Legalidade de ato administrativo que prorroga contratos de servidores temporários em razão da calamidade pública provocada pela pandemia de COVID-19

25/07/2023 às 13:20
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 I - DA CONSULTA

 Consulta-nos o Sr. (Nome completo), agente público, portador da Cédula de Identidade de nº xxx, residente e domiciliado na Rua xxx, sobre a possibilidade da prorrogação do seu contrato temporário junto à Administração Pública do Município de Itaguaí/RJ.

 II - DA FUNDAMENTAÇÃO

Em razões das dificuldades administrativas, financeiras e restrições nas atividades cotidianas ocasionadas pela Pandemia de COVID-19, é de suma importância buscar medidas administrativas e jurídicas que atendam a necessidade temporária de excepcional interesse público.

 Busca-se analisar o contexto jurídico atual e encontra-se resposta no evoluir da espécie humana e, por conseguinte, no expressivo desenvolvimento da Ciência Jurídica, bem como em leis contemporâneas, editadas especialmente como medidas de combate à pandemia.

 Em meados do século XIX, graças às profundas transformações sociais e ideológicas ocorridas, ainda por conta dos reflexos causados pela Revolução Francesa, finalmente os olhos de todos passaram a se voltar para o coletivo, para o até então exíguo direito público, que cresceria consideravelmente nesse período histórico, recebendo um enorme impulso das mudanças sociais, econômicas e políticas da época.

 Atentava-se, enfim, à coletividade, ao todo, ao geral, até porque a própria Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, lá de 1789, ao lançar as bases do novo regime que surgia, o Estado de Direito, que aboliria o Absolutismo até então vigente, já preconizava, por exemplo, que as destinações sociais só podiam “fundamentar-se na utilidade comum” (art. 1º), como assim também preceitua que “a garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública”, sendo esta “instituída para fruição de todos, e não para utilidade particular daqueles a quem é confiada” (art. 12).

 Logo, exsurge lentamente a teoria de que o Poder Público só pode atender ao interesse público, ou seja, a finalidade da atuação administrativa só pode ser uma: o administrador quando atua, o faz legitimado a realizar o bem comum, age em prol da comunidade, do povo, que juridicamente é o efetivo titular do interesse público, preceito que a doutrina majoritária nomeia, tradicionalmente, de princípio da supremacia do interesse público.

 Paralelamente, não é possível conceber a atividade administrativa como mera executora mecânica da lei, sem qualquer papel criativo por parte do aplicador do Direito, sob pena de se tornar desnecessária a atividade regulamentar. A aplicação da lei, tanto pelo juiz como pela Administração Pública, depende de um processo criativo-interpretativo, sendo inviável a existência de lei exaustiva o bastante que dispense o papel criativo do operador do Direito. De fato, o que pode variar é o grau de liberdade conferida pela norma jurídica. Logo, na ausência da lei ou no caráter excepcional da situação fática, o administrador pode atuar com maior liberdade para atender ao interesse público[1].

 É dentro desse contexto histórico que se observa a dispensa de licitação. A Lei 8.666/93 em vigor durante a pandemia [e até dezembro de 2023] estabelece como regra que a administração pública direta e indireta de qualquer um dos Poderes da União é obrigada a contratar obras, serviços, compras e alienações através de licitação pública, ressalvados casos específicos na legislação, conforme dispõe o art. 37, XXI da CRFB/88.

 Não obstante à Constituição, a Lei 8.666/93, que regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, instituindo normas para licitações e contratos da Administração Pública, prevê em seu art. 2º a licitação como requisito obrigatório, mas também cria a exceção para hipóteses previstas na própria legislação em que haja a dispensa de licitação.

 Assim, se constata que a Constituição Federal e a Lei 8.666/93 geram uma reserva legal em que deve haver previsão expressa em Lei que permita a contratação direta pelo administrador público.

 Nestas situações, embora o procedimento licitatório possa ser realizado, a lei permite a contratação sem licitação. Conjectura esta prevista no art. 24 da Lei 8.666/93 [art. 75 da Lei 14.133/21), especialmente no que concerne o inciso IV do referido artigo, senão vejamos:

 Lei 8.666/93

Art. 24.  É dispensável a licitação:

IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos;

Lei 14.133/21

Art. 75. É dispensável a licitação:

VIII - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a continuidade dos serviços públicos ou a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para aquisição dos bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 1 (um) ano, contado da data de ocorrência da emergência ou da calamidade, vedadas a prorrogação dos respectivos contratos e a recontratação de empresa já contratada com base no disposto neste inciso; [grifos nossos]

 Assim, verifica-se que a legislação já previa situações como a decorrente da Pandemia de COVID-19, autorizando o administrador público a embasar-se nas exceções previstas em Lei a fim de contratar diretamente observando o princípio da supremacia do interesse público. É interessante observar que a Nova Lei de Licitações ampliou o prazo relativo à conclusão de parcelas de obras e serviços de 180 dias consecutivos e ininterruptos para 1 ano em cenários emergenciais ou de calamidade pública.

Conforme assevera Marçal Justen Filho, “o direito não faculta ao agente público o poder para escolher entre cumprir e não cumprir o interesse público. O agente é um servo do interesse público – nessa acepção, o interesse público é indisponível”.[1]

 Sendo assim, de acordo com a doutrina clássica, que hoje tem como representante mais ilustre no Direto brasileiro o professor Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular é não apenas um princípio jurídico de aplicação a diversos casos concretos, ele é mais do que isso: é um postulado de todo o Direito Público e, consequentemente, também do Direito Administrativo, cujo sistema se delineia, se constrói, segundo esse autor, exatamente em função da consagração dos princípios da supremacia do interesse público sobre o interesse privado e o da indisponibilidade dos interesses públicos pela Administração, que seriam as “pedras de toque”, as “pedras angulares”, os pilares do Direito Administrativo moderno.[2]

 Com a Carta Política de 1988, o Brasil se tornou um Estado Democrático de Direito e, como tal, encabeçando seus principais fundamentos, encontra-se a supremacia do interesse público.

 Previsto no artigo 2º, caput, da Lei nº 9.784/99, e especificado no parágrafo único, o princípio do interesse público “está presente tanto no momento da elaboração da Lei como no momento da sua execução em concreto pela Administração Pública. Ele inspira o legislador e vincula a autoridade administrativa em toda a sua atuação.”[2]

Nos seus incisos I ao XII aponta as modalidades deste instituto, especialmente: I – assistência a situações de calamidade pública; II – assistência a emergência de saúde pública e VI, i – atividades técnicas especializadas necessárias à implantação de órgãos ou entidades ou de novas atribuições definidas para organizações existentes ou as decorrentes de aumento transitório no volume de trabalho que não possam ser atendidas mediante a aplicação do art. 74 da Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990.

 Segundo o caráter primário deste princípio, é imprescindível a atendimento de necessidades da coletividade pela Administração Pública através da execução de atividades administrativas, de modo que atenda a “fins de interesse geral vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei”.[3]

 A doutrina clássica entende que há uma valoração maior do interesse público primário, de maneira que a atuação da atividade administrativa prestada à sociedade, inclusive os serviços públicos e a intervenção na ordem econômica, prepondera sobre os interesses privados e deve ser considerado o alvo derradeiro da atuação administrativa.

 Por conseguinte, inegável é o princípio da supremacia do interesse público como norte ao Direito Administrativo, pois se pode perceber de maneira evidente que o citado princípio existe para assegurar que o interesse público não se confunde com o simples interesse patrimonial e econômico da Fazenda Pública.[3]

 Fora este objetivo, a atuação estará inquinada de desvio de finalidade, visto que não é o indivíduo em si o destinatário da atividade administrativa, mas sim o grupo social num todo; afinal, o Estado saiu da era do individualismo exacerbado, passando a se caracterizar como o Welfare State, isto é, o Estado de bem estar social, dedicado a atender ao interesse público.

Trata-se, desse modo, “do primado do interesse público. O indivíduo tem que ser visto como integrante da sociedade, podendo os seus direitos, em regra, serem equiparados aos direitos sociais”, conforme bem acentua José dos Santos Carvalho Filho.[4]

 Assim, só uma ideia prévia às normas do Direito Administrativo, que coloquem sempre e necessariamente o interesse da coletividade, pode justificar a instrumentalizar a ação do Estado, para dotá-la da capacidade necessária de realizar as ações tendentes a promover o bem comum.

 O interesse público primário se relaciona com as finalidades públicas que o Estado deve promover com os objetivos para ele colocados pelo texto constitucional. Constitui-se o interesse público primário, portanto, nos interesses da sociedade como um todo, e só ele pode ser validamente objetivado, eis que é a lei que o consagra e que deve ser perseguido pelo Estado de modo a suprir as necessidades da coletividade, principalmente nesse momento crítico em que se encontra o Estado brasileiro em função da COVID-19.

 Isto basicamente não quer dizer que o interesse público seja antagônico ao interesse privado. Não é uma dicotomia, pois a promoção de um é a promoção do outro.

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 Não obstante, é um raciocínio correto entender que a Lei 8.666/93, por ser norma geral, aplica-se as licitações e contratos administrativos acompanhados de Leis editadas durante o período de pandemia, igual a Lei 13.979/2020, uma vez que de acordo com o art. 2º, § 2º, da LINDB, as normas especiais não revogam as normas gerais. 

 O foco não é somente combater a COVID-19, mas sim retomar e prosseguir com as atividades do serviço público, levando em consideração o momento excepcional e novo.

 À vista disto, urge-se pela dispensa de licitação em contratações de bens e serviços, e também no que concerne a prorrogação dos contratos dos servidores temporários. Eles possuem um regime especial de contratação por tempo determinado, conforme o art. 37, IX, da CRFB/88. “A norma constitucional em referência, considerada de eficácia limitada, remete ao legislador o estabelecimento dos casos de contratação por prazo determinado. Em razão da autonomia federativa e da própria redação da norma em comento, conclui-se pela competência autônoma de cada Ente federado para legislar sobre a matéria.”[4]

 Embora haja previsão legal tratando da extinção dos contratos temporários através da conveniência administrativa, a ocasião nos leva a preponderar pela preservação dos postos de trabalho. Além do mais, há a possibilidade de prorrogação do contrato de trabalho temporário, em especial o que determina o art. 4º, parágrafo único, inciso IV da Lei 8.745/1993, alíneas "g", "i" e "j" do inciso VI, do caput do art. 2º, no qual referem-se a atividades “i) técnicas especializadas necessárias à implantação de órgãos ou entidades ou de novas atribuições definidas para organizações existentes ou as decorrentes de aumento transitório no volume de trabalho que não possam ser atendidas mediante a aplicação do art. 74 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1993.” [grifo nosso]

Trata-se de uma situação nunca vivenciada na história recente, que provocou uma conjuntura emergencial, imprevisível e de abrangência mundial, em que verificamos caso de força maior, reconhecido pela Lei Federal 13.979/2020, além de um estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo Federal 6/2020, de modo que estes profissionais não deveriam ser dispensados antes ou pelo término dos contratos, uma vez que não deram causa à situação e mesmo por não ser juridicamente oportuno.

 Não obstante vemos o Decreto Legislativo nº 6 de 20-03-2020, que reconhece o Estado de Calamidade até 31/12/2020; a Lei nº 14.065 de 30-09-2020, que adequa os limites de dispensa de licitação; a Lei Ordinária nº 6.738 de 4-5-2020, que reconhece o estado de calamidade pública no Município do Rio de Janeiro; bem como a Medida Provisória nº 974 de 28-5-2020, que disciplina acerca da prorrogação de contratos por tempo determinado do Ministério da Saúde.

 Justamente no que trata a MP nº 974/20, em seu art. 1º observamos:

 “Art. 1º Fica o Ministério da Saúde autorizado a prorrogar três mil quinhentos e noventa e dois contratos por tempo determinado de profissionais de saúde para exercício de atividades nos hospitais federais do Estado do Rio de Janeiro para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público, firmados com fundamento no disposto no inciso I do caput do art. 2º da Lei nº 8.745, de 9 de dezembro de 1993, independentemente da limitação prevista no inciso VI do § 1º do art. 4º da referida Lei.” [grifos nossos]

 Ainda decorre do princípio da supremacia do interesse público, o princípio da titularidade irrenunciável da prestação de serviços públicos pelo Poder Público nos casos em que a Administração Pública tem e deve prorrogar a contratação temporária, sem delongas, sob pena de um dano irreparável para a coletividade.

 Fazendo uso de uma expressão do professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto[5], é na chamada administração extroversa (com a minúsculo, como atividade) ou atuação externa, que o Estado vai atender ao interesse público primário, satisfazendo o interesse público primário.  

Então, a primeira distinção é essa, proveniente da doutrina italiana, através de Alessi, e para cá trazida pelo professor Luís Roberto Barroso: o interesse público primário é aquele que diz respeito a toda a coletividade, relaciona-se diretamente com a satisfação das necessidades coletivas, porque esse deve ser o primeiro objetivo do Estado sempre, pois foi para isso que ele foi criado.

 Portanto, a sugestão ao gestor público é pela conservação dos contratos temporários ativos, prorrogando-os por prazo determinado, motivando antecipadamente de maneira irrefutável a prorrogação do contrato por conta do excepcional interesse público, através de previsão legal própria e específica do ente público, no qual se constituam critérios e procedimentos igual ao tempo de duração e término do contrato, aplicando de forma subsidiária a Lei Federal nº 8.745/93.

 III - DA CONCLUSÃO

 Diante de todas as razões acima esposadas, não resta outra resposta a ser dada à consulta formulada, senão no sentido de lhe ser possível a dispensa de licitação e da prorrogação do contrato dos servidores temporários, desde que por meio de Lei própria e específica.

É o Parecer, SMJ.

Rio de Janeiro, 8 de outubro de 2020.



[1] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo, volume único, pág. 215. Rio de Janeiro: Editora Forense, 6ª ed. 2018

[2] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo, volume único, pág. 215. Rio de Janeiro: Editora Forense, 36ª ed. 2019.

[3] Lei 9.784/99, art. 2º, inciso II.

[4]OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Apud CARVALHO FILHO, José dos Santos. 2009. p 574; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. 2009. p. 513.

Sobre a autora
Flávia de Sena Campos

Museóloga, Psicanalista e Advogada. Bacharela em Museologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO, 2016). Bacharela em Direito pelo Centro Universitário do Rio de Janeiro (UNIRJ, 2022). Aprovada no XXXVI Exame de Ordem (EUOAB, 2022). Membro da Comissão de Direitos Humanos e da Comissão de Direito Administrativo e Constitucional da 29a Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ). Psicanalista associada ao Instituto Brasileiro de Psicanálise Clínica (IBPC, 2024). Cursa Licenciatura em Letras, com habilitação em Literatura, pela Universidade Federal Fluminense (UFF, 2021-atual). Especialização em andamento em Direito Notarial e Registral e Gestão de Escritórios e Departamentos Jurídicos (Faculdade Legale, 2023-atual). Laureada "Pesquisadora em Direito Público" pela Academia Nacional de Juristas conveniada a Emil Bruner World University (ANAJ, 2022). Escritora, professora e palestrante. É revisora das obras jurídicas do doutrinador José Maria Pinheiro Madeira.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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