I - DA CONSULTA
Consulta-nos o Sr. (Nome completo), agente público, portador da Cédula de Identidade de nº xxx, residente e domiciliado na Rua xxx, sobre a possibilidade da prorrogação do seu contrato temporário junto à Administração Pública do Município de Itaguaí/RJ.
II - DA FUNDAMENTAÇÃO
Em razões das dificuldades administrativas, financeiras e restrições nas atividades cotidianas ocasionadas pela Pandemia de COVID-19, é de suma importância buscar medidas administrativas e jurídicas que atendam a necessidade temporária de excepcional interesse público.
Busca-se analisar o contexto jurídico atual e encontra-se resposta no evoluir da espécie humana e, por conseguinte, no expressivo desenvolvimento da Ciência Jurídica, bem como em leis contemporâneas, editadas especialmente como medidas de combate à pandemia.
Em meados do século XIX, graças às profundas transformações sociais e ideológicas ocorridas, ainda por conta dos reflexos causados pela Revolução Francesa, finalmente os olhos de todos passaram a se voltar para o coletivo, para o até então exíguo direito público, que cresceria consideravelmente nesse período histórico, recebendo um enorme impulso das mudanças sociais, econômicas e políticas da época.
Atentava-se, enfim, à coletividade, ao todo, ao geral, até porque a própria Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, lá de 1789, ao lançar as bases do novo regime que surgia, o Estado de Direito, que aboliria o Absolutismo até então vigente, já preconizava, por exemplo, que as destinações sociais só podiam “fundamentar-se na utilidade comum” (art. 1º), como assim também preceitua que “a garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública”, sendo esta “instituída para fruição de todos, e não para utilidade particular daqueles a quem é confiada” (art. 12).
Logo, exsurge lentamente a teoria de que o Poder Público só pode atender ao interesse público, ou seja, a finalidade da atuação administrativa só pode ser uma: o administrador quando atua, o faz legitimado a realizar o bem comum, age em prol da comunidade, do povo, que juridicamente é o efetivo titular do interesse público, preceito que a doutrina majoritária nomeia, tradicionalmente, de princípio da supremacia do interesse público.
Paralelamente, não é possível conceber a atividade administrativa como mera executora mecânica da lei, sem qualquer papel criativo por parte do aplicador do Direito, sob pena de se tornar desnecessária a atividade regulamentar. A aplicação da lei, tanto pelo juiz como pela Administração Pública, depende de um processo criativo-interpretativo, sendo inviável a existência de lei exaustiva o bastante que dispense o papel criativo do operador do Direito. De fato, o que pode variar é o grau de liberdade conferida pela norma jurídica. Logo, na ausência da lei ou no caráter excepcional da situação fática, o administrador pode atuar com maior liberdade para atender ao interesse público[1].
É dentro desse contexto histórico que se observa a dispensa de licitação. A Lei 8.666/93 em vigor durante a pandemia [e até dezembro de 2023] estabelece como regra que a administração pública direta e indireta de qualquer um dos Poderes da União é obrigada a contratar obras, serviços, compras e alienações através de licitação pública, ressalvados casos específicos na legislação, conforme dispõe o art. 37, XXI da CRFB/88.
Não obstante à Constituição, a Lei 8.666/93, que regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, instituindo normas para licitações e contratos da Administração Pública, prevê em seu art. 2º a licitação como requisito obrigatório, mas também cria a exceção para hipóteses previstas na própria legislação em que haja a dispensa de licitação.
Assim, se constata que a Constituição Federal e a Lei 8.666/93 geram uma reserva legal em que deve haver previsão expressa em Lei que permita a contratação direta pelo administrador público.
Nestas situações, embora o procedimento licitatório possa ser realizado, a lei permite a contratação sem licitação. Conjectura esta prevista no art. 24 da Lei 8.666/93 [art. 75 da Lei 14.133/21), especialmente no que concerne o inciso IV do referido artigo, senão vejamos:
Lei 8.666/93
Art. 24. É dispensável a licitação:
IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos;
Lei 14.133/21
Art. 75. É dispensável a licitação:
VIII - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a continuidade dos serviços públicos ou a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para aquisição dos bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 1 (um) ano, contado da data de ocorrência da emergência ou da calamidade, vedadas a prorrogação dos respectivos contratos e a recontratação de empresa já contratada com base no disposto neste inciso; [grifos nossos]
Assim, verifica-se que a legislação já previa situações como a decorrente da Pandemia de COVID-19, autorizando o administrador público a embasar-se nas exceções previstas em Lei a fim de contratar diretamente observando o princípio da supremacia do interesse público. É interessante observar que a Nova Lei de Licitações ampliou o prazo relativo à conclusão de parcelas de obras e serviços de 180 dias consecutivos e ininterruptos para 1 ano em cenários emergenciais ou de calamidade pública.
Conforme assevera Marçal Justen Filho, “o direito não faculta ao agente público o poder para escolher entre cumprir e não cumprir o interesse público. O agente é um servo do interesse público – nessa acepção, o interesse público é indisponível”.[1]
Sendo assim, de acordo com a doutrina clássica, que hoje tem como representante mais ilustre no Direto brasileiro o professor Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular é não apenas um princípio jurídico de aplicação a diversos casos concretos, ele é mais do que isso: é um postulado de todo o Direito Público e, consequentemente, também do Direito Administrativo, cujo sistema se delineia, se constrói, segundo esse autor, exatamente em função da consagração dos princípios da supremacia do interesse público sobre o interesse privado e o da indisponibilidade dos interesses públicos pela Administração, que seriam as “pedras de toque”, as “pedras angulares”, os pilares do Direito Administrativo moderno.[2]
Com a Carta Política de 1988, o Brasil se tornou um Estado Democrático de Direito e, como tal, encabeçando seus principais fundamentos, encontra-se a supremacia do interesse público.
Previsto no artigo 2º, caput, da Lei nº 9.784/99, e especificado no parágrafo único, o princípio do interesse público “está presente tanto no momento da elaboração da Lei como no momento da sua execução em concreto pela Administração Pública. Ele inspira o legislador e vincula a autoridade administrativa em toda a sua atuação.”[2]
Nos seus incisos I ao XII aponta as modalidades deste instituto, especialmente: I – assistência a situações de calamidade pública; II – assistência a emergência de saúde pública e VI, i – atividades técnicas especializadas necessárias à implantação de órgãos ou entidades ou de novas atribuições definidas para organizações existentes ou as decorrentes de aumento transitório no volume de trabalho que não possam ser atendidas mediante a aplicação do art. 74 da Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990.
Segundo o caráter primário deste princípio, é imprescindível a atendimento de necessidades da coletividade pela Administração Pública através da execução de atividades administrativas, de modo que atenda a “fins de interesse geral vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei”.[3]
A doutrina clássica entende que há uma valoração maior do interesse público primário, de maneira que a atuação da atividade administrativa prestada à sociedade, inclusive os serviços públicos e a intervenção na ordem econômica, prepondera sobre os interesses privados e deve ser considerado o alvo derradeiro da atuação administrativa.
Por conseguinte, inegável é o princípio da supremacia do interesse público como norte ao Direito Administrativo, pois se pode perceber de maneira evidente que o citado princípio existe para assegurar que o interesse público não se confunde com o simples interesse patrimonial e econômico da Fazenda Pública.[3]
Fora este objetivo, a atuação estará inquinada de desvio de finalidade, visto que não é o indivíduo em si o destinatário da atividade administrativa, mas sim o grupo social num todo; afinal, o Estado saiu da era do individualismo exacerbado, passando a se caracterizar como o Welfare State, isto é, o Estado de bem estar social, dedicado a atender ao interesse público.
Trata-se, desse modo, “do primado do interesse público. O indivíduo tem que ser visto como integrante da sociedade, podendo os seus direitos, em regra, serem equiparados aos direitos sociais”, conforme bem acentua José dos Santos Carvalho Filho.[4]
Assim, só uma ideia prévia às normas do Direito Administrativo, que coloquem sempre e necessariamente o interesse da coletividade, pode justificar a instrumentalizar a ação do Estado, para dotá-la da capacidade necessária de realizar as ações tendentes a promover o bem comum.
O interesse público primário se relaciona com as finalidades públicas que o Estado deve promover com os objetivos para ele colocados pelo texto constitucional. Constitui-se o interesse público primário, portanto, nos interesses da sociedade como um todo, e só ele pode ser validamente objetivado, eis que é a lei que o consagra e que deve ser perseguido pelo Estado de modo a suprir as necessidades da coletividade, principalmente nesse momento crítico em que se encontra o Estado brasileiro em função da COVID-19.
Isto basicamente não quer dizer que o interesse público seja antagônico ao interesse privado. Não é uma dicotomia, pois a promoção de um é a promoção do outro.
Não obstante, é um raciocínio correto entender que a Lei 8.666/93, por ser norma geral, aplica-se as licitações e contratos administrativos acompanhados de Leis editadas durante o período de pandemia, igual a Lei 13.979/2020, uma vez que de acordo com o art. 2º, § 2º, da LINDB, as normas especiais não revogam as normas gerais.
O foco não é somente combater a COVID-19, mas sim retomar e prosseguir com as atividades do serviço público, levando em consideração o momento excepcional e novo.
À vista disto, urge-se pela dispensa de licitação em contratações de bens e serviços, e também no que concerne a prorrogação dos contratos dos servidores temporários. Eles possuem um regime especial de contratação por tempo determinado, conforme o art. 37, IX, da CRFB/88. “A norma constitucional em referência, considerada de eficácia limitada, remete ao legislador o estabelecimento dos casos de contratação por prazo determinado. Em razão da autonomia federativa e da própria redação da norma em comento, conclui-se pela competência autônoma de cada Ente federado para legislar sobre a matéria.”[4]
Embora haja previsão legal tratando da extinção dos contratos temporários através da conveniência administrativa, a ocasião nos leva a preponderar pela preservação dos postos de trabalho. Além do mais, há a possibilidade de prorrogação do contrato de trabalho temporário, em especial o que determina o art. 4º, parágrafo único, inciso IV da Lei 8.745/1993, alíneas "g", "i" e "j" do inciso VI, do caput do art. 2º, no qual referem-se a atividades “i) técnicas especializadas necessárias à implantação de órgãos ou entidades ou de novas atribuições definidas para organizações existentes ou as decorrentes de aumento transitório no volume de trabalho que não possam ser atendidas mediante a aplicação do art. 74 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1993.” [grifo nosso]
Trata-se de uma situação nunca vivenciada na história recente, que provocou uma conjuntura emergencial, imprevisível e de abrangência mundial, em que verificamos caso de força maior, reconhecido pela Lei Federal 13.979/2020, além de um estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo Federal 6/2020, de modo que estes profissionais não deveriam ser dispensados antes ou pelo término dos contratos, uma vez que não deram causa à situação e mesmo por não ser juridicamente oportuno.
Não obstante vemos o Decreto Legislativo nº 6 de 20-03-2020, que reconhece o Estado de Calamidade até 31/12/2020; a Lei nº 14.065 de 30-09-2020, que adequa os limites de dispensa de licitação; a Lei Ordinária nº 6.738 de 4-5-2020, que reconhece o estado de calamidade pública no Município do Rio de Janeiro; bem como a Medida Provisória nº 974 de 28-5-2020, que disciplina acerca da prorrogação de contratos por tempo determinado do Ministério da Saúde.
Justamente no que trata a MP nº 974/20, em seu art. 1º observamos:
“Art. 1º Fica o Ministério da Saúde autorizado a prorrogar três mil quinhentos e noventa e dois contratos por tempo determinado de profissionais de saúde para exercício de atividades nos hospitais federais do Estado do Rio de Janeiro para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, firmados com fundamento no disposto no inciso I do caput do art. 2º da Lei nº 8.745, de 9 de dezembro de 1993, independentemente da limitação prevista no inciso VI do § 1º do art. 4º da referida Lei.” [grifos nossos]
Ainda decorre do princípio da supremacia do interesse público, o princípio da titularidade irrenunciável da prestação de serviços públicos pelo Poder Público nos casos em que a Administração Pública tem e deve prorrogar a contratação temporária, sem delongas, sob pena de um dano irreparável para a coletividade.
Fazendo uso de uma expressão do professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto[5], é na chamada administração extroversa (com a minúsculo, como atividade) ou atuação externa, que o Estado vai atender ao interesse público primário, satisfazendo o interesse público primário.
Então, a primeira distinção é essa, proveniente da doutrina italiana, através de Alessi, e para cá trazida pelo professor Luís Roberto Barroso: o interesse público primário é aquele que diz respeito a toda a coletividade, relaciona-se diretamente com a satisfação das necessidades coletivas, porque esse deve ser o primeiro objetivo do Estado sempre, pois foi para isso que ele foi criado.
Portanto, a sugestão ao gestor público é pela conservação dos contratos temporários ativos, prorrogando-os por prazo determinado, motivando antecipadamente de maneira irrefutável a prorrogação do contrato por conta do excepcional interesse público, através de previsão legal própria e específica do ente público, no qual se constituam critérios e procedimentos igual ao tempo de duração e término do contrato, aplicando de forma subsidiária a Lei Federal nº 8.745/93.
III - DA CONCLUSÃO
Diante de todas as razões acima esposadas, não resta outra resposta a ser dada à consulta formulada, senão no sentido de lhe ser possível a dispensa de licitação e da prorrogação do contrato dos servidores temporários, desde que por meio de Lei própria e específica.
É o Parecer, SMJ.
Rio de Janeiro, 8 de outubro de 2020.
[1] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo, volume único, pág. 215. Rio de Janeiro: Editora Forense, 6ª ed. 2018
[2] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo, volume único, pág. 215. Rio de Janeiro: Editora Forense, 36ª ed. 2019.
[3] Lei 9.784/99, art. 2º, inciso II.
[4]OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Apud CARVALHO FILHO, José dos Santos. 2009. p 574; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. 2009. p. 513.