita a internação involuntária sem autorização judicial, em conflito com os direitos fundamentais do dependente químico.

Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar, pelo método hipotético dedutivo, como a internação compulsória funciona atualmente no Brasil, também, como é tratado o indivíduo que possui algum tipo de transtorno mental pela sociedade e pelo ordenamento jurídico brasileiro. Este artigo procura demonstrar e verificar a colisão de direitos fundamentais assegurados constitucionalmente, sendo, o direito à liberdade e o direito à saúde, para que por meio da ponderação de interesses possa haver uma solução que seja eficaz para todas as partes envolvidas. É finalidade deste artigo também a análise da nova lei nº 13.840 de 2019 que retirou o livre arbítrio e facilitou com que o subordinado fosse internado compulsoriamente. Por fim, o presente artigo, relatará sobre os aspectos positivos e negativos desse novo método de internação compulsória para então concluir qual aspecto é mais significativo e qual a medida de segurança é considerada adequada para o dependente químico, através do método dedutivo, por meio de entrevista com especialista do assunto, pesquisa bibliográfica e artigos científicos.

Palavras-chave: Internação Compulsória, Dependência Química, Direitos Fundamentais, Direitos Humanos, Direito Constitucional.


INTRODUÇÃO

O dependente químico já existia no meio social desde os primórdios da humanidade, entretanto, apenas no século XX foi definido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) o conceito de dependência química como uma doença de transtorno mental, que é causada por alterações no funcionamento do cérebro. Com isso, os indivíduos passaram a ser isolados quando a segurança e ordem da sociedade era comprometida, autorizado pelo decreto da época de nº 1.132/1903 onde era outorgado apenas pela autoridade pública ou particular a internação do indivíduo, sem o consentimento dos familiares.

O abuso de drogas vem sendo debatido por muito tempo porque gerou e ainda gera discussões sobre várias áreas do conhecimento, principalmente sobre o ser humano e sobre como lidar com a dependência química, como tratar de forma benéfica para que o dependente químico possa ser reiterado ao meio social de forma saudável.

O objetivo desse artigo é analisar e mostrar de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, como há conflitos entre os direitos fundamentais para casos específicos, como o do presente tema vem trazendo, também têm como finalidade, buscar uma solução que seja viável e legal para que possa surtir os efeitos desejados tanto para o convívio social quanto para o subordinado.

O artigo se delimita em um questionamento específico: até onde vai o direito à liberdade do indivíduo e até onde se prioriza o direito à saúde do dependente químico?

Para isso, é necessário entender um pouco sobre o início da internação compulsória no Brasil; mais tarde, analisar a nova lei vigente nº 13.840 de 2019 e se existe um retrocesso por sua omissão em relação à internação compulsória. Abordam-se alguns dos aspectos positivos e negativos ao dependente químico, seja durante ou após o processo, tendo em vista que muitas das vezes o usuário abandona o tratamento, retornando ao mundo das drogas quando é internado voluntariamente. Por último, comenta-se a medida de segurança cabível para o dependente químico.


1. INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA

A priori, é necessário entender sobre o dependente químico, que tem como definição uma pessoa que abusa de substâncias psicoativas. A dependência química já se fazia presente desde o início da humanidade e em diversas culturas. Os entorpecentes muita das vezes tinham como finalidade a religião, a cultura, servia para medicamentos, para a cura, tratamentos, relaxantes e também o para uso recreativo, onde o indivíduo buscava por prazeres e distanciamento do seu estado sóbrio e são. Relatos1:

Há cerca de 5 mil anos, uma tribo de pigmeus do centro da África saiu para caçar. Alguns deles notaram o estranho comportamento de javalis que comiam uma certa planta. Os animais ficavam mansos ou andavam desorientados. Um pigmeu, então, resolveu provar aquele arbusto. Comeu e gostou. Recomendou para outros na tribo, que também adoraram a sensação de entorpecimento. Logo, um curandeiro avisou: havia uma divindade dentro da planta. E os nativos passaram a venerar o arbusto. Começaram a fazer rituais que se espalharam por outras tribos. E são feitos até hoje. A árvore Tabernanthe iboga, conhecida por iboga, é usada para fins lisérgicos em cerimônias com adeptos no Gabão, Angola, Guiné e Camarões. Há milênios o homem conhece plantas como a iboga, uma droga vegetal. O historiador grego Heródoto anotou, em 450 a.C., que a Cannabis sativa, planta da maconha, era queimada em saunas para dar barato em frequentadores. O banho de vapor dava um gozo tão intenso que arrancava gritos de alegria. No fim do século 19, muitos desses produtos viraram, em laboratórios, drogas sintetizadas. Foram estudadas por cientistas e médicos, como Sigmund Freud(...).

Quando se fala em tratamento médico específico para o transtorno mental, podemos perceber que o valor dado para essa problemática foi muito tardio, como por exemplo, no Brasil, onde o primeiro hospital psiquiátrico deu início a suas atividades em 1841 (NOVAES, 2014, p. 343).

Nessa época ainda deixava muito a desejar tanto para a sociedade quanto para o próprio indivíduo que necessitava de tratamentos e especialistas que soubessem medicar, tratar e até mesmo explicar para a família o que acontecia com o paciente, qual era o diagnóstico e o fato gerador, porque se hoje ainda existem algumas pessoas, e principalmente os familiares, que ignoram a existência de transtornos mentais, antigamente era bem mais comum que não fosse levado a sério o tratamento do subordinado.

O dependente químico passou a ser reconhecido expressamente como doente mental em 1938, pelo Decreto-Lei nº 891, que é a Lei de fiscalização de entorpecentes. Além disso, a norma também proibiu o tratamento à domicílio, autorizando a internação forçada se caso fosse propício a favor da sociedade:

Decreto-lei nº 891/1938, art. 27: A toxicomania ou a intoxicação habitual, por substâncias entorpecentes, é considerada doença de notificação compulsória, em caráter reservado, à autoridade sanitária local.

Decreto-lei nº 891/1938, art. 28: Não é permitido o tratamento de toxicômanos em domicílio.

§ 1º A internação obrigatória se dará, nos casos de toxicomania por entorpecentes ou nos outros casos, quando provada a necessidade de tratamento adequado ao enfermo, ou for conveniente à ordem pública. Essa internação se verificará mediante representação da autoridade policial ou a requerimento do Ministério Público, só se tornando efetiva após decisão judicial.

§ 2º A internação obrigatória por determinação do Juiz se dará ainda nos seguinte; casos : (...)

Com a evolução social e psiquiátrica, passou a surgir critérios para que houvesse a internação e foi dividida em espécies. Ao entrar em vigor a lei nº 10.216 de seis de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtorno mental, ficou classificado em três espécies de internação: internação voluntária (aquela que se dá com o consentimento do usuário), internação involuntária ( aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro ) e internação compulsória (aquela determinada pela Justiça), atualmente, está em vigor a nova lei nº 13.840/19, que alterou os tipos de internação:

lei nº 10.216/2001 art. 6: A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.

Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:

I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;

II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e

III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.

Existe um longo caminho a se percorrer até que seja decidido pela internação compulsória de um indivíduo, seria este o último estágio para trazer um dependente químico de volta a sua sanidade.

Em uma entrevista para o Jornal Minas, o Presidente do conselho político de drogas de Minas Gerais e Psiquiatra especialista na área, Aloísio Andrade destacou alguns pontos fundamentais sobre a internação compulsória. Explicou que a família tem o direito de tentar outros recursos para tão somente recorrer a internação em último recurso, um dos fatores para que a internação seja feita é o risco eminente de sua própria vida ou de terceiros. Andrade ainda acrescenta que não poderá ser internado um dependente químico que a priori não foi encaminhado a um tratamento ambulatorial, e deu um exemplo: não pode internar uma pessoa que não foi tentado um tratamento ambulatorial da mesma forma que só se amputa uma pessoa quando corre o risco de vida. Se a única saída for a internação compulsória, também há um período de um mês para que seja feita a desintoxicação.

Apesar de toda a invasão e falta de liberdade do indivíduo, não há só pontos negativos, dolorosos e desumanos, existem também os pontos positivos nesse processo de recuperação.

A Internação para pessoas com dependência química é um recurso que pode tirar a liberdade por um tempo, mas pode faz com que a pessoa deixe de ser prisioneiro das drogas, principalmente aquelas pessoas que realmente tem transtornos mentais e acabam abusando na quantidade que usa pessoas que são extremamente intolerantes e sensíveis às drogas, mas não sabem, até que ao perceber, já está entregue ao vício.

A dependência química é considerada uma doença crônica que também afeta menores de idade, e a Lei nº 8.069/1990 do Estatuto da Criança e do Adolescente também prevê sobre o tema, o tratamento de internação é requerido pelo Ministério Público conforme o artigo 101, incisos V e VI da Lei:

Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas:

Inc. V. requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial;

Inc. VI. Inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos.

O artigo 136, inciso I, ECA, traz sobre os casos inusitados sobre a internação da criança ou do adolescente, que poderá ser providenciada pelo Conselho Tutelar sem obrigatoriedade Judicial.

Outro fator que prejudica o Brasil em relação às drogas e o que elas causam para os dependentes químicos é o nível de pessoas com transtorno de ansiedade que fazem o uso dessas substâncias. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) O Brasil ocupa o primeiro colocado no ranking dos países mais ansiosos do mundo, com 9,3% da população. O indivíduo que não sabe por falta de laudo médico de suas limitações, acaba tornando-se dependente químico por fatores biológicos, agravando mais ainda a sua sanidade e logo seu direito de escolher, decidir ou perceber que precisa de ajuda, que mais uma vez fica destinado às decisões contra a sua vontade. A partir desse momento, o dependente químico entra em um tratamento severo para sua recuperação e junto disso existirão aspectos benéficos ou totalmente prejudiciais para a saúde mental desse indivíduo, que podem trazer o seu equilíbrio mental de volta ou gerar traumas permanentes.

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1.1. O Dependente Químico

O autor Lima Barreto em um texto autobibliográfico2, contou a sua experiência com o alcoolismo e fala também sobre como foi desafiadora a sua internação no hospício, no início do século XX, que ficava localizado no Rio de Janeiro, sua obra narra sobre um espelho lúcido da loucura, explorando os limites da sanidade.

Quando, pela primeira vez, me recolheram ao Hospício, de fato a minha crise era profunda e exigia o meu afastamento do meio que me era habitual, para varrer do meu espírito de alucinações que o álcool e outros fatores lhe tinham trazido. Durou ela alguns dias seguintes; mas ao chegar ao Pavilhão, já estava quase eu mesmo e não apresentava e não me conturbava a mínima perturbação mental. Em lá chegando tiraram-me a roupa que vestia, deram-me uma da casa, como lá se diz, formei em fileira ao lado de outros loucos, numa varanda deram-me uma caneca de mate e grão e, depois de ter tomado essa refeição vesperal, meteram-me num quarto forte.3

A obra aborda uma narrativa com o objetivo de demonstrar a perspectiva do louco que se encontra em um hospício e traz o questionamento entre a proteção e a intervenção. Essa obra de Barreto foi mencionada nos trâmites da Lei de Saúde Mental.4

Não me incomodo muito com o hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da polícia na minha vida. De mim para mim, tenho certeza que não sou louco, mas devido ao álcool, misturado com toda espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material há 6 anos me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura: delírio. (Lima Barreto, 1993.)

Para refletir sobre o tema abordado, é necessária que a leitura seja aberta a complexidade, para que seja compreendido o uso problemático de drogas, porque existem vários fatores para que hoje esse assunto seja tão estudado, um deles é a questão social, que se tornou um grande desafio para a saúde5, logo, causa preocupação significativa para a segurança pública.6 Uma pesquisa apurada pelo Datafolha em 2017, apontou que 80% da população paulista questiona sobre a denominada Cracolândia, e defendem a possibilidade da internação compulsória. Porém, mais de 70% afirma que as medidas tomadas pela prefeitura no local, não são suficientes para que haja o abandono do uso de drogas, pois não existe a força de vontade por parte dos usuários.7

O Conselho Federal de Medicina registrou sobre o estudo sobre crack que a estimativa de dependentes de álcool foi de 12,3%, o que corresponde à população de 5.799.005 pessoas. Já para o tabaco, estima-se o número de 4.700.635 dependentes, isto é, 10,1% da população. Essa pesquisa mostrou que entre os estudantes, o álcool e o tabaco são as drogas mais utilizadas na vida, em todas as capitais, e o índice pode variar dependendo da região do país.

Em 2007, foram realizadas 135.585 internações associadas a transtornos mentais e comportamentais decorrentes do uso de drogas em todo o Brasil, a pesquisa apontou que 69% das internações foram devido ao uso de álcool, 23% devido ao uso de múltiplas drogas e 5% devido ao uso de cocaína.

A estimativa da OMS para o Brasil é que existam 3% de usuários, o que implicaria em 6 milhões de brasileiros. O Ministério da Saúde trabalha com 2 milhões de usuários e estudo da Unifesp patrocinado pela SENAD demonstra que um terço dos usuários encontra a cura, outro terço, mantém o uso e outro terço morre.8

É necessário que haja a diferenciação entre o uso ou consumo do chamado, uso nocivo ou abusivo quando se trata de uma internação sem o consentimento de um adulto. São três níveis ou formas de relação com as drogas: o uso, abuso (ou uso nocivo) e a dependência9. O abuso envolve o dano real à saúde física ou mental do usuário10, já a dependência constitui um nível mais avançado. O Conselho Federal de Medicina definiu:

  • USO: qualquer consumo de substâncias, para experimentar, esporádico ou episódico;

  • ABUSO ou USO NOCIVO: consumo da SPA (substância psicoativa) associado a algum prejuízo (biológico, psíquico ou social);

  • DEPENDÊNCIA: Consumo sem controle, geralmente associado a problemas sérios para o usuário - diferentes graus.11

A CID-10 (Classificação Internacional de Doenças) e o DSM-V (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) ou Manual Diagnóstico e Estatístico de transtornos Mentais, constituem referências fundamentais sobre os diferentes níveis de uso de substâncias psicoativas. Na CID-10 é onde se identifica a categoria Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de substâncias psicoativas, a qual corresponde à classificação F.10 a F.19, com subitens, dentro dessa faixa, que assinalam tipo de substância e quadro clínico.12 (Gabriel Schulman 2020, p.10). Para que sejam diferenciados os níveis de uso e a forma de se relacionar com drogas, é preciso que veja como cada organismo reage e quais são os impactos produzidos pela substância, a partir disso é caracterizado como: intoxicação aguda, uso nocivo à saúde e síndrome de dependência.13

As complicações podem ser físicas (hepatite consequente a injeções de droga pela própria pessoa) ou psíquicas (episódios depressivos secundários a grande consumo de álcool). Abuso de substância psicoativa. (OMS, 2009, p. 313)

A CID-10 ainda classifica a síndrome de abstinência, que decorre da falta de uma substância de uso prolongado juntamente com delirium que causa perturbações de consciência e da atenção, da percepção e do pensamento, da memória, do comportamento psicomotor, das emoções e do ritmo de sono, transtorno psicótico, síndrome de amnésia, transtorno psicótico residual, entre outras categorias. (OMS, 2009, p.308).

[...] se caracteriza pela presença e alucinações (tipicamente auditivas, mas frequentemente polissensoriais), de distorção das percepções, de idéias delirantes (frequentemente do tipo paranóide ou persecutório), de perturbações psicomotoras (agitação ou estupor) e de afetos anormais, podendo ir de um medo intenso ao êxtase. (OMS, 2009, p.314)

Dois aspectos marcantes são a tolerância e a abstinência. A tolerância qualifica a necessidade de doses progressivamente maiores ou a redução dos efeitos com manutenção de determinada quantidade. Já a abstinência aponta para os efeitos decorrentes da cessação de uso, como tremor, insônia, náuseas, alucinações, entre outros sintomas. (APA, DSM-V, 2014, p. 500)

De acordo com pesquisas feitas por David Nutt e Leslie King, as drogas mais danosas aos próprios usuários são nesta ordem: heroína, crack, cocaína e metanfetamina. Em relação aos impactos para terceiros, é na ordem: álcool, crack, cocaína14 e heroína. E chegaram à conclusão que as drogas mais perigosas tanto para o usuário quanto para terceiros, são, nessa ordem: álcool, heroína e crack cocaína15.

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