Direito à aposentadoria “integral” dos portadores de deficiência

10/03/2024 às 16:22
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Sob a égide da Constituição Federal de 1988 antes da Emenda Constitucional 103/2019 existia na legislação infraconstitucional de diversos Estados Membros da Federação em normas de Leis Complementares (Regimes Jurídicos dos Servidores Públicos Cíveis dos Estados) que concediam aos seus servidores a aposentadoria integral em caso de doença grave ou deficiência incapacitante (aposentadoria não acidentária).

Tais normas, eram e são, evidentemente, mais benéficas às pessoas portadoras de deficiência.

Em 2009 entrou em vigor a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Tratado internacional de direitos humanos do qual o Brasil é signatário e que entrou no sistema jurídico com efeitos de Emenda Constitucional, fazendo parte do Bloco de Constitucionalidade, por força do Art. 5°, § 3°, CF/1988 e do Decreto 6.949/2009) com status de cláusulas pétreas uma vez que é um tratado sobre direitos humanos.

Com a Emenda Constitucional 103/2019 houve a extinção (de forma inconstitucional) da aposentadoria integral para os portadores de doenças graves e para os que fossem acometidos de deficiência incapacitante (aposentadoria não acidentária), sobrando apenas a aposentadoria integral para os servidores acometidos de acidente do trabalho, doença profissional e doença do trabalho (aposentadoria acidentária).

O surgimento dessas novas regras previdenciárias estabeleceu uma diferenciação discriminatória em relação a aposentaria acidentária e a aposentadoria não acidentária. Discriminação essa desproporcional e desarrazoada uma vez que trata iguais de forma desigual, além de serem inconstitucionais por ofensa às cláusulas pétreas, como adiante se demonstrará.

Ocorre flagrante violação ao princípio da igualdade material. As alterações em questão, promovidas em sede de poder constitucional derivado, efetivamente ofendem os limites materiais do poder de reforma que se extraem do art. 60, § 4º, IV, da CRFB. E o fazem ao indevidamente distinguir situações jurídicas equivalentes e merecedoras da mesma proteção previdenciária (incapacidade permanente acidentária e não acidentária).

Ocorre que essa profunda alteração de forma de cálculo foi levada a efeito apenas em relação à aposentadoria por incapacidade permanente não acidentária, importando em uma redução de mais de 40% (quarenta por cento) do valor nominal anteriormente praticado e padecendo de inconstitucionalidade, pois, nessa parte, a reforma previdenciária violou os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, além das garantias constitucionais de isonomia e de uniformidade, previstas no art. 5º, caput, e na primeira parte do inciso II, parágrafo único, do art. 194. da Constituição Federal, em contraste com a aposentadoria por invalidez acidentária e com as demais aposentadorias.

Não há proporcionalidade e razoabilidade dessa imposição, que diferencia iguais, que estão na mesma situação fática e jurídica, ou seja, não é constitucionalmente justo que servidores que padecem de doenças graves como tuberculose ativa, alienação mental, esclerose múltipla, neoplasia maligna, cegueira posterior ao ingresso no serviço público, hanseníase, cardiopatia grave, doença de Parkinson, paralisia irreversível e incapacitante, espondiloartrose anguilosante, nefropatia grave, estados avançados do mal de Paget (osteíte deformante), Síndrome de Imunodeficiência Adquirida-AIDS, sejam tratados de forma diferente e discriminatória com os servidores portadores de doenças profissionais, pelo simples fato de que estes últimos adquiriram a enfermidade em razão do trabalho. Sobretudo porque, muitas vezes, as doenças graves previstas em lei são mais graves que as doenças profissionais, acarretando aos seus portadores intenso sofrimento psicológico, físico, familiar, e possibilidade de morte, além de gastos vultosos com tratamento terapêuticos e medicamentos.

O artigo jurídico do Advogado Lucas Nascimento no site Consultor Jurídico 1, assim disserta:

“Tal distinção, por óbvio, diferencia a renda mensal inicial (RMI) da aposentadoria por incapacidade permanente previdenciário e da aposentadoria por incapacidade permanente acidentário, sendo a RMI do primeira desvantajosa em relação ao segunda.

A título de ilustração, dois segurados que tenham o mesmo salário de contribuição e que comprovem a sua incapacidade total e permanentemente, mas um deles de natureza acidentária e o outro de natureza previdenciária, receberão aposentadorias com valores diferentes, sendo a previdenciária inferior à acidentária.

Essa discrepância na forma de cálculo dos referidos benefícios, que torna a RMI da aposentadoria por incapacidade permanente previdenciária menos vantajosa, ao que parece, viola os princípios constitucionais da isonomia, da razoabilidade e da proporcionalidade.

Isso porque, à primeira vista, inexiste argumento satisfatório para que haja divergência quanto ao coeficiente de apuração das duas aposentadorias, as quais, como já dito, possuem os mesmos requisitos para a sua concessão .” (grifamos)

Tanto é assim, que existe no Congresso Nacional um Projeto de Emenda Constitucional que busca eliminar essa discriminação (PEC 56/2014), chamada PEC da isonomia na Aposentadoria por incapacidade permanente para o trabalho:

Assim, o tratamento desigual dado pela da Emeda Constitucional Federal entre os servidores portadores de doenças graves e os servidores públicos portadores de doença profissional, fere o princípio básico de igualdade previsto no art. 5º, caput, da Constituição Federal, haja vista a limitação de um direito social do cidadão, cuja proteção deveria ser garantida pela previdência social e, em sentido maior, pela própria seguridade social.

Na Justiça Federal é firme posicionamento no sentido do reconhecimento da inconstitucionalidade das alterações introduzidas pela Emenda Constitucional (EC) nº 103/2019, quanto à forma de cálculo da renda mensal inicial (RMI) da aposentadoria por incapacidade permanente não acidentária.

Os §§ 2º e 5º da EC nº 103/2019 alteraram profundamente a forma de cálculo do valor da renda mensal inicial da aposentadoria por incapacidade permanente não acidentária, estabelecendo que, até o advento de lei que discipline o seu cálculo, esse valor deva corresponder a 60% (sessenta por cento) da média aritmética simples dos salários-de-contribuição contidos no período básico de cálculo (PBC), com acréscimo de 2% (dois por cento) para cada ano de contribuição que exceder o tempo de 20 (vinte) anos de contribuição para segurados homens ou 15 (quinze) anos de contribuição para seguradas mulheres.

Ocorre que o art. 26, § 3º, inciso II, a EC nº 103/2019 excetuou da incidência desta limitação as aposentadorias decorrentes de acidente de trabalho, de doença profissional e de doença do trabalho, mantendo à propósito a mesma regra de cálculo anterior, de acordo com a qual o valor da renda mensal inicial (RMI) desse benefício deveria corresponder a 100% (cem por cento) da média aritmética simples dos salários de-contribuição contidos no período básico de cálculo (PBC).

Portanto, essa profunda alteração de forma de cálculo foi levada a efeito apenas em relação à aposentadoria por incapacidade permanente não acidentária, importando em uma redução de mais 40% (quarenta por cento) do valor nominal anteriormente praticado.

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Tratado internacional de direitos humanos do qual o Brasil é signatário e que entrou no sistema jurídico com efeitos de Emenda Constitucional, fazendo parte do Bloco de Constitucionalidade, por força do Art. 5°, § 3°, CF/1988 e do Decreto 6.949/2009).

As normas mais favorável à pessoas portadoras de doenças graves e deficientes que concediam a aposentadoria integral, sendo elas relacionadas a incapacidade permanente para o trabalho devido a deficiências físicas (v.g. paralisia incapacitante, tetraplegia e cegueira) e ou psíquica (v.g. alienação mental), bem como doenças que provocavam deficiências físicas e mentais (v.g. esclerose múltipla, doença de Parkinson, mal de Paget), tanto para servidores que adquiriam doenças profissionais como para servidores que adquiriam tais doenças sem relação direta com o trabalho.

Tais normas, tem finalidade evidente de proteção aos portadores de deficiência e traduzem-se a realização de direitos humanos na área para os portadores de deficiência física, sendo suas disposições cláusulas pétreas.

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Tratado internacional de direitos humanos) determina:

“Artigo 1

Propósito

O propósito da presente Convenção é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente.

Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.

.......

Artigo 4

Obrigações gerais

1. Os Estados Partes se comprometem a assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, sem qualquer tipo de discriminação por causa de sua deficiência.

Para tanto, os Estados Partes se comprometem a:

Adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza, necessárias para a realização dos direitos reconhecidos na presente Convenção ;

Adotar todas as medidas necessárias, inclusive legislativas, para modificar ou revogar leis, regulamentos, costumes e práticas vigentes, que constituírem discriminação contra pessoas com deficiência;

......

4. Nenhum dispositivo da presente Convenção afetará quaisquer disposições mais propícias à realização dos direitos das pessoas com deficiência, as quais possam estar contidas na legislação do Estado Parte ou no direito internacional em vigor para esse Estado. Não haverá nenhuma restrição ou derrogação de qualquer dos direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado Parte da presente Convenção, em conformidade com leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob a alegação de que a presente Convenção não reconhece tais direitos e liberdades ou que os reconhece em menor grau.

5. As disposições da presente Convenção se aplicam, sem limitação ou exceção, a todas as unidades constitutivas dos Estados federativos.

“Artigo 5

Igualdade e não discriminação

1. Os Estados Partes reconhecem que todas as pessoas são iguais perante e sob a lei e que fazem jus, sem qualquer discriminação, a igual proteção e igual benefício da lei.

2.Os Estados Partes proibirão qualquer discriminação baseada na deficiência e garantirão às pessoas com deficiência igual e efetiva proteção legal contra a discriminação por qualquer motivo.

3.A fim de promover a igualdade e eliminar a discriminação, os Estados Partes adotarão todas as medidas apropriadas para garantir que a adaptação razoável seja oferecida.

4.Nos termos da presente Convenção, as medidas específicas que forem necessárias para acelerar ou alcançar a efetiva igualdade das pessoas com deficiência não serão consideradas discriminatórias.”

........

Artigo 10

Direito à vida

Os Estados Partes reafirmam que todo ser humano tem o inerente direito à vida e tomarão todas as medidas necessárias para assegurar o efetivo exercício desse direito pelas pessoas com deficiência, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

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..........

Artigo 28

Padrão de vida e proteção social adequados

1. Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência a um padrão adequado de vida para si e para suas famílias , inclusive alimentação, vestuário e moradia adequados, bem como à melhoria contínua de suas condições de vida, e tomarão as providências necessárias para salvaguardar e promover a realização desse direito sem discriminação baseada na deficiência.

O Artigo 4.4 dispõe, literalmente que não haverá nenhuma restrição ou derrogação de qualquer dos direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado Parte da presente Convenção, em conformidade com leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob a alegação de que a presente Convenção não reconhece tais direitos e liberdades ou que os reconhece em menor grau.

Logo, o inciso II, do parágrafo 3°, Artigo 26 da Emenda Constitucional 103 de 2019 , está em contradição com o disposto supracitado da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, uma vez, que retira e/ou restringem direitos de pessoas com deficiência antes concedidos, num claro retrocesso social, o que contraria frontalmente o Artigo 4.1 da supracitada Convenção, que dispõe que “Os Estados Partes se comprometem a assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, sem qualquer tipo de discriminação por causa de sua deficiência. Para tanto, os Estados Partes se comprometem a: Adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza (incluídas medidas judiciais), necessárias para a realização dos direitos reconhecidos na presente Convenção; Adotar todas as medidas necessárias, inclusive legislativas, para modificar ou revogar leis, regulamentos, costumes e práticas vigentes, que constituírem discriminação contra pessoas com deficiência;

As normas da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência (que tem status de normas constitucionais) e as normas infraconstitucionais que concedem aposentadoria integral aos portadores de doenças graves e portadores de deficiências estão intimamente relacionadas com os direitos humanos, sendo cláusulas pétreas.

Neste diapasão, é princípio básico constitucional e de direito internacional humano determina:

a proibição do retrocesso, também chamada proibição da evolução reacionária ou do efeito cliquet , segundo ao qual suprimir direitos já incorporados ao patrimônio jurídico da humanidade corresponderia a um retrocesso na afirmação da dignidade humana”. (BARRETO, Rafael. Direitos Humanos, Editora Juspodivm, 12ª edição, pág. 33).

Também fere o princípio da razoabilidade e proporcionalidade tratar de forma diferente os servidores portadores de doenças graves ou deficientes daqueles servidores portadores de doenças profissionais, pois todos esses necessitam de proteção social em razão de enfrentarem condições de saúde adversas.

O princípio da dignidade humana é um alicerce jusfilosófico importante. Garantir uma aposentadoria integral para portadores de doenças graves é muitas vezes fundamentado na ideia de que cada indivíduo tem o direito intrínseco a uma vida digna, independentemente das adversidades que enfrenta.

A concessão de aposentadoria integral para portadores de doenças graves reflete a busca pela inclusão e pela não discriminação. Isso reconhece a necessidade de tratar de forma equitativa e justa os indivíduos que enfrentam desafios significativos devido a suas condições de saúde.

A base social para a aposentadoria integral em casos de doenças graves está relacionada ao objetivo de garantir o bem-estar e a qualidade de vida dos indivíduos afetados. Proporcionar um apoio financeiro adequado visa assegurar que essas pessoas possam manter um padrão de vida razoável, mesmo diante das limitações impostas pela doença.

Doenças graves, independentemente de serem classificadas como profissionais ou não, podem ter impactos significativos na capacidade de trabalho e qualidade de vida dos servidores. Portanto, tratar de maneira desigual os servidores com base na classificação da doença tem que ser considerado uma discriminação injustificada. Cabe observar que o Artigo 5 da Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência determina: “Os Estados Partes reconhecem que todas as pessoas são iguais perante e sob a lei e que fazem jus, sem qualquer discriminação, a igual proteção e igual benefício da lei.”

A diferenciação entre doenças profissionais e graves não reflete adequadamente a realidade da incapacidade e dos desafios enfrentados pelos servidores. O tratamento diferenciado viola o princípio da igualdade, pois pessoas em situações similares (incapacidade para o trabalho devido a condições de saúde) não podem ser tratadas de maneira desigual.

Em considerações sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, temos o benefício de aposentadoria por incapacidade temporária não é um benefício assistencial que busque simplesmente assegurar um mínimo existencial ou uma renda mínima. É um benefício de natureza contributiva e que, na condição de seguro social, deve resguardar condições de subsistência ao segurado acometido de uma incapacidade permanente que lhe retire a capacidade laboral próximas às condições de subsistência que teria, caso estivesse em atividade.

Portanto, essa profunda alteração de forma de cálculo foi levada a efeito apenas em relação à aposentadoria por incapacidade permanente não acidentária, importando em uma redução de mais 40% (quarenta por cento) do valor nominal anteriormente praticado.

Ocorre que essa profunda alteração de forma de cálculo operada apenas em relação à aposentadoria por incapacidade permanente não acidentária padece de inconstitucionalidade.

Isto porque há ausência de proporcionalidade e razoabilidade na adoção da nova forma de cálculo da aposentadoria por invalidez, eis que a aposentadoria por invalidez é um benefício de prestação continuada substitutivo de renda devido justamente aos segurados que perderam a capacidade laborativa (o que nem sempre ocorre com a aposentadoria por tempo de contribuição e com a aposentadoria por idade), não podendo haver uma quebra abissal de uma certa equivalência entre o custeio e o benefício, que é o que passou a ocorrer, pois 40% (quarenta por cento) de perda no valor nominal imposto pela nova forma de cálculo já corresponderia a uma espécie de confisco.

E neste tipo de situação com o agravante de que essa "quebra abissal de uma certa equivalência entre o custeio e o benefício" ocorre sem paralelo com os demais benefícios do RPPS, inclusive com as outras aposentadorias (e aí está uma falta de proporcionalidade e de razoabilidade também, pois apenas um benefício não pode sofrer toda essa perda no bojo de uma mesma reforma), e com o agravante de que justamente a aposentadoria por invalidez não pode ser programada (o que significa que o "futuramente inválido" não pode se antecipar poupando, e a invalidez pode até surgir em pessoas bem jovens) em flagrante violação à dignidade da pessoa humana e justamente em flagrante violação da dignidade das pessoas mais vulneráveis, que são as pessoas incapacitadas permanentemente sob o ponto de vista médico e jurídico, as quais, inclusive no âmbito do Direito Comparado, são justamente as pessoas que precisam de uma maior proteção previdenciária, que corresponde ao núcleo essencial do Direito Previdenciário.

Dessa forma, ao impor uma dupla redução no benefício de aposentadoria por invalidez permanente, primeiro ao reduzir o salário-de-benefício, e depois ao reduzir o salário-de-contribuição, justamente no momento em que o segurado foi acometido de um risco social gravíssimo que lhe retirou a possibilidade de sustento e, para além disso, ordinariamente lhe trouxe maiores ônus financeiros, tenho que a modificação atingiu o núcleo essencial do benefício, vulnerando suas finalidades sociais e ferindo os princípios da dignidade humana e da vedação ao retrocesso social, com isso, violando também o Artigo 10 da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência que dispõe que todo ser humano portador de deficiência tem o inerente direito à vida (vida digna e digna qualidade de vida) e tomarão todas as medidas necessárias para assegurar o efetivo exercício desse direito pelas pessoas com deficiência, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, bem como o Artigo 28 da mesma convenção, que dispõe que os deficientes tem direito a proteção do Padrão de vida e proteção social adequados : “ Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência a um padrão adequado de vida para si e para suas famílias, inclusive alimentação, vestuário e moradia adequados, bem como à melhoria contínua de suas condições de vida, e tomarão as providências necessárias para salvaguardar e promover a realização desse direito”, e a letra “E” do mesmo Artigo 28.2 determina que é dever o Estado assegurar igual acesso de pessoas com deficiência a programas e benefícios de aposentadoria.

O respeito à dignidade da pessoa humana se impõe também ao constituinte reformador, uma vez que se trata de um dos fundamentos da república (art. 1º, III, CRFB/88), sendo simultaneamente um direito fundamental e um princípio informador de toda a ordem jurídica, que deve convergir para a sua realização.

Não atende à dignidade da pessoa humana um benefício de aposentadoria por incapacidade permanente, decorrente de um evento não programável e por si catastrófico para o indivíduo, que não proporcione ao menos uma renda que reflita a média de sua vida contributiva e permita ao segurado, manter para si e para a sua família um patamar de renda próximo do que teria, caso não lhe tivesse sido suprimida a capacidade de trabalho.

Embora a dignidade da pessoa humana não forneça um parâmetro preciso de cálculo dos benefícios previdenciários, como destacou o Ministro Luís Roberto Barroso, em seu voto proferido na ADI 7.051, penso que isso não significa que não sirva como norte interpretativo das regras para definição do valor do benefício. Reconhecer ao constituinte derivado um espaço de conformação dos princípios constitucionais não significa uma liberdade irrestrita para fixar regras de cálculo quaisquer que sejam, desde respeitados o mínimo existencial, refletido na garantia constitucional de benefícios não inferiores a um salário-mínimo.

Ir para além disso, da forma como se fez na alteração das regras de apuração da renda mensal inicial, descaracteriza por completo a função social do benefício de aposentadoria por incapacidade, com potencial de relegar os segurados inválidos a uma situação de impossibilidade de dignamente prover o seu sustento, bem como o sustento de seus dependentes.

A matéria já se encontra pacificada no âmbito da Justiça Federal, em casos análogos, mas não idênticos, no sentido de se considerar inconstitucional o tratamento diferenciado dado pela Emenda Constitucional 103 em relação a aposentadoria acidentária e a não acidentária. Agora, trago à baila decisões de procedência de ações em casos análogos nos Juizados Especiais Federais:

“Em sede de pedido de uniformização regional, contudo, a Turma Regional de Uniformização da 4ª Região houve por bem acolher a pretensão do autor, no sentido do afastamento da nova regra de cálculo prevista na EC nº 103/2019, ao entendimento de que seria inconstitucional . Confira-se a decisão monocrática que deu provimento ao incidente(Evento 1, Despacho/Decisão 148):

[...]

Em conformidade com o disposto no art. 49, inciso XI, alínea "b", in fine, do RI/TRU4, passo a proferir decisão monocrática dando provimento ao pedido de uniformização, pois o entendimento adotado no acórdão recorrido está em desconformidade com o entendimento já uniformizado nesta Turma Regional, in verbis:

"PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO REGIONAL. PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR INCAPACIDADE PERMANENTE. INCONSTITUCIONALIDADE DA ALTERAÇÃO DA FORMA DE CÁLCULO DA RENDA MENSAL INICIAL DA APOSENTADORIA POR INCAPACIDADE PERMANENTE NÃO ACIDENTÁRIA INTRODUZIDA PELA EC Nº 103/2019. PEDIDO PROVIDO.

1. Os §§ 2º e 5º da EC nº 103/2019 alteraram profundamente a forma de cálculo do valor da renda mensal inicial da aposentadoria por incapacidade permanente não acidentária, estabelecendo que, até o advento de lei que discipline o seu cálculo, esse valor deva corresponder a 60% (sessenta por cento) da média aritmética simples dos salários-de-contribuição contidos no período básico de cálculo (PBC), com acréscimo de 2% (dois por cento) para cada ano de contribuição que exceder o tempo de 20(vinte) anos de contribuição para segurados homens ou 15 (quinze) anos de contribuição para seguradas mulheres.

2. Ocorre que essa profunda alteração de forma de cálculo foi levada a efeito apenas em relação à aposentadoria por incapacidade permanente não acidentária, importando em uma redução de 40% (quarenta por cento) do valor nominal anteriormente praticado e padecendo de inconstitucionalidade , pois, nessa parte, a reforma previdenciária violou os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, além das garantias constitucionais de isonomia e de uniformidade, previstas no art. 5º, caput, e 3. Ademais, não há motivo objetivo plausível para haver discriminação entre os coeficientes aplicáveis à aposentadoria por incapacidade permanente acidentária e não acidentária .

3. A seletividade e a distributividade na prestação dos benefícios e a equidade na forma de participação no custeio, previstas como objetivos da Seguridade Social nos incisos III e V do parágrafo único do art. 194. da Constituição Federal rechaçam a possibilidade de aniquilamento do caráter substitutivo dos rendimentos do trabalho em virtude de drástica redução no valor da aposentadoria por invalidez não acidentária , que consubstancia o benefício previdenciário que compõe por excelência o núcleo essencial do Direito Previdenciário, sob pena de transmutação de sua natureza previdenciária em natureza assistencial.

4. Em razão da inconstitucionalidade do inciso III do §2º do art. 26. da EC 103/2019, esta turma delibera por fixar a seguinte tese: "O valor da renda mensal inicial (RMI)da aposentadoria por incapacidade permanente não acidentária continua sendo de 100% (cem por cento) da média aritmética simples dos salários de contribuição contidos no período básico de cálculo (PBC). Tratando-se de benefício com DIB posterior a EC 103/19, o período de apuração será de 100% do período contributivo desde a competência julho de 1994, ou desde o início da contribuição, se posterior àquela competência" (5003241-81.2021.4.04.7122, TURMA REGIONAL DE UNIFORMIZAÇÃO DA 4ª REGIÃO, Relator DANIEL MACHADO DA ROCHA, juntado aos autos em 12/03/2022).

Destarte, cabe dar provimento ao pedido de uniformização, com o retorno dos autos à Turma Recursal de origem para fins de juízo de adequação a esse entendimento.

Ante o exposto, dou provimento ao pedido de uniformização.

5. Portanto, mesmo após o advento da EC nº 103/2019 o valor da renda mensal inicial (RMI) da aposentadoria por incapacidade permanente não acidentária deve continuar correspondendo a 100% (cem por cento) da média aritmética simples dos salários-de-contribuição contidos no período básico de cálculo (PBC), da mesma forma que no regime anterior e da mesma forma que a aposentadoria por incapacidade permanente acidentária no regime dessa emenda, consoante previsto em seu art. 26, § 3º, inciso II.

6. Pedido de uniformização provido" (5019205-93.2020.4.04.7108, TURMAREGIONAL DE UNIFORMIZAÇÃO DA 4ª REGIÃO, Relatora para Acórdão JACQUELINE MICHELS BILHALVA, juntado aos autos em 15/03/2022).

" PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA POR INCAPACIDADE PERMANENTE. DISCRIMINAÇÃO ENTRE OS COEFICIENTES DA ACIDENTÁRIA E DA NÃO ACIDENTÁRIA. CÁLCULO DA RENDA MENSAL INICIAL. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 26, § 2º, III, DA EC N.º 103/2019. VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ISONOMIA, DA RAZOABILIDADE E DA IRREDUTIBILIDADE DO VALOR DOS BENEFÍCIOS E DA PROIBIÇÃO DA PROTEÇÃO DEFICIENTE .

1. A EC 103/2019 alterou a forma de cálculo dos benefícios previdenciários. Em relação a aposentadoria por incapacidade permanente não acidentária, estabeleceu, até o advento de lei posterior, que o seu cálculo, corresponda a 60%(sessenta por cento) da média aritmética simples dos salários de contribuição contidos no período de apuração, com acréscimo de 2% (dois por cento) para cada ano de contribuição que exceder o tempo de 20 anos de contribuição para os homens ou 15anos de contribuição para as mulheres.

2. O art. 194, parágrafo único, IV, da CF/88, garante a irredutibilidade do valor dos benefícios. Como a EC 103/19 não tratou do auxílio-doença (agora auxílio por incapacidade temporária) criou uma situação paradoxal. De fato, continua sendo aplicável o art. 61. da LBPS, cuja renda mensal inicial corresponde a 91% do salário de benefício. Desta forma, se um segurado estiver recebendo auxílio doença que for convertido em aposentadoria por incapacidade permanente, terá uma redução substancial, não fazendo sentido, do ponto de vista da proteção social, que um benefício por incapacidade temporária tenha um valor superior a um benefício por incapacidade permanente.

Quanto aos direitos constitucionais previdenciários ofendidos temos, violação dos constitucionais da uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços insculpidos no Art. 194, parágrafo único, inciso II da Constituição Federal).:

“Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.

Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos:

I - universalidade da cobertura e do atendimento;

II - uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais;

......

Ora, se é obrigatório a uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais, quanto mais é vedado instituir benefícios diferentes e não equivalentes entre trabalhadores (no caso, servidores públicos) que estão na mesma situação fática e jurídica, quais seja, os servidores portadores de doenças graves e deficientes com aqueles acometidos de doenças profissionais, pois estes fazem parte de um mesmo grupo homogêneo.

Princípios de justiça social e solidariedade frequentemente fundamentam a concessão de benefícios previdenciários. A ideia é que a sociedade, como um todo, assume a responsabilidade de proteger e apoiar aqueles que enfrentam condições de saúde que limitam sua capacidade de trabalho e sustento e neste ponto está sendo violado o princípio da solidariedade do Art. 195. da Constituição Federal.

A lógica por trás da concessão de proventos integrais para servidores com doenças profissionais é a proteção social diante de condições de saúde que resultam de atividades laborais. No entanto, servidores com doenças graves não relacionadas ao trabalho também enfrentam desafios semelhantes e, portanto, deveriam receber uma proteção social equivalente.

Não se trata, mais uma vez, de um benefício assistencial, que vise impedir que pessoas que nunca contribuíram para a Previdência Social sejam lançadas em situação de miserabilidade. É um benefício previdenciário, para o qual se contribuiu, com a expectativa justa de, caso seja o indivíduo acometido de um risco social, encontrar no sistema previdenciário uma proteção social adequada e apta a preservar de forma minimamente equivalente as condições de subsistência que construiu ao longo de sua vida contributiva. Algo que se distancie de forma extrema desse propósito do seguro social viola a dignidade da pessoa humana e se afigura inconstitucional, sob uma perspectiva material.

Em razão disto, está sendo violado os princípios da seletividade e distributividade do Artigo 194, inciso III, da Constituição Federal, uma vez que as novas regras estabelecem regramento mais prejudicial a um risco social mais severo e gravoso. Há também violação aos princípios da seletividade e distributividade das prestações, já que eventual aposentação em benefício por incapacidade permanente acarretará diminuição do valor do benefício para o segurado acometido de doença grave, quando ele mais precisa. Diminuir drasticamente a renda, quando o segurado se encontra em estado de maior vulnerabilidade social, contraria a essência do sistema de seguridade social.

O déficit fiscal não pode ser atribuído unicamente à Previdência Social, uma vez que várias outras despesas contribuem para ele. O Poder Judiciário tem um papel relevante e destacado pela doutrina de, por meio do ativismo judicial, promover direitos fundamentais e sociais. A dignidade da pessoa humana deve ser o princípio norteador da análise da constitucionalidade das regras veiculadas pela EC nº 103/2019, relativamente ao benefício por incapacidade permanente.

As novas regras de cálculo da aposentadoria por incapacidade permanente não acidentária, segundo as quais sua renda mensal inicial será de 60% do salário-de-benefício, acrescido de 2% por ano que exceder a 20 anos de contribuição, é insuficiente para a efetiva proteção ao risco social.

A previsão de um benefício de valor menor para um segurado que se encontre em situação mais grave e de maior risco social viola o princípio da dignidade da pessoa humana. Ao atingir o núcleo essencial do direito à aposentadoria por incapacidade permanente, as regras ferem o princípio da vedação ao retrocesso, reconhecido como integrante de nosso sistema jurídico (ARE 639337 AgR, Relator(a):CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011). Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade são parâmetros adequados à valoração das novas regras trazidas pela EC nº 103/2019 para a aposentadoria por invalidez permanente, pois seu desrespeito afeta diretamente o princípio da dignidade da pessoa humana.

Em conclusão, os trabalhadores ou servidores públicos que venham a ser aposentados por deficiência grave e incapacitante, seja física, mental, sensorial ou intelectual têm direito a aposentadoria integral, conforme legislação anterior a vigência da Emenda Constitucional 103, uma vez que tal Emenda Constitucional é inconstitucional.


Nota

1 https://www.conjur.com.br/author/lucas-nascimento-ferreira/

Sobre o autor
Allan Montana Júnior

Jurista, Escritor e Cientista Político. Pós graduado em Direito Público e Ciência Política.

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